Por Hermes C. Fernandes
Atenas, o berço da democracia, deparou-se com um sério
problema que poderia ameaçar o novo modelo de sociedade que emergia próximo do
final do século seis a.C. Este seria,
por assim dizer, um efeito colateral indesejável que exigia reparação, sob pena
de colocar em risco a ordem democrática. Se pela democracia se elegiam os
representantes da pólis[1],
como se livrar daqueles que só pensavam em si mesmos e em suas próprias
ambições? Se tais indivíduos fossem
deixados à vontade, poderiam semear a discórdia, atiçando as pessoas umas
contras as outras no afã de tirarem alguma vantagem, promovendo assim a ruína
da recém-nascida democracia. Em vez de apelar para medidas violentas, os
cidadãos atenienses encontraram uma solução mais civilizada, e, por
conseguinte, satisfatória.
A cada ano, eles se reuniam na praça do mercado (Ágora) e escreviam num pedaço de
cerâmica chamado de ostrakon, o nome do indivíduo que desejassem ver banido
da cidade por dez anos. Alguns dicionaristas veem nesse ostrakon uma concha de ostra propriamente dita untada de cera; outros
acreditam que não passava de um caco de cerâmica. Se um determinado nome
recebesse sete mil votos, a pessoa era imediatamente exilada, e, assim,
confinada à solidão. Se ninguém alcançasse tal número, então, aquele que
houvesse recebido mais votos ficava dez anos em “ostracismo” (ostrakhismós). Tal ritual tornou-se tão importante que se
transformou numa celebração festiva, dado o alívio causado pela expulsão de
pessoas consideradas desagregadoras do convívio social. O isolamento social do
banido seria análogo à solidão de um molusco encerrado em sua concha.
Mas nem sempre o resultado era justo.
Por exemplo: Aristides, um dos grandes generais atenienses
responsáveis pela derrota dos persas na batalha de Maratona foi vítima deste
processo. Sua integridade lhe rendeu o apelido de “O justo”. Aos poucos, os atenienses começaram a nutrir
uma antipatia à sua figura, principalmente no exercício da função de magistrado.
Depois de ter sido quase uma unanimidade entre os atenienses, Aristides foi
banido em 482 a.C. Outro general que
teve o mesmo fim foi Temístocles , que após muitas vitórias no campo de
batalha, tornou-se no principal líder da cidade. Acusando-o de ser arrogante e
autoritário, os atenienses se esqueceram dos templos que construíra e dos
perigos de que os havia livrado, exilando-o através do ostrakon em 472 a.C.
Até mesmo Péricles, considerado o “pai” da democracia
ateniense, recebeu muitos votos para ser ostracizado,
mas nunca chegou a sofrer efetivamente tal sentença.
Nem Sócrates foi poupado, sendo acusado de corromper os
jovens a quem ensinava seu método filosófico. Mas o filósofo preferiu a
sentença de morte por cicuta à saída de Atenas.
Aristóteles defendeu a utilização de tal mecanismo como
método preventivo que evitasse que certos indivíduos acumulassem poder e
prestígio em razão de suas riquezas e influência política. Apesar de defender
sua utilidade, Aristóteles também foi o primeiro a reconhecer os riscos que
representava: “Este princípio, contudo,
não tem sido aplicado justamente nos Estados, pois, ao invés de procurarem o
bem para a sua Constituição, o ostracismo tem sido usado para beneficiar
algumas facções.”[2]
Há presenças que trazem incômodo aos que optam pela
mediocridade, pois expõem de maneira eloquente suas vicissitudes. Estes sempre
buscam apagar a luz daqueles que os ofuscam.
Foi por isso que Saul perseguiu a Davi depois de ouvir as mulheres de
seu povo cantando: “Saul matou a milhares, mas Davi matou a dez milhares!” Foi também por isso que o próprio Davi
intentou se livrar de Urias, marido de Bate-Seba, pois encontrou nele um homem
mais justo, íntegro e leal do que ele mesmo. Não foi só para varrer seu pecado para debaixo
do tapete...
Foi também por isso que os sacerdotes tramaram para matar a
Jesus.
Ninguém que desafie os falsos escrúpulos de uma sociedade
fica impune. Mesmo que não recorramos a um processo semelhante ao dos
atenienses, sempre damos um jeito de nos livrar daquela pedra em nosso sapato.
Obviamente que para submeter alguém ao ostracismo, faz-se necessária uma justificativa
plausível que não nos renda a fama de injustos. Saul acusava Davi de usurpar
seu trono. Davi nem se deu o trabalho de acusar Urias, preferindo agir
sorrateiramente, sem qualquer justificativa a seu ato cruel e desumano. Os
sacerdotes alegaram que a presença de Jesus era uma ameaça ao bem-estar da
população, pois poderia despertar a fúria dos romanos. Mas no fundo, o que
movia Saul em sua perseguição implacável a Davi era o ciúme. O que moveu Davi
em sua decisão de ordenar que Urias fosse abandonado na frente da batalha foi a
inveja, posto que queria para si o que era dele, isto é, sua mulher. O que
moveu os sacerdotes a tramarem para matar a Jesus foi a ganância,
principalmente depois do prejuízo dado ao templo ao derrubar as mesas dos cambistas
e expulsá-los ao sabor do chicote.
De fato, há pessoas que precisam ser colocadas numa espécie
de quarentena a fim de não contagiarem os demais com seus intentos malévolos e
facciosos. Paulo nos fala disso abertamente, advertindo a Timóteo a evitar “as conversas inúteis e profanas, porque produzirão maior impiedade. E
a palavra desses se alastra como câncer” (2 Timóteo 2:16-17a). Se não forem
devidamente tratados, suas palavras se espalharão como numa metástase,
comprometendo a saúde de todo o organismo.
João parece ainda mais radical quando diz: “Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em
casa nem o saudeis. Quem o saúda participa das suas obras más” (2 João 1:10-11).
E não é só a doutrina que deve ser avaliada, mas também os sentimentos e motivações. Isso é claramente percebido na exortação encontrada em Hebreus 12:15: “Cuidem que ninguém se exclua da graça de Deus. Que nenhuma raiz de amargura brote e cause perturbação, contaminando a muitos.” Corações amargos acabam contagiando a outros corações com a sua amargura. E o resultado disso é uma auto-exclusão. Quem se deixa contagiar pela amargura alheia, corre o risco de excluir a si mesmo da graça de Deus. Portanto, todo cuidado ainda é pouco. Há pessoas que carecem do nosso amor, mas não de nossa companhia. Pelo menos, não naquele momento. E a melhor maneira de demonstrar o quanto as amamos e nos importamos com o seu bem-estar é orando por elas. Tão logo os sintomas de sua amargura passem, elas poderão ser reintroduzidas ao nosso convívio. Não se trata, portanto, de banir, mas de uma medida preventiva que vise o bem-estar geral. Mesmo o ostrakon não visava banir ninguém para sempre, mas deixa-lo em exílio por dez anos, podendo retornar ao convívio social. Colocar alguém em quarentena é dar a ele a oportunidade de repensar seus posicionamentos. Logo, trata-se de um gesto de amor, e não de uma maneira velada de se livrar do problema.
O que é a síndrome do
ostracismo?
Chamamos de “síndrome do ostracismo” o estado mórbido
caracterizado por uma série de sintomas que algumas pessoas passam a manifestar
após a perda de uma posição de poder, fama
ou prestígio, e que tem como consequência a experiência de anonimato, do
isolamento, da exclusão social. Tal síndrome ocorre justamente com as pessoas que,
acostumadas aos holofotes, sem mais, nem menos, perdem o poder ou o status social, sendo involuntariamente
confinadas ao seu mundinho particular.
Quando alguém alcança a posição de notoriedade, passando a
ser o centro das atenções do grupo social, o ego e a autoestima se inflam de
tal maneira que é natural que ele se sinta querido e amado. As constantes adulações
e elogios podem leva-lo a se considerar superior e mais importante que os
demais à sua volta. Sem contar que sua posição social pode lhe conferir acesso
a uma série de condições, privilégios e regalias que as pessoas comuns não
possuem. A notoriedade, todavia, pode privar a pessoa da consciência de sua própria
realidade, da brevidade da sua vida, e dos objetivos prioritários a serem
alcançados para que possa crescer e evoluir como ser humano.
As pessoas devem ser amadas, queridas e valorizadas não pelo
poder que ostentam, ou pela posição de privilégio que alcançaram, mas pelo que
são. Sair de cena, deixar de ser o
centro das atenções, perder os holofotes, não deveria ser motivo de autocomiseração
ou autopiedade.
Quem nos abandona nesses momentos revela jamais ter nutrido
qualquer sentimento legítimo de amor para conosco. Amavam apenas as vantagens e
benefícios que poderíamos proporcionar-lhes no exercício do poder de que
dispúnhamos. Queriam nossa companhia
para tirarem uma casquinha do nosso prestígio. Mas jamais amaram nossa
essência, aquilo que somos à parte dos papéis sociais que nos cabem.
Deixar-nos só pode ser um grande favor feito por quem dizia
nos amar, mas só queria mesmo se locupletar. Às vezes precisamos de certa dose
de isolamento para que, tal qual uma ostra, aprendamos a lidar com a nossa dor
e transformá-la numa pérola de grande valor.
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