quinta-feira, maio 31, 2018

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A MARCHA PARA JESUS E O APARTHEID CRISTÃO



Por Hermes C. Fernandes

Onde poderíamos encontrar a Cristo num dia como hoje em pleno feriado de Corpus Christi?  De um lado, cristãos evangélicos saem às ruas numa marcha que creem ser dedicada a Jesus. Do outro, cristãos católicos se reúnem para celebrar a presença de Jesus na Eucaristia. Não me atrevo a questionar a intenção de ambos. Acredito que muitos envolvidos nessas celebrações tenham um coração puro e sincero em sua devoção e adoração a Cristo. Todavia, creio que haja uma compreensão distorcida acerca da proposta subversiva de Jesus. Digo “subversiva” por ir na contramão de todo sistema religioso vigente tanto em Sua época, quanto hoje.

Não creio que Jesus pretendesse iniciar um movimento que levasse multidões às avenidas para gritarem Seu nome em coros puxados por trio-elétricos.  A genuína “marcha para Jesus” se dá sem data e hora marcadas, sem showmício para eleger candidatos evangélicos, sem discurso moralista, sem disputa para desbancar outras marchas e paradas. A verdadeira “marcha para Jesus” é aquela  em que “levamos sempre por toda a parte o morrer do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos” (2 Coríntios 4:10). Portanto, trata-se de algo discreto, sem alarde, sem chamar a atenção para si mesmo. Como “sal da terra” devemos ser polvilhados no caldeirão cultural, realçando o sabor da comida, e não chamando a atenção para nossa presença. Parece que temos errado na mão. Estamos tornando a comida intragável de tão salgada. Como “luz do mundo” devemos estar direcionados para fora como refletores em vez de querer atrair os holofotes para si. Em vez disso, tornamo-nos massa de manobra de quem almeja fazer de nós capital político para ser usado em suas negociações por trás dos bastidores.

Enquanto os evangélicos se voltam para fora com a pretensão de roubar a cena, os católicos se voltam para dentro numa espiritualidade centrada no ritual eucarístico. Mesmo que deixem suas paróquias para exibir ao mundo o Santíssimo Sacramento em suas procissões, o rito segue sendo restrito aos que professam a mesma fé.

Não quero aqui discutir dogmas. Respeito demasiadamente a fé católica, apesar de não subscrever alguns de seus posicionamentos.

É lindo de se ver a devoção sincera expressada eloquentemente na celebração eucarística. Assim como é lindo de ser ver a empolgação dos evangélicos em suas marchas. Porém, devemos ir além da estética litúrgica.

Sobre a celebração eucarística, o apóstolo Paulo diz que “qualquer que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor (...) Pois quem come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor” (1 Coríntios 11:27,29). Em cima destas palavras, criou-se o que poderíamos chamar de Apartheid Eucarístico. Somente os que fizessem parte do corpo místico de Cristo através do batismo, estariam aptos a participar de Seu corpo e sangue presentes na hóstia e no vinho. Seria realmente isso que Paulo chamava de “discernir o corpo do Senhor”? Creio que não. 

Do lado protestante, deparamo-nos com o Apartheid Moral. Somente os que se dispõem a viver dentro dos códigos morais da comunidade evangélica são reconhecidos como "Corpo de Cristo." Se não estiver afinado de acordo com seu diapasão moral, considere-se fora. Se for gay, por exemplo, é considerado indigno de tomar parte da Mesa do Senhor. Dependendo da comunidade, o mesmo se pode dizer dos divorciados, mães solteiras, fumantes, alcoólicos, etc.

Católicos e protestantes perderam tanto tempo discutindo se a presença de Cristo nos elementos eucarísticos era real ou simbólica, que não se aperceberam de que Ele se faz presente mesmo é no ato e não meramente nos elementos em si. Refiro-me ao ato da partilha. O pão e o vinho, elementos comuns na dieta judaica de Seu tempo, representava a vida de Deus partilhada com os homens, conclamando-os a partilhar suas próprias vidas uns com os outros. Como bem disse João, o discípulo amado: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós. E devemos dar a nossa vida pelos irmãos. Quem tiver bens do mundo e, vendo o seu irmão necessitado, fechar-lhe o seu coração, como estará nele o amor de Deus? Meus filhinhos, não amemos de palavra nem de língua, mas por obra e em verdade” (1 João 3:16-18).

“Discernir o corpo do Senhor” é identifica-lo no outro, sobretudo, no necessitado.  “Tive fome e me deste de comer” (Mateus 25:35), dirá Jesus aos que perceberam que o estômago vazio do mendicante é o estômago de Cristo. “Era estrangeiro e me acolhestes” , dirá aos que se deram conta de que aquele corpo de cor e aparência diferentes da sua não é outro que não seja o corpo do Senhor.

Jamais foi a intenção de Cristo separar os homens por credos, etnias, ideologias ou gênero. Porém, no último dia, Ele os separará tendo por critério único o fato de terem vivido para si mesmos ou para o bem do outro. A diferença entre ovelhas e bodes não é o som que emitem, ou aquilo que comem, mas a lã que depois de tirada para aquecer a outros, segue crescendo.  Enquanto a ovelha contribui com sua lã, o bode se ufana na envergadura ameaçadora de seus chifres.

A igreja primitiva não via a Mesa do Senhor como um rito estereotipado,  nem como reedição do sacrifício de Jesus, mas como oportunidade de dispor de seus bens para que outros deles desfrutassem. A isso chamamos COMUNHÃO. Lucas nos oferece um brilhante testemunho acerca disso ao afirmar que os cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações (...) Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum” (Atos 2:43,44). Tudo isso se devia ao fato de que “era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas eram compartilhadas (...) Não havia entre eles necessitado algum” (Atos 4:32,34a).

Costumo dizer que se as mesmas mãos que se estendem ao céu em louvor não forem as mesmas que se estendam ao próximo em amor, nossa liturgia não passará de letargia. Da mesma maneira, pode-se dizer que se o pão que comemos na celebração eucarística não nos inspirar a partir nosso próprio pão com o necessitado, tudo não passará de encenação.


A magia não está nas palavras do sacerdote capazes de transformar pão em carne e vinho em sangue. A verdadeira “magia” está no gesto de repartir o que se tem, transformando nosso egoísmo em altruísmo, nossa ganância em amor. 

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