Por Hermes C. Fernandes
Onde poderíamos encontrar a Cristo num dia como hoje em
pleno feriado de Corpus Christi? De um
lado, cristãos evangélicos saem às ruas numa marcha que creem ser dedicada a Jesus.
Do outro, cristãos católicos se reúnem para celebrar a presença de Jesus na
Eucaristia. Não me atrevo a questionar a intenção de ambos. Acredito que muitos
envolvidos nessas celebrações tenham um coração puro e sincero em sua devoção e
adoração a Cristo. Todavia, creio que haja uma compreensão distorcida acerca da
proposta subversiva de Jesus. Digo “subversiva” por ir na contramão de todo
sistema religioso vigente tanto em Sua época, quanto hoje.
Não creio que Jesus pretendesse iniciar um movimento que
levasse multidões às avenidas para gritarem Seu nome em coros puxados por
trio-elétricos. A genuína “marcha para
Jesus” se dá sem data e hora marcadas, sem showmício para eleger candidatos
evangélicos, sem discurso moralista, sem disputa para desbancar outras marchas
e paradas. A verdadeira “marcha para
Jesus” é aquela em que “levamos sempre
por toda a parte o morrer do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de
Jesus se manifeste também em nossos corpos” (2 Coríntios 4:10). Portanto,
trata-se de algo discreto, sem alarde, sem chamar a atenção para si mesmo. Como
“sal da terra” devemos ser polvilhados
no caldeirão cultural, realçando o sabor da comida, e não chamando a atenção
para nossa presença. Parece que temos errado na mão. Estamos tornando a comida
intragável de tão salgada. Como “luz do
mundo” devemos estar direcionados para fora como refletores em vez
de querer atrair os holofotes para si. Em vez disso, tornamo-nos massa de
manobra de quem almeja fazer de nós capital político para ser usado em suas
negociações por trás dos bastidores.
Enquanto os evangélicos se voltam para fora com a pretensão
de roubar a cena, os católicos se voltam para dentro numa espiritualidade
centrada no ritual eucarístico. Mesmo que deixem suas paróquias para exibir ao
mundo o Santíssimo Sacramento em suas procissões, o rito segue sendo restrito
aos que professam a mesma fé.
Não quero aqui discutir dogmas. Respeito demasiadamente a fé
católica, apesar de não subscrever alguns de seus posicionamentos.
É lindo de se ver a devoção sincera expressada
eloquentemente na celebração eucarística. Assim como é lindo de ser ver a
empolgação dos evangélicos em suas marchas. Porém, devemos ir além da estética
litúrgica.
Sobre a celebração eucarística, o apóstolo Paulo diz que “qualquer que comer o pão ou beber o cálice
do Senhor indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor (...) Pois
quem come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não
discernindo o corpo do Senhor” (1 Coríntios 11:27,29). Em cima destas
palavras, criou-se o que poderíamos chamar de Apartheid Eucarístico. Somente os que fizessem parte do corpo
místico de Cristo através do batismo, estariam aptos a participar de Seu corpo
e sangue presentes na hóstia e no vinho. Seria realmente isso que Paulo chamava
de “discernir o corpo do Senhor”?
Creio que não.
Do lado protestante, deparamo-nos com o Apartheid Moral. Somente os que se dispõem a viver dentro dos códigos morais da comunidade evangélica são reconhecidos como "Corpo de Cristo." Se não estiver afinado de acordo com seu diapasão moral, considere-se fora. Se for gay, por exemplo, é considerado indigno de tomar parte da Mesa do Senhor. Dependendo da comunidade, o mesmo se pode dizer dos divorciados, mães solteiras, fumantes, alcoólicos, etc.
Católicos e protestantes perderam tanto tempo discutindo se
a presença de Cristo nos elementos eucarísticos era real ou simbólica, que não
se aperceberam de que Ele se faz presente mesmo é no ato e não meramente nos
elementos em si. Refiro-me ao ato da partilha. O pão e o vinho, elementos
comuns na dieta judaica de Seu tempo, representava a vida de Deus partilhada
com os homens, conclamando-os a partilhar suas próprias vidas uns com os
outros. Como bem disse João, o discípulo amado: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós. E devemos
dar a nossa vida pelos irmãos. Quem tiver bens do mundo e, vendo o seu irmão
necessitado, fechar-lhe o seu coração, como estará nele o amor de Deus? Meus
filhinhos, não amemos de palavra nem de língua, mas por obra e em verdade”
(1 João 3:16-18).
“Discernir o corpo do
Senhor” é identifica-lo no outro, sobretudo, no necessitado. “Tive
fome e me deste de comer” (Mateus 25:35), dirá Jesus aos que perceberam que
o estômago vazio do mendicante é o estômago de Cristo. “Era estrangeiro e me acolhestes” , dirá aos que se deram conta de
que aquele corpo de cor e aparência diferentes da sua não é outro que não seja
o corpo do Senhor.
Jamais foi a intenção de Cristo separar os homens por
credos, etnias, ideologias ou gênero. Porém, no último dia, Ele os separará
tendo por critério único o fato de terem vivido para si mesmos ou para o bem do
outro. A diferença entre ovelhas e bodes não é o som que emitem, ou aquilo que
comem, mas a lã que depois de tirada para aquecer a outros, segue crescendo. Enquanto a ovelha contribui com sua lã, o
bode se ufana na envergadura ameaçadora de seus chifres.
A igreja primitiva não via a Mesa do Senhor como um rito
estereotipado, nem como reedição do
sacrifício de Jesus, mas como oportunidade de dispor de seus bens para que
outros deles desfrutassem. A isso chamamos COMUNHÃO. Lucas nos oferece um
brilhante testemunho acerca disso ao afirmar que os cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos, na
comunhão, no partir do pão e nas orações (...) Todos os que criam estavam
juntos e tinham tudo em comum” (Atos 2:43,44). Tudo isso se devia ao fato
de que “era um o coração e a alma da
multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua
própria, mas todas as coisas eram compartilhadas (...) Não havia entre eles
necessitado algum” (Atos 4:32,34a).
Costumo dizer que se as mesmas mãos que se estendem ao céu
em louvor não forem as mesmas que se estendam ao próximo em amor, nossa
liturgia não passará de letargia. Da mesma maneira, pode-se dizer que se o pão
que comemos na celebração eucarística não nos inspirar a partir nosso próprio pão
com o necessitado, tudo não passará de encenação.
A magia não está nas palavras do sacerdote capazes de
transformar pão em carne e vinho em sangue. A verdadeira “magia” está no gesto
de repartir o que se tem, transformando nosso egoísmo em altruísmo, nossa
ganância em amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário