terça-feira, junho 21, 2022

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IDEOLOGIA DE GÊNERO: ameaça ou falácia?

Por Hermes C. Fernandes 

Com a proximidade das eleições, candidatos desprovidos de qualquer programa de governo que vise o bem-estar da população recorrem a expedientes nada louváveis para atrair votos. Dentre tais expedientes estão as pautas de costume que abordam desde assuntos relativos à sexualidade, passando pelo aborto e pelas drogas. Sem dúvida, o mais usado para aterrorizar as pessoas e convencê-las a confiar-lhes seus votos está a tal “ideologia de gênero.” Pastores transformados em cabos eleitorais vociferam de seus púlpitos, anunciando a sórdida tentativa dos partidos de esquerda em sexualizar nossas crianças, com a intenção de transforma-las em gays, e assim, destruir as famílias, impedindo-as de se perpetuar. Por mais absurda que seja esta argumentação estapafúrdia, ela tem sido a locomotiva de boa parte da propaganda de candidaturas comprometidas com políticas que visam a supressão de direitos da classe trabalhadora e de direitos civis de minorias historicamente oprimidas. 

Não existe esta tal “ideologia de gênero”, e sim uma educação que aborda questões relativas à sexualidade com o objetivo de prevenir o abuso infantil e a disseminação de preconceitos.  

Longe de ser uma doutrinação visando converter as crianças à homossexualidade (como se isso fosse possível!), a educação para a diversidade tem como objetivo criar condições favoráveis no ambiente escolar para que professores e alunos possam aprender e ensinar o convívio com as diferenças, combatendo assim a discriminação, o preconceito, a violência de gênero (contra a mulher, o homossexual e o transexual). A escola deve prover um espaço aberto à reflexão e ao acolhimento dos alunos em sua individualidade, garantindo-lhes a liberdade de expressão. Para tal, deve-se fomentar debates mais aprofundados sobre as questões de gênero e sexualidade, com disciplinas que tratem especificamente do tema. Os pais devem ficar despreocupados. Nenhum filho hétero vai voltar para casa homossexual. Mas certamente vai enxergar seus colegas homossexuais sem as lentes do preconceito que, infelizmente, muitas vezes receberam na educação provida em seu próprio lar.  

O ambiente escolar costuma ser cruel com os diferentes. Por isso, acredito que cabe aos professores trabalhar para atenuar este tipo de comportamento. 

Tempos atrás, um menino de apenas doze anos, colega de algumas crianças que frequentavam nossa igreja, suicidou-se tomando chumbinho e sufocando-se com um saco plástico, por não suportar o bullying sofrido na escola. Não se trata de um caso isolado, mas de um fato cada vez mais frequente, apesar de nem sempre ter a devida cobertura midiática.

Raramente os pais tomam conhecimento do que acontece na escola. E às vezes, mesmo sabendo, não tomam qualquer providência, seja por sentirem-se impotentes, ou simplesmente por não se importarem. Por estas e outras, sou 100% a favor da proposta da educação para a diversidade. Não se trata de ‘ideologia de gênero’, mas de educação, e, portanto, deve ser discutido no ambiente escolar.

Outra razão para que as escolas ofereçam educação sexual é a prevenção de abusos sexuais. O abuso sexual de crianças e adolescentes geralmente é cometido por uma pessoa de confiança da vítima, como um parente próximo. Há abuso mesmo quando não se tem o ato sexual consumado. Expor a criança a carícias impróprias ou a pornografia, ou se exibir para ela, também é considerado abuso sexual. Uma educação sexual escolar que respeite o desenvolvimento físico, psicológico, afetivo, cognitivo e, sobretudo, sexual de uma criança oferece ferramentas para diagnosticar possíveis abusos, incentivando a denúncia com o objetivo de interrompê-los.

A recusa por parte de algumas instituições em abordar o tema que ainda é visto como tabu, ou de denunciar às autoridades casos de violência sexual, tem sido um fator facilitador para os abusadores. Estes deveriam ser os únicos a se sentirem incomodados com a educação sexual das crianças na escola. Está comprovado que a educação promove o adiamento da iniciação sexual, e, consequentemente, previne DST, gravidez indesejada e, por conseguinte, coíbe o aborto. Os que se opõem a educação sexual nas escolas deveriam considerar que seus filhos estão sendo bombardeados por informações erradas sobre sexo, seja através da televisão, da internet ou de propagandas. 

Uma das formas de prevenção é ensinar as crianças com abordagens apropriadas para cada faixa etária, conceitos de autoproteção, consentimento, integridade corporal, sentimentos e a diferença entre toques agradáveis e carinhosos, e toques invasivos, erotizados e desconfortáveis, aumentando as chances de proteger crianças e adolescentes de possíveis violações. É importante falar, por exemplo, em quais partes do corpo da criança qualquer pessoa pode tocar e em quais partes não podem, mesmo por outras crianças. Por exemplo, tocar na cabeça, no ombro, no braço geralmente não oferece qualquer ameaça. Mas elas precisam entender que outra pessoa não pode tocar em suas partes íntimas, seja adulta ou criança. É imprescindível que se ensine às crianças a não permitir maior intimidade com determinadas pessoas. E assim, elas se percebem empoderadas, aptas a dizer não e a fugir da situação. Geralmente, abusadores sabem como conquistar as crianças paulatinamente. Em sua ingenuidade, a criança pode permitir o abuso por receio, medo ou por engano.

quarta-feira, maio 11, 2022

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QUEM QUER SER UM BILIONÁRIO?

Por Hermes C. Fernandes

O bilionário Elon Musk, dono da Tesla, gastou US$ 44 bilhões para comprar o Twitter. Esse valor é seis vezes mais do que seria necessário para acabar com a fome no mundo.

Existem 45 milhões de pessoas no mundo que não têm o que comer. Se antes da pandemia o número chegava a 27 milhões, a situação da fome se agravou ainda mais ao longo dos últimos anos, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas.

O que deveria valer mais, uma rede social que muitos consideram ultrapassado ou a vida de milhões de pessoas que morrem de fome? 

O que você faria com sua fortuna se fosse um bilionário como Elon Musk? 

Aliás, por que há bilionários? Por que há tantos recursos nas mãos de tão poucos enquanto tantos sequer têm o que comer?

Seria correto desejar ser um bilionário em um mundo como o nosso? 

Como cristãos, não deveríamos almejar um mundo mais igualitário é justo? 

Viver numa cidade cercada de montanhas tem suas vantagens e desvantagens. A exuberância de nossa topografia tem seu lado negativo. Se quisermos assistir a um belo nascer do sol, teremos que buscar uma praia, de onde possamos vê-lo se insinuando no horizonte até rasgar o céu com seus raios. Caso contrário, as mesmas montanhas que embelezam nossos cartões postais proverão uma muralha que retardará o aparecimento do astro rei.

As Escrituras nos garantem que o Sol da Justiça há de despontar no horizonte da história, e que as trevas que hoje parecem prevalecer serão finalmente dissipadas.

Os cristãos, de modo geral, creem nisso. O bem vencerá. O amor prevalecerá. Todavia, uma parte significativa deles acha que nada haja a fazer para contribuir neste processo, senão anunciar a Cristo como o Salvador. Por isso, adota uma postura passiva, negando-se o papel de agentes do reino de Deus cuja missão é a transformação da sociedade, preparando-a para o segundo advento de Jesus.

E que tipo de transformação deve preceder a parousia?[1] Seria tão-somente no âmbito da espiritualidade? Estaríamos falando do que se convencionou chamar “avivamento espiritual”? Uma espécie de conversão em massa? Ou seria uma transformação que abrangeria as estruturas sociais, políticas e econômicas do mundo? 

Que haja algo errado, todos admitimos. Resta saber o que se pode fazer para corrigi-lo. Não basta remediar, tratar os sintomas, sem questionar as estruturas injustas que os produzem. Como pisar num lugar como o lixão de Jardim Gramacho, deparar-se com seres humanos vivendo literalmente do lixo, e não questionar o que estaria por trás disso? Seria muito fácil emitir um juízo moral, atribuindo a miséria de nossos semelhantes ao pecado, à falha de caráter, à indisposição para o trabalho. Isso, certamente, pouparia os verdadeiros responsáveis pela penúria que atinge boa faixa da população mundial. Também é relativamente fácil esconder-se atrás de um sistema que incentiva a meritocracia, que justifica a concentração de renda, enquanto desdenha da miséria alheia. Como ceder à misericórdia em nossos corações enquanto nossas mentes teimam em justificar o sistema responsável por produzir esses indesejáveis efeitos colaterais? Eis a nossa esquizofrenia! 

Referindo-se à vinda gloriosa de Jesus, Pedro diz que “convém que o céu o contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio” (At.3:21). Portanto, não estamos defendendo coisa estranha ao evangelho, mas aquilo que tem sido crido e esperado desde os primórdios, mesmo antes do primeiro advento. Nenhum dos profetas se furtou de proclamar acerca deste tão desejado tempo em que todas as coisas serão plenamente restauradas. E não só isso! Eles conclamaram os homens a arregaçarem as mangas e trabalharem desde já, preparando o caminho do Senhor.  Veja, por exemplo, o que diz Isaías:

 “Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor; endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus. Todo vale será levantado, e será abatido todo monte e todo outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é escabroso, aplanado. A glória do Senhor se revelará; e toda a carne juntamente a verá; pois a boca do Senhor o disse.”Isaías 40:3-5

O trabalho para o qual fomos arregimentados consiste em aplainar o terreno, para que, quando o Sol da Justiça despontar, toda a humanidade possa vê-lo ao mesmo tempo.  Para nivelar o terreno, montanhas terão que ser abatidas, e vales aterrados. Não se trata de algo simples de se fazer, mas de um desafio que demandará um esforço hercúleo por parte de todos os envolvidos.

João Batista, precursor de Jesus em Seu primeiro advento, percebeu que este processo de nivelamento passava por ele também. Ninguém está imune. Por isso, ao ser indagado por seus discípulos acerca do crescimento meteórico do ministério de Jesus que coincidia com a redução de sua própria popularidade, João respondeu: “É necessário que ele cresça e que eu diminua” (Jo.3:30). Neste caso, Jesus era o vale que precisava ser exaltado, enquanto João era a montanha que teria que ser abatida.

A igreja, como precursora de Jesus em Seu segundo advento, deve estar imbuída do mesmo espírito. Somos, por assim dizer, uma amostra grátis do que Deus almeja fazer no mundo. Se não funcionar conosco, que garantia teremos de que funcionará lá fora?

Por isso, Paulo recomenda incisivamente que no contexto do Corpo de Cristo, os membros que pareçam mais fracos sejam tidos por necessários, e os que são reputados como menos honrosos, sejam ainda mais honrados. Porém, “os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela; para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros” (1 Co.12:22-25).

Antes de ser vista no mundo, a glória do Senhor deve ser revelada em nós. Para isso, porém, o terreno precisa ser aplainado.  

O que isso significaria na prática?

Tiago, irmão do Senhor, nos responde a esta importante pergunta:

“Glorie-se o irmão de condição humilde na sua alta posição. O rico, porém, glorie-se na sua insignificância, porque ele passará como a flor da erva. Pois o sol sai com seu ardente calor, e faz secar a erva; a sua flor cai, e a sua formosura perece. Assim murchará também o rico em seus caminhos.” Tiago 1:9-11

O que provoca desnivelamento maior entre os homens do que a injustiça social responsável pela divisão de classes? O que hoje chamamos de desigualdade, os profetas chamavam de iniquidade. Poucos com tanto, tantos com tão pouco. Se isso não puder ser corrigido no âmbito da igreja, certamente não o será no mundo. 

Logo no início, quando o Espírito desceu sobre os discípulos reunidos no cenáculo, o maior milagre ocorrido não foi o falar em línguas, como defendem alguns, mas sim o fato de se tornarem um só coração, de modo que ninguém dizia que coisa alguma que possuía era sua, mas todos tinham tudo em comum (At.4:32). Já não havia divisão de classes nesta sociedade alternativa embrionária chamada igreja. O mundo agora tinha um exemplo palpável de como as coisas deveriam funcionar no reino de Deus.

Porém, aos poucos, novas montanhas se elevaram, graças ao atrito das 'placas tectônicas sociais'. Entre uma montanha e outra, novos vales se abriram. O terreno voltou a ficar acidentado. O que é uma montanha senão o acúmulo de materiais ao longo das eras? E o que é um vale senão uma ruptura no terreno, fazendo separação entre os montes? 

A fé, que segundo Paulo opera pelo amor (Gl.5:6), deve ser capaz de fazer mover as montanhas, precipitando-as e dissolvendo-as no mar. Na simbologia bíblica, o mar representa os povos em geral. Em outras palavras, o que foi acumulado, deveria ser usado no bem comum. 

Deus jamais endossou a concentração de bens (Is.5:8). Se nossa fé não for capaz de reverter este fluxo, ela de nada serve, não passando de uma fé espetaculosa, sem compromisso com a realidade.  Esta, porém, tem sido a tendência da fé quando divorciada do amor (Leia 1 Co.13:1-3).

Voltando a Tiago, verificamos que ao humilde, ao pobre, é-lhe dado o direito de se gloriar, pois o mesmo desfruta de uma alta posição aos olhos de Deus. Repare: Deus faz ao pobre uma concessão que não faz a ninguém. Apesar de não ter filhos prediletos ou favoritos, Deus considera o pobre Sua prioridade número um. Já o rico, mesmo amado por Deus, deve reconhecer sua insignificância, pois ocupa o último lugar na agenda do reino de Deus. Não significa que Deus o despreze. Porém, antes de voltar Sua atenção para Zaqueu, Ele Se voltará para Bartimeu. 

Quem, afinal, seriam o rico e o pobre na opinião de Deus?

Rico é qualquer um que goza de privilégios negados aos demais. Pobre é qualquer um que tem seus direitos vilipendiados. É completa perda de tempo tentar espiritualizar isso. E a prova disso é o comentário feito por Tiago no capítulo dois de sua epístola?

“Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com favoritismo. Suponham que na reunião de vocês entre um homem com anel de ouro e roupas finas, e também entre um homem pobre com roupas velhas e sujas. Se vocês derem atenção especial ao homem que está vestido com roupas finas e disserem: "Aqui está um lugar apropriado para o senhor", mas disserem ao pobre: "Você, fique de pé ali", ou: "Sente-se no chão, junto ao estrado onde ponho os meus pés", não estarão fazendo discriminação, fazendo julgamentos com critérios errados? Ouçam, meus amados irmãos: não escolheu Deus os que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que ele prometeu aos que o amam? Mas vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais? Não são eles que difamam o bom nome que sobre vocês foi invocado?” Tiago 2:1-7

Se Tiago estivesse se referindo a um tipo de riqueza e de pobreza estritamente espirituais, não faria sentido o exemplo usado. Ele fala de anel de ouro, roupas elegantes,  em oposição a roupas velhas e sujas. Não há nada de espiritual aí. Ou há? Bem, o fato de valorizamos tanto a aparência e a posição social de alguém revela nosso estado espiritual lastimável. No fundo, tudo é espiritual. Porém, não se pode negar os desdobramentos sociais de nossa espiritualidade.

Se importamos do mundo a visão pela qual diferenciamos as pessoas de acordo com suas classes sociais, deixamos de ser agentes de transformação e nos tornamos em meras engrenagens deste sistema reprodutor de injustiças.

Por que tratamos o rico de maneira gentil e o pobre de maneira rude? O homem com anel de ouro em seu dedo representa aquilo que gostaríamos de ser. Nós o invejamos. Quem sabe, se o adularmos, ele nos ajudará a ascender socialmente? Já a presença do pobre nos causa mal-estar. Sua existência desafia nossos escrúpulos. Sua presença nos intimida. O que ele poderia nos oferecer? Provavelmente nos pedirá alguma ajuda. Por isso, é melhor mantê-lo numa distância segura.

Só existem vales, porque existem montanhas. Não haveria pobres, se não houvesse ricos. Não haveria miséria, se não houvesse concentração de bens. 

Tiago denuncia isso enfaticamente. Sem titubear, ele se dirige aos ricos de seu tempo e os conclama ao arrependimento:

“E agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como fogo. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o salário que fraudulentamente retivestes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os clamores dos ceifeiros têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos corações no dia da matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu.” Tiago 5:1-6

Ninguém chega ao ponto de se tornar bilionário sem ter explorado o trabalho do pobre, do necessitado, e sem ter se valido de um sistema calibrado para beneficiar a uns em detrimento de outros. Salários foram fraudulentamente retidos. Direitos foram solapados. A justiça pervertida. Tudo em nome do conforto, da segurança, da estabilidade. 

Porém, Deus não faz vista grossa a tudo isso. Segundo Tiago, “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg.4:6). E alguém duvida que o soberbo em questão seja uma referência aos que se valem daquilo que possuem?

Em breve, tudo isso se reverterá. Na medida em que o genuíno evangelho for anunciado aos homens, o fenômeno vivido pelos cristãos primitivos se repetirá. Os ricos expandirão suas consciências e se darão conta de que “a vida do homem não consiste na abundância das coisas que possui” (Lc.12:15), de modo que não se negarão a repartir seus haveres com os que nada têm. Não se trata de filantropia, mas de justiça.

Na profecia de Isaías, quando os vales fossem aterrados e as montanhas achatadas, o caminho seria endireitado. Numa topografia pontilhada de montanhas, as estradas costumam ser sinuosas. Para quê servem as curvas, afinal, senão para contornar os obstáculos impostos pelas montanhas? Sem elas, o que é torto se endireitaria. E repare que uma sociedade dividida em classes não é um problema só para quem está na base, tendo que contornar os obstáculos impostos pelos que detém o poder político e econômico. A presença dos vales demanda a construção de pontes que interliguem as montanhas. Portanto, é dispendioso a todos, tanto para os que estão na base da pirâmide social, quanto para os que estão no topo. As pontes servem para que não seja necessário voltar à base e percorrer estradas sinuosas. Quem detém o poder não precisa se rebaixar. Em vez disso, cria mecanismo para burlar as regras válidas apenas para os que estão lá embaixo. Porém, pontes não custam barato. Políticos são corrompidos. Pautas das redações de jornais são encomendadas. Brechas na lei são exploradas à exaustão por juristas que se deixam alugar. Candidatos são forjados. Campanhas milionárias são patrocinadas. Seguranças armados são contratados. Carros são blindados. Mansões cercadas de câmeras e cercas eletrificadas. Ou como disse Tiago, estão entesourando para o seu próprio fim. Nada disso seria necessário se os ricos deste mundo não fossem tão gananciosos.

Facilitar a vida do pobre é, por assim dizer, viabilizar a própria existência sobre bases firmes, sem medo do inusitado, sem receio de perder tudo de uma hora para outra, sem ter que viver escatelado, prisioneiro de seu próprio sucesso.

Compete-nos conclamar o mundo à tomada de consciência, num pacto entre todas as camadas sociais, onde ninguém se verá lesado em seus direitos, nem refém de seus interesses. 

[1] Termo grego usado no NT para designar a manifestação visível de Cristo no último dia.

segunda-feira, maio 09, 2022

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VOCÊ NÃO É TODO MUNDO – O VALOR DE SER EXCEÇÃO

 Por Hermes C. Fernandes 

Dentre as frases típicas faladas pelas mães, uma das mais usadas em resposta aos filhos é “você não é todo mundo.” Geralmente, esta frase tem o objetivo de tirar do filho a esperança de que ela possa reconsiderar a resposta negativa dada a um pedido. Talvez a única frase que rivalize com esta seja a famosa “na volta a gente compra”, que tem o claro objetivo de engambelar o filho, fazendo-o se esquecer do produto desejado. 

Muito mais que uma justificativa para o “não” dado pela mãe, a frase “você não é todo mundo” deveria gerar nos filhos a consciência de que eles são únicos, e que, portanto, não deveriam insistir em se comparar com os demais. 

Não somos “soldadinhos de chumbo” produzidos em série. Somos indivíduos. Seres únicos. E será justamente esta consciência que nos dará a fibra moral para sermos exceções em um mundo cheio de réplicas. 

Há um personagem bíblico que pode nos ajudar a compreender melhor esta questão. Trata-se de Calebe, um dos doze homens enviados por Moisés para espiar a Terra Prometida. 

Seguindo a instrução divina, Moisés deveria enviar um representante de cada tribo de Israel; não um representante qualquer, mas um príncipe. Portanto, todos os doze gozavam do mesmo status social (Números 13:1,2). 

De acordo com o registro bíblico, eles deveriam inspecionar a terra e seus moradores: 

“Enviou-os, pois, Moisés a espiar a terra de Canaã; e disse-lhes: Subi por aqui para o lado do sul, e subi à montanha: E vede que terra é, e o povo que nela habita; se é forte ou fraco; se pouco ou muito. E como é a terra em que habita, se boa ou má; e quais são as cidades em que eles habitam; se em arraiais, ou em fortalezas. Também como é a terra, se fértil ou estéril; se nela há árvores, ou não; e esforçai-vos, e tomai do fruto da terra. E eram aqueles dias os dias das primícias das uvas.” Números 13:17-20

Ao fim de quarenta dias, eles retornaram para prestar relatório a Moisés e a todo o povo de Israel. Dos doze, dez relataram que a terra, de fato, era muito boa e fértil, fazendo jus à promessa de Deus de que introduziria Seu povo em uma terra que manava leite e mel. Mas havia um porém. A terra era habitada por gente poderosa, fortemente armada que vivia em cidades grandes e fortificadas.

A terra prometida por Deus a Abraão séculos antes, agora estava tomada por povos guerreiros que certamente não receberiam amistosamente os filhos de Israel. Ainda que a terra se constituísse em um direito, este não lhe seria garantido sem luta. Aqueles povos jamais se disporiam a entregar a terra de mão beijada pelo simples fato de haver sido prometida por Deus a Abraão e a sua descendência. Se quisessem desfrutar daquela herança, os filhos de Israel teriam que conquista-la. Aliás, assim se dá com qualquer direito. Sem luta, jamais o desfrutaremos. 

Quando aqueles dez espias apresentaram seu relatório, o povo se desesperou, e acusando a Moisés de tê-los enganado, intentou apedrejá-lo. O homem que os liderou, tirando-os da escravidão, agora era considerado um enganador. Na avaliação deles, era melhor ter morrido no Egito ou no deserto. Houve até quem propusesse a eleição de um capitão que os reconduzisse ao Egito. No meio deste tumulto, um homem ousou ser exceção.  O texto sagrado diz que Calebe “fez calar o povo perante Moisés, e disse: Certamente subiremos e a possuiremos em herança; porque seguramente prevaleceremos contra ela.” Imediatamente, outro juntou-se a ele, mesmo sabendo que seriam dois contra dez. “E Josué, filho de Num, e Calebe filho de Jefoné, dos que espiaram a terra, rasgaram as suas vestes. E falaram a toda a congregação dos filhos de Israel, dizendo: A terra pela qual passamos a espiar é terra muito boa. Se o Senhor se agradar de nós, então nos porá nesta terra, e no-la dará; terra que mana leite e mel. Tão-somente não sejais rebeldes contra o Senhor, e não temais o povo dessa terra, porquanto são eles nosso pão; retirou-se deles o seu amparo, e o Senhor é conosco; não os temais. Mas toda a congregação disse que os apedrejassem; porém a glória do Senhor apareceu na tenda da congregação a todos os filhos de Israel” (Números 14:6-10). Se não fosse a intervenção divina, eles teriam sido brutalmente mortos pela turba enfurecida. 

Não é nada fácil nadar contra a correnteza. É bem mais cômodo fazer coro com a maioria. Josué e Calebe não estavam apenas em oposição aos dez que prestaram relatório negativo, mas em oposição a todo o povo que queria apedrejar tanto eles, quanto Moisés e Arão. Quem em sã consciência faria uma coisa dessas? Não duvido que eles tenham ouvido inúmeras vezes  dos lábios de suas mães: “Você não é todo mundo!”

Só que agora, não se tratava de uma criança pedindo à mãe para ir ao cinema com os amigos, mas de dois homens que resolveram peitar a maioria por aquilo que consideravam justo, certo e bom. 

Deus não é comprometido com maiorias. Pelo contrário, na maior parte das vezes, Ele se revela através de uma minoria desprezada que ousa contrariar a opinião majoritária. Bem antes deste episódio, o Senhor já havia dado instruções acerca disso através de Sua Lei: “Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda falarás, tomando parte com a maioria para torcer o direito” (Êxodo 23:2).

Mais importante que estar com a maioria é ter a consciência de quem, de fato, está conosco. O mesmo Deus que interveio para impedir o apedrejamento dos dois, também interveio para impedir que uma mulher flagrada em adultério fosse sumariamente executada no pátio do templo. Deus e sua mania de se colocar em favor das vítimas...

A murmuração do povo de Israel custou-lhe muito caro. Daquela geração que saiu do Egito, somente Calebe e Josué entraram na terra prometida. Os demais, morreram no trajeto pelo deserto. Leia a sentença proferida pelo próprio Deus:

“Que os homens, que subiram do Egito, de vinte anos para cima, não verão a terra que jurei a Abraão, a Isaque, e a Jacó! porquanto não perseveraram em seguir-me; Exceto Calebe, filho de Jefoné o quenezeu, e Josué, filho de Num, porquanto perseveraram em seguir ao Senhor.” Números 32:10-12

Eis o valor de ser exceção! Todos ficaram pelo caminho, EXCETO Calebe e Josué. 

Não basta começar bem. Tem que terminar bem. Tem que concluir o trajeto. Tem que atravessar o Jordão e colocar a planta dos pés da Terra da Promessa. E isso tem um custo: PERSEVERAR EM SEGUIR AO SENHOR. E para tal, não dá para seguir a maioria quando esta se opõe aos desígnios divinos. 

Ser exceção tem ônus e bônus. O ônus está em aborrecer a maioria e correr o risco de ser engolido vivo, tachado de herege, vilipendiado, difamado, apedrejado. Mas o bônus supera todo ônus. O bônus é chegar onde se tem que chegar e concluir a missão que lhe foi confiada nesta vida. 

Quando Moisés morreu, coube a Josué comandar o povo de Israel na conquista daquela terra. A geração que adentrou Canaã não foi a que saiu do Egito, mas a que nasceu no deserto durante a jornada. 

Assim que atravessaram o Jordão, cada tribo requereu sua parte na herança. Calebe que já estava com seus 85 anos, não se fez de rogado e reivindicou de Josué sua porção: “Tu sabes o que o Senhor falou a Moisés, homem de Deus, em Cades-Barnéia por causa de mim e de ti. Quarenta anos tinha eu, quando Moisés, servo do Senhor, me enviou de Cades-Barnéia a espiar a terra; e eu lhe trouxe resposta, como sentia no meu coração; Mas meus irmãos, que subiram comigo, fizeram derreter o coração do povo; eu porém perseverei em seguir ao Senhor meu Deus. Então Moisés naquele dia jurou, dizendo: Certamente a terra que pisou o teu pé será tua, e de teus filhos, em herança perpetuamente; pois perseveraste em seguir ao Senhor meu Deus. E agora eis que o Senhor me conservou em vida, como disse; quarenta e cinco anos são passados, desde que o Senhor falou esta palavra a Moisés, andando Israel ainda no deserto; e agora eis que hoje tenho já oitenta e cinco anos; E ainda hoje estou tão forte como no dia em que Moisés me enviou; qual era a minha força então, tal é agora a minha força, tanto para a guerra como para sair e entrar. Agora, pois, dá-me este monte de que o Senhor falou aquele dia; pois naquele dia tu ouviste que estavam ali os anaquins, e grandes e fortes cidades. Porventura o Senhor será comigo, para os expulsar, como o Senhor disse. E Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, a Hebrom em herança” (Josué 14:6-13).

Não importava quão íngreme era o terreno, ou qual a estatura dos seus moradores; a única coisa que importava era que Calebe seguia com a mesma disposição e disponibilidade. O que se poderia esperar de um homem de 85 anos? O tempo não foi capaz de erodir sua coragem. Calebe seguia sendo uma exceção, e como tal, não morreu sem concluir sua vocação existencial.

Se a maioria desiste diante das circunstâncias, seja a exceção! Persevere! Se a maioria adere ao discurso de ódio, seja a exceção! Destile amor!

segunda-feira, maio 02, 2022

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O PRAZER DE SER PONTE

Por Hermes C. Fernandes

"Há muros que só a paciência derruba. E há pontes que só o carinho constrói." Cora Coralina

"Grande, no homem, é ser ele uma ponte, não um objetivo:  o que pode ser amado no homem é ser ele uma passagem e um declínio. Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem declina, pois são os que passam." Nietzsche

Há pessoas que recebem de Deus o dom especial de serem pontes. Sem o menor recato, disponibilizam-se para prover conexão entre os outros. Seu habitat natural são os bastidores. Os holofotes não as atraem. Como enceradeiras, contentam-se em trabalhar para fazer o chão brilhar.

Dentre os discípulos de Jesus, provavelmente André era o que apresentava esta característica. Seu nome vem do grego Andros, e significa “homem”. Um judeu com nome grego. Uma ponte entre duas culturas diametralmente diferentes.

André também serviu de ponte entre duas eras representadas pelos ministérios de João Batista e Jesus. Ele foi um dos dois discípulos de João que testemunharam quando este, vendo Jesus passar, disse: “Eis aqui o Cordeiro de Deus”. Não foi preciso nem uma palavra a mais. Imediatamente, André deixou a João para seguir a Jesus.

Tão logo encontrou a Jesus, André dirigiu-se a seu irmão, Simão Pedro, e contou-lhe: “Achamos o Messias (que, traduzido, é o Cristo). E levou-o a Jesus” (Jo.1:35-42). Portanto, ele também foi ponte entre Pedro e Jesus, sem jamais supor que seu irmão seria o príncipe dentre os apóstolos. Em momento algum André requereu tal posição por ter sido o primeiro a seguir a Jesus. Pelo contrário, contentou-se em ficar conhecido como  "o irmão de Simão Pedro".

Foi ele e seu irmão que ouviram de Jesus a promessa de que seriam feitos pescadores de homens. Considerando o significado de seu nome, Jesus estava dizendo que eles pescariam muitos outros “Andros” (Andrés), que por sua vez, também seriam pontes para tantos outros.

Quer estejamos na frente ou atrás das cortinas, todos somos chamados a sermos pontes.

Lemos em Hebreus que Jesus é o Sumo Sacerdote daqueles que se aproximam de Deus. No texto grego, Ele é o sumo pontífice, que quer dizer, a ponte principal que liga Deus aos homens. Somente Cristo poderia ser chamado assim, visto que “há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2:5). Todavia, quando ingressamos em Seu Corpo, tornamo-nos pontes de acesso para que outros afluam à Ponte Principal que nos conecta à Divindade. Por isso, Apocalipse 5:10 diz que somos um reino de sacerdotes (pontífices).

André também desempenhou papel importante na ocasião em que Jesus alimentou a multidão com apenas cinco pães e dois peixinhos. Ele foi a ponte entre Jesus e o menino que disponibilizou seu lanche. Enquanto Filipe, outros dos discípulos, calculava o custo que teriam para alimentar tanta gente, André tratou de se meter na multidão para garantir ao menos a comida do Mestre (Jo.6:8-9). Nem sempre temos a solução para um problema, porém, podemos ser ponte entre o problema e a solução. Sem a intervenção de André, a multidão teria saído faminta, e certamente, teria desfalecido pelo caminho. 

Filipes costumam ser racionais, ponderados. Andrés são mais impulsivos, intuitivos, agindo mais com o coração do que com a mente. Uns são pragmáticos e realistas. Outros, românticos e idealistas.

Quando alguns gregos vieram em busca de Jesus, Filipe ficou sem saber como agir e recorreu a André. Então, ambos os introduziram a Jesus (Jo.12:20-22). É bom que tenhamos Filipes, mas estes precisam ter Andrés que os estimulem a dar os passos necessários. Mais uma vez, André foi ponte

André foi um dos apóstolos que mais trabalharam para que o Evangelho alcançasse lugares longínquos, chegando até a Rússia. Conta-se que André foi crucificado numa cruz em forma de “X”. Durante os dois dias em que agonizou, despojou-se de suas vestes e bens, doando-os aos seus algozes. Mesmo em seus últimos momentos de vida, André não se negou a ser ponte. O que não lhe serviria mais, poderia ser bênção na vida de outros, mesmo que estes fossem seus piores inimigos.

quinta-feira, abril 28, 2022

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O DIABO É CRISTÃO, EXU NÃO!

Por Hermes C. Fernandes 

Sim, o diabo é cristão. Não estou dizendo que ele se converteu. Ele segue sendo o pai da mentira, nosso adversário. Então, o que quero dizer com isso? Refiro-me ao diabo como conceito e não como entidade. O conceito de um ser que seja a personificação do mal não é encontrado em qualquer outra tradição religiosa além da cristã. Portanto, dizer que uma entidade cultuada em uma religião de matriz africana é o diabo não passa de um grande equívoco, para não dizer, racismo. Jamais vemos Jesus se referindo a Zeus ou a Júpiter como diabo. Tampouco vemos os profetas do Antigo Testamento afirmando que Baal ou qualquer outro deus cananeu era o diabo. Portanto, não me parece justo que identifiquemos o diabo em entidades do candomblé ou da umbanda. 

Então, de onde vem a ideia de que a entidade conhecida como Exu seja o próprio coisa-ruim? Ela surgiu ainda antes que a escravidão foi instituída no Brasil, durante a colonização europeia da África no século XVI. Devido ao jeito irreverente, brincalhão, provocador, astucioso e sensual, como é representado nos cultos africanos, os colonizadores o identificaram com a figura de Satanás. Entretanto, deve-se ressaltar que na teologia yorubá, a figura de Exu não se opõe a Deus, tampouco é considerada uma personificação do mal. Nas religiões de matriz africana não existem demônios, diabos, entidades que sejam exclusivamente ruins como ocorre no cristianismo, religião na qual há anjos que se rebelaram contra Deus e se tornaram maus. Na teologia yorubá (de onde surgiram o candomblé e a umbanda), cada uma das entidades (Orixás) apresenta natureza ambígua, isto é, possui aspectos tanto positivos quanto negativos, semelhante aos próprios seres humanos. 

Quero deixar claro que, como cristão, seguidor de Jesus de Nazaré, não preciso abonar os elementos de uma religião para poder respeitá-la. E para tal, esforço-me para compreender sua cosmovisão, sua mitologia, e, por conseguinte, suas práticas. 

Sem conhecimento, qualquer conceito que se tenha não passa de preconceito. 

Cresci numa denominação neopentecostal onde cenas de exorcismo eram rotineiras. Protagonizei muitas delas. Em nome de Jesus, expulsei espíritos malignos que se identificavam como “exus”. A julgar pelas feições dos incorporados, pela entonação da voz, pelas mãos em forma de garras, não me restava dúvida: aquilo só poderia ser o coisa-ruim. Desvencilhar-me desta ideia foi um dos maiores desafios que enfrentei nesses trinta e cinco anos de ministério pastoral. 

Algumas pessoas me ajudaram a entender melhor o fenômeno, dentre elas, dois amigos psicólogos junguianos, ambos candomblecistas. Um deles frequenta nossa comunidade, ao lado de sua esposa, também psicóloga, membro de nossa congregação. O outro foi padrinho de casamento da minha esposa. Em ambos encontrei uma ética que não tenho encontrado em muitos dos que se dizem seguidores de Cristo. Foi com eles que aprendi que muito do que se pratica em nome dos Orixás não faz jus à rica tradição vinda do continente africano, sendo, portanto, uma deturpação da mesma. Algo análogo ao que acontece em muitas igrejas evangélicas que há muito deixaram os ensinamento de Jesus, substituindo-os por crendices e charlatanismo. 

Não me vejo em condição de criticar a religião alheia. Mas não faço vista grossa às idiossincrasias de minha própria religião. 

Antes de julgar as manifestações que meu preconceito considera bizarras, olho para dentro do meu próprio perímetro religioso e verifico que há fenômenos atribuídos ao Espírito Santo que não passariam pelo crio de meu senso estético se não fosse o meu temor em cometer o pecado imperdoável (a tal blasfêmia contra o Espírito Santo). 

Já ouvi profecias em que Deus supostamente falava através do “vaso” algo de tipo: “Eu não sei onde é que estou com a cabeça que não te fulmino agora mesmo!” Você conseguiria imaginar tais palavras nos lábios de Jesus? Ora, se o diabo se faz passar por “anjo de luz”, por que cargas d’água não se faria passar por Exu ou por qualquer outra entidade com o objetivo de acirrar ainda mais o clima de guerra santa entre crentes e fiéis de religiões de matriz africana? Se ele é o pai da mentira, conforme diz Jesus, por que daríamos crédito a qualquer coisa que ele dissesse? Por que pastores insistem em entrevistar esses diabos em seus cultos midiáticos? Sem contar que muitas destas manifestações não passam de histeria ou encenação de quem almeja algum tipo de atenção especial.  

Quero propor aqui um teste para avaliar o quanto somos preconceituosos.

Seguem abaixo duas histórias, uma extraída da Bíblia e outra da tradição oral do povo yorubá. 

“Exu havia feito uma espada de dois gumes, de quarenta e cinco centímetros de comprimento, e a tinha amarrado na coxa direita, debaixo da roupa. Ele entregou o tributo a Awujale, Obá de Oió, homem muito gordo. Em seguida, Exu mandou embora os carregadores. Junto aos santos que estão perto de Ijebu, ele voltou e disse: "Tenho uma mensagem secreta para ti, ó Obá". O Obá respondeu: "Calado! " E todos os seus auxiliares saíram de sua presença. Exu aproximou-se do Obá, que estava sentado sozinho na sala superior do palácio de verão, e repetiu: "Tenho uma mensagem de Olorum, para ti". Quando o Obá se levantou do trono, Exu estendeu a mão esquerda, apanhou a espada de sua coxa direita e cravou-a na barriga do Obá. Até o cabo penetrou com a lâmina; e, como não tirou a espada, a gordura se fechou sobre ela. Então Exu saiu para o pórtico, depois de fechar e trancar as portas da sala atrás de si. Depois que ele saiu, vieram os servos e encontraram trancadas as portas da sala superior, e disseram: "Ele deve estar fazendo suas necessidades em seu cômodo privativo". Cansaram-se de esperar, e como ele não abria a porta da sala, pegaram a chave e a abriram. E lá estava o seu senhor, caído no chão, morto! Enquanto esperavam, Exu escapou. Passou pelos santos e fugiu para Seirá.”

“Certo homem, lavrador, que precisava de chuvas para irrigar seus campos secos ofereceu um sacrifício a Elohim. No entanto, preparou-o de forma displicente. Elohim enviou chuva em abundância, fazendo com que a água jorrasse incessantemente, inundando e destruindo toda a plantação. Logo após, o lavrador ofereceu um novo sacrifício, mas desta vez, de maneira zelosa. Agradando-se Elohim, fez cessar a chuva.”

Você saberia identificar qual história é extraída das Escrituras e qual é da tradição oral yorubá?

A julgar pelos nomes usados, a primeira teria vindo a tradição yorubá e a segunda de algum texto do Antigo Testamento, certo?

Na verdade é exatamente o inverso. Apenas troquei os nomes. A primeira é extraída do livro de Juízes. Em vez de Exu, lê-se Eúde (Juízes 3:16-26). A segunda é da tradição yorubá. Em vez de Elohim, lê-se Exu. 

Assim como as entidades veneradas nos cultos africanos, Yaweh, a divindade hebreia também chamada de Elohim no Antigo Testamento, pedia sacrifícios de animais. Em Gênesis 8:20 lemos que o Yaweh se agradou do cheiro suave do sacrifício oferecido por Noé e em razão disso, decidiu nunca mais destruir os seres vivos como o fez no dilúvio. 

Repare, a percepção que os antigos hebreus tinham de Deus não difere muito da percepção que a cultura yorubá tem de suas divindades. Atribuir características claramente humanas à divindade é chamado pelos teólogos de Antropomorfismo. Dentre essas características está a ambiguidade. No Antigo Testamento, Deus é bom, mas também vingativo. Deus cria, mas também destrói. Deus é misericordioso, mas também justo e santo. 

Jesus veio corrigir nossa percepção acerca da divindade, introduzindo o conceito de paternidade divina. O Deus de Jesus é Pai de todos os seres vivos. Quando dois de Seus discípulos sugeriram que se pedisse a Deus para enviar fogo do céu para destruir os samaritanos que se negavam a recebê-los em sua aldeia, eles tomaram como referência o profeta Elias que havia pedido fogo do céu para consumir os profetas de Baal. Sabe qual foi a resposta de Jesus a este inusitado pedido? “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lucas 9:55,56).

E que tal as passagens abaixo?:

“Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo! E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.” 2 Reis 2:23,24

O personagem em questão é ninguém menos que o profeta Eliseu, o sucessor de Elias. Nada vingativo o profeta, não? Você consegue enxergar nesta atitude algo que se assemelhe a Jesus? Absolutamente, não! Com Jesus a gente aprende a perdoar.

A mesma característica vingativa encontrada em Eliseu pode ser vista no mito yorubá de Exu, como na vez em que ele levou dois amigos camponeses a uma luta de morte. De acordo com esse mito, Exu, furioso, por não ser louvado pelos camponeses pôs-se no caminho dos dois, na divisa das duas roças, tendo um a sua direita e outro a esquerda. Exu utilizou-se de um boné de um lado branco e do outro vermelho, de forma que cada camponês via apenas uma cor. A verdade sobre a cor do boné do estrangeiro, Exu, provoca discussão entre os amigos e acaba na morte de ambos a golpes de enxada. 

Ambíguo como a própria natureza humana, encontramos na figura de Exu tanto qualidades, quanto vicissitudes. Ele é vingativo, mas também se revela humilde com relação aos demais orixás, razão pela qual “o mais novo dos orixás, o que era saudado em último lugar, passou a ser o primeiro a receber os cumprimentos. O mais novo foi feito o mais velho. Exu é o mais velho, é o decano dos orixás.” Estas palavras encontram eco nas célebres palavras de Jesus: “Pois há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (Lucas 13:30). 

Dado à sua condição humana ambígua, personagens bíblicos como Eliseu, Elias, Davi e Moisés revelam traços de caráter completamente opostos aos de Jesus, mas também expressam algumas das características mais marcantes encontradas n’Ele. Tais personagens nos servem de referências e lembretes de nossa própria ambiguidade, porém, o padrão que devemos seguir é Cristo em quem não há mudança, nem sombra de variação. É disso que fala o episódio bíblico conhecido como Transfiguração. De repente, Moisés e Elias aparecem conversando com Jesus no monte, e os discípulos ouvem do céu uma voz que diz: “Este é o meu Filho amado, a Ele ouvi” (Lucas 9:35).

E quanto ao diabo? Ele seria a antítese de Cristo. Se Cristo é a luz, o diabo é a sombra. Se Cristo é o caminho, o diabo é a cancela. Todavia, ele não é tudo o que muitos crentes acreditam que seja. Ele não é e jamais foi páreo para Deus. Ele não é o rei do inferno. Ele não é rei de nada. Se fosse tão somente uma entidade qualquer, não haveria tanto com que nos preocupar. Mas ele é um arquétipo arraigado no inconsciente coletivo. O mal não está fora de nós, mas impregnado em nossa própria natureza. Como no filme “O Diabo de Cada Dia”, o mal se faz presente nos lugares mais inusitados, mesmo numa típica cidade interiorana do cinturão bíblico dos EUA. Ao enxerga-lo meramente como uma entidade que se opõe a Deus, nós o transformamos na desculpa perfeita para os nossos erros, no bode expiatório por excelência dos que não assumem a responsabilidade por suas atitudes. 

Independentemente do credo que professemos, o mal nos acompanha, seja latente ou patente. Como disse Paulo, o apóstolo, “eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18). Preferimos, entretanto, ignorar isso, atribuindo o mal ao outro, ao diferente, à sua crença, às entidades que venera. Se há quem recorra a Exu para fazer o mal, também há quem recorra a Deus em busca de vingança. O despacho numa encruzilhada não é muito diferente do sacrifício de subir a um monte no afã de convencer a Deus a destruir seus inimigos. 

Como seguidor de Jesus, desejo que meus amigos candomblecistas e umbandistas conheçam Sua mensagem e se deixem conquiste por Seu amor incondicional. Mas não alcançarei tal objetivo enquanto não aprender a dialogar, a construir pontes e, sobretudo, a respeitar suas crenças e valores.  

Definitivamente, o problema somos nós. Daí a insistência de Cristo, dos profetas e apóstolos, a que nos convertamos e façamos o bem, motivados exclusivamente por amor. Para tal, temos que admitir nossa sombra e buscarmos a iluminação de nossa consciência.

sábado, abril 23, 2022

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EXORCIZANDO O FANTASMA DO FUNDAMENTALISMO

Por Hermes C. Fernandes

“Um retorno às raízes”, diriam os promotores deste movimento. Seu objetivo é o retorno aos que são considerados  princípios fundamentais ou vigentes na fundação de seu grupo.

O fundamentalismo surgiu como um movimento nos Estados Unidos, começando entre os teólogos conservadores presbiterianos no Seminário Teológico de Princeton no final do século XIX, logo se espalhando entre os conservadores batistas e de outras denominações entre os anos de 1910-1920. O propósito do movimento era de reafirmar antigas crenças dos cristãos protestantes que zelosamente as defendiam contra a teologia liberal, alto criticismo, o darwinismo, e outros movimentos que consideravam como ameaçadores ao cristianismo.

Dentre os fundamentos defendidos , nenhum se destacou tanto quando a inspiração da Bíblia pelo Espírito Santo, e sua inerrância e literalidade. A teoria da evolução era contrastada com a descrição da criação contida nos primeiros capítulos de Gênesis. Entre crer que o homem foi resultante de um longo processo de seleção natural ou crer que ele foi literalmente moldado do barro, os fundamentalistas preferiam crer no segundo caso. Em vez de crer que o universo teria cerca de 15 bilhões de anos, tendo sido iniciado com o big bang, preferiam crer que ele não teria mais do que seis mil anos e que teria sido criado em seis dias literais. Para o fundamentalista, sem que estes alicerces sejam garantidos, a fé cristã não se sustenta. Se Adão não foi um personagem real, logo, Jesus não poderia ser chamado de o último Adão. 

O Fundamentalismo, portanto, é um movimento pelo qual os partidários tentam salvar a identidade religiosa da absorção pela cultura ocidental moderna, ainda que para isso, recorra à segregação em maior ou menor grau. Algo análogo ao proposto por alguns grupos sectários do tempo de Cristo, tais como os fariseus e os essênios, que tentavam impedir que os judeus cedessem ao processo de helenização de sua cultura. A diferença entre eles era que os fariseus eram uma resistência interna, recusando-se a se ausentar da sociedade, enquanto os essênios preferiram abandonar o convívio social com seus patrícios e formar comunidades à parte. Mesmo entre os cristãos primitivos, haviam os que poderíamos chamar de fundamentalistas, pois propunham um retorno à Lei de Moisés, rendendo-lhes a alcunha de judaizantes. Para estes, um gentio convertido à fé cristã, deveria cumprir as exigências da lei mosaica, tanto quanto um judeu. 

Os fundamentalistas creem firmemente que a sua causa é de vital, grave e cósmica importância, vendo a si mesmos como protetores de uma única, reta e distinta doutrina, modo de vida e de salvação. O muro doutrinário erigido pelos fundamentalistas visa proteger a identidade do grupo,  não só em oposição a religiões estranhas, mas também contra os modernizadores, os que aderem ao diálogo com outras tradições e com a ciência. 

De fato, suas propostas exercem certo poder de atração sobre os que abraçam a fé no evangelho. Parece razoável lutar por sua pureza e pela preservação de sua identidade. Teme-se que a fé se dilua de tal maneira que acabe perdendo sua relevância e credibilidade. O liberalismo teológico e sua proposta de repensar o cristianismo a partir de lentes modernas tornou-se seu arqui-inimigo. O cenário atual das igrejas na Europa é usado como prova de que o liberalismo tende a matar o cristianismo, tornando-o obsoleto.  Mas o que parecem desconhecer é que o que minou a credibilidade do cristianismo na Europa foi justamente o apoio dado por cristãos fundamentalistas às agendas políticas de exploração e opressão. Não foram os liberais que apoiaram Hitler, mas os fundamentalistas.

O único retorno que o Cristo pede de Seu povo é uma volta ao primeiro amor (Apocalipse 2:4-5). Não se trata de ter as mesmas opiniões dos cristãos primitivos acerca de tudo, mas de, conforme Paulo, “ter o mesmo sentimento que houve em Cristo” (Filipenses 2:5).  Não é possível enxergar o mundo com as lentes pré-modernas. Seria um suicídio intelectual.  Porém, como disse Jesus, se nossos olhos forem bons, todo o nosso corpo será luminoso. Deixaremos de ser propagadores de ódio e preconceito, e seremos propagadores da mais subversiva mensagem de Cristo: o amor.  Eis o fundamento da nossa fé. Por isso, Paulo afirma que o que importa é a fé que opera pelo amor (Gálatas 5:6).

Em vez de nos fundamentar em dogmas passíveis de revisão, devemos estar ”arraigados e fundados em amor” (Efésios 3:17). Afinal, como concluiu o apóstolo, até mesmo as profecias passarão, mas o que deve permanecer até o fim são “a fé, a esperança e o amor, mas o maior deste é o amor” (1 Coríntios 13:13).

domingo, abril 17, 2022

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A VITÓRIA DA VIDA SOBRE A MORTE EM 7 ROUNDS

Por Hermes C. Fernandes 

Atenção senhoras e senhores! É chegado o momento da tão esperada luta! A luta dos séculos! De um lado, com Seu manto sem costura, diretamente da Eternidade, o Autor da Vida (At.3:15). Do outro lado, seu oponente, com sua aparência notadamente cruel, empunhando uma foice, diretamente do Inferno, a Morte (Rm.5:12).

Começa o primeiro round! A morte se apressa a entrar no ringue usando o fácil acesso pelo corredor do pecado. O primeiro golpe é desferido pela morte. Ela parte com tudo, pronta a estabelecer sua supremacia no ringue do mundo. Depois de seis golpes consecutivos, finalmente a vida reage, driblando um golpe fatal:

“Andou Enoque com Deus; e já não era, porque Deus para si o tomou” (Gn.5:24).

Sob o protesto da Morte, Deus remove do mundo dos viventes o sétimo ser humano, sem que passe pela morte. O round estava perto de terminar. Ouve-se um clamor desde a Terra. Elias, o profeta do fogo, clama a Deus por um menino morto, e ele revive (1 Reis 17:22).

Pela primeira vez na História um morto volta à vida. A Morte parece ter baixado a guarda. E enquanto ela se questionava onde havia falhado, eis que mais uma vez ela é driblada. Mais um ser humano é tomado da Terra sem passar pela sepultura. Elias sobe ao céu num redemoinho (2 Reis 2:11).

Toca o gongo, e começa o segundo round. A morte já pensava em jogar a toalha, quando o homem que foi arrebatado ao céu, lança de seu veículo celestial um manto, que logo é apropriado por seu discípulo Eliseu.

Eliseu havia pedido a Elias que lhe fosse dado uma porção dobrada do seu espírito. Agora era esperar para conferir. Logo de cara, a Morte experimenta a sensação que os humanos apelidaram de Dejá Vu:

Atendendo ao apelo de uma mãe desesperada, Eliseu clama ao Senhor, que restitui a vida de seu filho morto (2 Reis 4:32-35). Mais uma ressurreição em plenas páginas do Antigo Testamento! Cada milagre operado por Eliseu era contabilizado pelo seu oponente, a Morte. Será que ele também driblaria a própria morte, e seria arrebatado ao céu como o seu mestre?

Morre Eliseu. A Morte celebra. O profeta morreu sem completar o número de milagres que confirmasse que seu pedido fora atendido. Com mais um milagre, Eliseu teria completado exatamente o dobro de milagres operados por Elias. Termina o segundo round. Ufa! Que alívio para a Morte. Finalmente as coisas parecem melhorar para o seu lado.

Começa o terceiro round. Quando a Morte celebrava, algo inusitado acontece:

“Enquanto alguns enterravam um homem, de súbito viram um bando de invasores, e lançaram o homem na sepultura de Eliseu. Quando o cadáver tocou os ossos de Eliseu, o homem reviveu, e se levantou sobre os seus pés” (2 Reis 13:21). A Morte esbraveja: - Isso é golpe baixo! Mais um que ressuscita! Eu preferia que Eliseu tivesse sido arrebatado ao céu, como Elias, em vez de me dar mais este prejuízo!

Hora te retomar o fôlego. Depois de um prolongado tempo de recuperação, a luta recomeça.

No quarto round, eis que entra no ringue o próprio Autor da Vida.A Morte se enfurece, e se prepara pra levar uma surra.

Em seu primeiro encontro com a Morte, Jesus é convidado a visitar a filha de Jairo, um importante figurão do templo. Enquanto caminhava, é interrompido por uma mulher que sofria a doze anos de uma hemorragia crônica. Aquela mulher estava morrendo à prestação! Jesus a cura, depois de ser tocado por ela. E quando volta à sua caminhada rumo à casa de Jairo, recebe a notícia de que a menina havia morrido. Em vez de desistir de visitá-la, Jesus prossegue em sua jornada. Aquela menina tinha apenas doze anos, tempo de vida que correspondia ao tempo de sofrimento da mulher que acabara de ser curada. Enquanto a Morte tirava a vida daquela mulher hemorrágica à prestação, tirou a vida daquela menina com apenas uma tacada. “Ao entrar, lhes disse: Por que vos alvoroçais e chorais? A menina não está morta, mas dorme. Tomando-a pela mão, disse: Talita cumi, que quer dizer: Menina, eu te ordeno, levanta-te. Imediatamente a menina, que tinha doze anos, levantou-se e começou a andar” (Marcos 5:39, 41-42).

Pela primeira vez, alguém do sexo feminino ressuscitara. Para quebrar um tabu, valorizando a mulher, Jesus traz uma menina de volta à Vida. Não se contentando em ressuscitá-la, Jesus ainda despreza a Morte. Para Ele, a Morte não passa de um estado de sonolência. Ela não é o bicho-papão que os homens imaginam.

Começa o quinto round. Jesus Se depara com uma mãe desesperada, viúva, que perdera seu filho único que era seu arrimo e esperança.

“Quando chegou perto da porta da cidade, levavam um defunto, filho único de sua mãe, que era viúva. E com ela ia uma grande multidão da cidade. Vendo-a, o Senhor sentiu grande compaixão por ela, e lhe disse: Não chores. Chegando-se, tocou o esquife e, parando os que o levavam, disse: Jovem, a ti te digo: Levanta-te. O defunto assentou-se, e começou a falar, e Jesus o entregou à mãe dele” (Lucas 7:12-15).

Jesus e Sua mania de quebrar tabus e protocolos!

Primeiro, Ele Se deixa tocar por uma mulher hemorrágica. Pela Lei, isso o tornava impuro. Agora Ele toca no esquife onde estava um cadáver, o que era considerado um grave erro, e O tornava ainda mais impuro. Não importa. O que importa é que mais um morto ressuscitara.

Começa o sexto round. No primeiro caso, Jesus ressuscita uma menina que acabara de morrer. No segundo caso, ele interrompe um cortejo fúnebre. Em ambos os casos, Ele lidara com pessoas com quem não tinha qualquer relacionamento. Mas agora, Ele enfrentaria a Morte mais de perto. Seu amigo Lázaro morrera. O mesmo Jesus que pediu à viúva que perdera seu filho para que não chorasse, agora chora diante do túmulo de um de Seus mais chegados amigos. Além disso, diferentemente dos outros dois casos, Lázaro já estava morto e enterrado há quatro dias. Uma coisa é ressuscitar alguém que acabou de morrer, ou alguém que está a caminho do cemitério, outra coisa é ressuscitar alguém que já está em estado avançado de decomposição. O grau de dificuldade só foi aumentando.

Com os olhos lacrimejando, Jesus Se coloca diante do túmulo de Lázaro e brada: “Lázaro, vem para fora!”. Surpreendentemente, o morto retorna à vida, e escapa das garras insaciáveis da Morte (João 11:43-44).

A luta parece estar chegando ao fim.

É chegado o sétimo e último round da luta entre o Autor da Vida e a Morte. Chegara a hora de Jesus encarar a Morte cara a cara. Para enfrentá-la em seu próprio terreno, Jesus, o Filho do Deus Vivo, teve que Se fazer homem, com todas as limitações inerentes à condição humana, exceto o pecado. O escritor sagrado diz que Ele participou da natureza humana, “para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo; e livrasse a todos os que , com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à escravidão” (Hebreus 2:14-15).

A Cruz foi momento crucial (será que cometi redundância?). Foi ali que se deu o embate final entre a Vida e a Morte. Assim como a vitória de um corredor de fórmula 1 se dá na pista e não no pódio, a vitória de Cristo se deu na Cruz e não na Ressurreição.

Enquanto alguns vêem na Cruz a derrota de Cristo, e na Ressurreição a Sua reabilitação, a Bíblia declara que na Cruz Ele despojou os principados e potestades, e toda a gangue do inferno, e os expôs publicamente ao desprezo. Na Cruz a Morte foi desmoralizada. A Ressurreição foi o momento em que o Juiz levanta os braços do pugilista vencedor e o declara campeão. Paulo, apóstolo, afirma que Jesus foi declarado Filho de Deus com poder, segundo o Espírito da santidade, pela ressurreição dos mortos” (Rom.1:4).

Sua Ascensão/Entronização foi a premiação, o momento em que Jesus recebe o cinturão de Campeão dos Campeões.

Há algo que passa despercebido por muitos. Leia e surpreenda-se com o que diz Mateus 27:52-53:

“Abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressurgiram. E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos.”

Interessante o contraste entre Jesus e outro pugilista: Sansão. É dito que Sansão matou em sua morte maior número de inimigos do que durante sua vida inteira. Podemos dizer que Jesus ressuscitou em Sua ressurreição maior número de pessoas do que durante Seu ministério terreno.

Aquela ressurreição coletiva foi uma espécie de avant premier do que vai acontecer no último dia; uma amostra grátis da ressurreição geral. Jesus atesta sobre isso:

“Não vos maravilheis disto, pois vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão: Os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida, e os que praticaram o mal, para a ressurreição da condenação” (João 5:28-29).

A vitória de Cristo sobre a Morte não foi por pontos. Foi por nocaute !

Não teremos que enfrentar a Morte. Ele já a desbaratou por nós, e nos garantiu que quem n’Ele crer jamais a verá, pois já passou da morte para a vida.

A exemplo de Estevão, quando deixarmos este mundo, nos encontraremos imediatamente com o Autor da Vida. E por isso, podemos debochar da Morte, como fez Paulo:

“Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó morte, a tua vitória?” (1 Coríntios 15:55).


Hermes C. Fernandes