segunda-feira, outubro 05, 2015

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Vidas Cruzadas



Por Hermes C. Fernandes

Meu nascimento foi motivo de orgulho para os meus pais. O nome que me deram significa “iluminado”. Fui criado para ocupar o lugar de prestígio que hoje ocupo. Não foi fácil, mas cheguei. Hoje sou o principal da sinagoga. Cada vez que assumo o púlpito, sinto-me o homem mais importante do mundo, o porta-voz da Lei e dos Profetas. Sou responsável por manter a lei e a ordem em minha comunidade. Todos me ouvem, respeitam e reverenciam.

Mas nem tudo é como sempre quis. Nem todas as minhas orações foram atendidas. Como todo bom judeu, sempre pedi a Deus para que jamais me desse uma filha. Afinal de contas, Ele é conhecido como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e não como o Deus de Sara, Rebeca e Raquel. Mas por alguma razão, Ele resolveu me castigar. Quando eu partir, meu lugar não será ocupado por alguém em cujas veias corra o meu sangue. Um nome tão importante quanto meu, não poderá ser perpetuado.

Se em vez de uma menina, o Eterno houvesse me dado um garoto, faltaria apenas um ano para o seu bar-mitzvá, a festa que marca a passagem do menino para a vida adulta. Em vez disso, tudo o que tenho agora é uma menina doente à beira da morte. Foi necessário que ela adoecesse gravemente para que eu descobrisse o quão importante é na minha vida.

Apesar de não ser o que pedi a Deus, ela é tudo o que tenho. Nos seus doze aninhos de vida, aprendi a amá-la. Seu jeitinho meigo me conquistou. O que será de mim se perdê-la? Todo o conhecimento que tenho das Escrituras, o prestígio de minha posição na sinagoga, parecem não valer de nada nesta situação.

Ouvi falar de um rabino da Galileia que tem poderes místicos. Dizem que ele levanta paralíticos, restaura a vista de cegos e que até já ressuscitou um morto, filho de uma viúva de um vilarejo chamado Naim. Mas ele é um herege. Por causa dele, as sinagogas se esvaziaram. As pessoas preferem ouvi-lo nas ruas e praias a nos ouvir no conforto de um lugar apropriado para cultuar a Deus. Seus ensinos são completamente heterodoxos. Ele até aceita mulheres entre seus discípulos. Dizem por aí que são elas que bancam seu ministério itinerante. Onde já se viu uma coisa dessas? Mas talvez ele seja a minha única esperança.

O único problema será lidar com a repercussão. O que dirão outros príncipes das sinagogas quando souberem que recorri a ele? Já não basta o fato de ser o único dentre eles que não poderá ser sucedido por seu filho?

Tenho que fazer algo urgentemente, antes que seja tarde demais. Minha filha não pode esperar. Quer saber? Às favas com a minha reputação.

Por sorte, justamente agora, na hora do meu desespero, o tal mestre da Galileia vem passando por aqui. Preciso chamar-lhe a atenção. Não quero que me veja como um rival descontente por estar perdendo o público. Já sei! Vou me lançar aos seus pés e rogar encarecidamente que vá à minha casa e cure a minha princesinha.

Funcionou! Ele aceitou o meu pedido. Mas será que esta multidão não poderia se afastar um pouco? Não estou acostumado com tanto empurra-empurra. 

Espera aí. Acho que conheço aquela mulher. O que ela faz aqui? Lembro-me muito bem dela. Precisamente na época em que nasceu minha filha, tive que ordenar que se afastasse do convívio social por causa de sua hemorragia crônica. Não fiz isso por maldade. Estava apenas cumprindo a lei. Só não podia imaginar que sua reclusão demoraria tanto. Achei até que já estivesse morta. Quem poderia sobreviver a doze anos de sangramento? Só não me lembro de ter dado permissão para que ela voltasse a transitar assim livremente.

É impressão minha ou ela está tentando se disfarçar? Acho que ela notou que eu a percebi. Tenho que tomar alguma providência. Ela está desafiando a minha autoridade. Será que Jesus não sabe de sua condição? Ele deveria repreendê-la por descumprir a lei!

Eu ouvi bem ou estou alucinando? Jesus está perguntando quem o tocou? É isso mesmo? Ora, ora, tanta gente aqui, apertando-o, oprimindo-o, empurrando-o. Que pergunta mais descabida!

Jesus, tenho pressa! Não fique aí se distraindo com essa gente. Minha filha está à beira da morte.

Com quem ele está falando? Por que interrompeu sua caminhada?

Não! Não pode ser! Ele está falando com aquela mulher. Deixe-me aproximar. Preciso saber o teor da conversa. Provavelmente, ele está repreendendo-a e mandando-a de volta para casa. Até que enfim. Quando tudo isso houver passado, vou cuidar disso pessoalmente. Esta mulher não pode ficar impune. Ou será que ela se esqueceu de que a lei diz que qualquer um que a tocar se torna impuro? Tanto ela, quanto quem a tocar devem ser apedrejados. Pensando bem... a situação é mais grave do que imagino. No meio desta confusão toda vai ser difícil saber quem a tocou. Terei que fazer uma sindicância. Na verdade, isso deveria ser feito agora mesmo. Depois que as pessoas se dispersarem, será impossível descobrir quem a tocou ou se deixou tocar por ela. Meu Deus, onde é que estou com a cabeça? Minha filha morrendo, e eu aqui preocupado com formalidades da lei. Mas não é para isso que ocupo a posição de príncipe da sinagoga? Mas se me distrair com isso, Jesus não chegará a tempo para curá-la. Quer saber?  Já fiz vista grossa para tanta coisa na vida... E pelo jeito, Jesus está cuidando da situação. Já estou bem perto deles. Deixe-me ouvir o que ele está dizendo a ela.

O que? Não pode ser. Recuso-me a crer no que acabo de ouvir. Jesus se deixou tocar por ela? Então, ele agora está imundo. Como poderei recebê-lo em minha casa? Isso comprometeria a pureza do meu lar. O fato de tê-la curado, estancando sua hemorragia, não atenua sua culpa. Mesmo curada, ela deveria esperar sete dias até que pudesse circular novamente. E isso teria que passar por mim. Na ausência de sacerdotes, sou a maior autoridade espiritual da área. Despedindo-a em paz, Jesus está passando por cima da minha autoridade. Meu Deus, que situação constrangedora.

Preciso de uma desculpa para me livrar desta saia justa. Alguém que não respeita a lei não pode ser um enviado de Deus.

Um amigo de ofício chegou na hora certa para me dar as últimas notícias da minha filha. Jesus não precisa mais se dar o trabalho de ir à minha casa. Minha filha acabou de falecer.

Doze aninhos! Ela parecia tão bem até um dia desses, brincando com outras crianças, gritando meu nome e correndo para os meus braços quando eu chegava. De repente, a luz se apagou. Tudo tão rápido.

Se aquela mulher não houvesse distraído Jesus, talvez houvesse dado tempo de evitar esta tragédia. Será que ela não poderia ter esperado um pouco mais? Pensando bem, ela começou a morrer quando a minha filha começou a viver. E agora, ela voltou a viver quando minha filha acabou de morrer. Doze anos! Para uma, doze anos morrendo à prestação. Para a outra, doze anos de vida escapando subitamente por entre os dedos.

Doze anos me lamentando por ter tido uma filha em vez de um filho que pudesse me suceder. Doze anos em que minha alma sangrou pelas frestas abertas pelo meu preconceito. Como gostaria de voltar atrás! Eu teria valorizado cada segundo da vida de minha princesa.

Como ele ousa insistir ir à minha casa? Eu já lhe disse que minha filha morreu? Crer somente? É isso que ele requer de mim? E o que, afinal, significa “crer somente”? Minha mente está um turbilhão? Minha reputação foi destruída no momento em que me prostrei diante dele. Minha autoridade foi desafiada quando ele se deixou tocar por aquela mulher e ainda a despediu em paz. E para completar minha desgraça, recebo a notícia de minha filha está morta. Como posso “crer somente”?

Mas se ele insiste, tudo bem. O problema é que ao entrar em minha casa, por haver sido tocado por aquela mulher imunda, ele a tornará igualmente impura. Sua presença vai profanar o meu lar. Só me faltava esta! Ter meu lar profanado. Tudo o que me sobrou irá por água a baixo.

Minha filha! Por que me deixou tão cedo?

Ele está pedindo para que não choremos? Está dizendo que ela não está morta, mas apenas dorme? De onde tirou isso? Como pode brincar assim com a nossa dor?

Ele a está tocando? Mas ela está morta! A lei diz que isso o torna imundo! Não se pode tocar num cadáver! Mas pensando bem, ele já estava imundo ao se deixar tocar por aquela mulher. Ora, para quem já está molhado, que diferença faz uma gota d’água?

Não acredito no que meus olhos estão vendo! Ele a está levantando. Meu Deus! Minha filha voltou à vida!  Que homem é este capaz de trazer de volta os mortos? Quem é este que estancou a hemorragia da minha alma? Que me fez dar maior valor à vida do que às tradições? Finalmente, poderei fazer jus ao nome que recebi dos meus pais. Hoje sou Jairo, o iluminado, porque Jesus refletiu sobre mim a Sua luz.


* Baseado em Lucas 8:40-55, Levítico 15:25, 27-28 e Números 19:11-14


3 comentários:

  1. Lírico e lúcido! Parabéns pela releitura, parabéns por destacar pontos que são cruciais, os quais, todavia, poucos elencam. Jesus foi o maior revolucionário que o mundo já conheceu, Ele instaurou a Revolução do Amor e da Graça, uma pena que a religiosidade tente a todo custo manchar a Reconciliação.

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  2. Maravilhoso a forma que foi abordado o texto, a forma que foi demonstrou os acontecimentos, foi tão profundo...
    Na verdade, achei muito interessante pelo fato que você foi bem ao fundo de nossa mente e confrontou nosso próprios pensamentos em relação a muitas outras coisa ( preconceito ). Vlw e continue usando esse dom.
    Abraços

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  3. Simplesmente, maravilhoso! Que texto lindo!

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