“Se não formos capazes de
viver inteiramente como pessoas, ao menos
façamos tudo para não viver
inteiramente como animais.” ― Saramago
Por Hermes C. Fernandes
No final dos
anos 1960, o psicólogo social Philip Zimbardo da Universidade de Stanford
(EUA), realizou um experimento em que duas viaturas idênticas foram abandonadas
em vias públicas. Uma delas foi deixada no Bronx, zona pobre de Nova York, então
conhecida por seu alto índice de criminalidade. A outra foi deixada em Palo
Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Em poucas horas, a viatura
abandonada no Bronx foi vandalizada. Levaram suas rodas, espelhos, rádio e até
o motor. O que sobrou dela foi totalmente destruído. Já a viatura deixada em
Palo Alto manteve-se intacta por uma semana. Não se dando por satisfeito, o
pesquisador quebrou uma das janelas do veículo e afastou-se para ver o que
aconteceria. Em pouco tempo, o carro foi totalmente depenado, da mesma maneira
que ocorreu no Bronx. O psicólogo concluiu que o delito não se deu devido à
pobreza, haja vista que o carro estava numa região rica e supostamente segura.
O fato é que, uma janela quebrada numa viatura abandonada em via pública transmite
a ideia de deterioração e desinteresse, informando aos transeuntes de que
ninguém se importava, provocando, assim, uma reação inusitada de depredação.
Tomando por
base esta experiência, dois criminologistas da Universidade de Harvard, James
Wilson e George Kelling,[1]
desenvolveram a Teoria das Janelas Quebradas, que afirma, entre outras coisas,
que o delito é sempre maior em zonas onde prevaleça o descuido, a sujeira, e a desordem. Segundo esta teoria, se uma janela de um edifício aparece
quebrada sem que ninguém a conserte, logo todas as outras estarão igualmente
quebradas. Deve-se resolver os problemas quando ainda estão pequenos,
impedindo, assim, que se agigantem e se perca o controle sobre eles. Em 1990,
os autores foram enviados a Nova York onde desenvolveram um trabalho no metrô
para comprovar sua teoria. Eles apostaram que se as “janelas quebradas” fossem
arrumadas, a delinquência seria reduzida. Em outras palavras, se o lixo fosse
recolhido, os ratos não encontrariam o ambiente perfeito para se proliferarem.
A partir daí,
a polícia começou a combater os pequenos delitos, como entrar sem pagar,
urinar, mendigar e pichar as paredes das estações e os trens. Meses depois, a
delinquência no metrô de Nova York havia caído 75%. Aos poucos, a mesma
política começou a ser adotada em outros lugares, tais como praças e parques,
obtendo resultado semelhante. Animado
com o resultado, em 1994, o prefeito Rudolph Giuliani adotou uma política de
combate ao crime que se tornou conhecida como “Tolerância Zero”. A expressão
que soava repressiva e autoritária, foi responsável por impulsionar a
popularidade do prefeito e recuperar a confiança dos nova-iorquinos na
segurança pública.
Lembro-me
perfeitamente da primeira vez em que visitei Nova Iorque em 1991, fui advertido
por um transeunte por causa da filmadora que carregava comigo a tiracolo na
região da Broadway. Depois da implementação desta política, voltei várias vezes
à cidade, e presenciei famílias inteiras transitando pelas ruas da cidade tarde
da noite em completa segurança.
O termo “tolerância
zero” virou até bordão nos lábios do Seu
Saraiva, personagem vivido pelo saudoso ator e comediante Francisco Milani no
programa Zorra Total da Rede Globo de Televisão. “Como é assim”, dizia ele em
tom sarcástico, “pergunta idiota, tolerância zero!”[2]
Não precisa
grande esforço para perceber que o título do livro que estou prestes a lançar foi inspirado no termo
usado para designar a política responsável por coibir o avanço da criminalidade
em Nova York. Todavia, trata-se de um trocadilho. O assunto tratado aqui não é
propriamente a redução da criminalidade, mas a promoção da paz entre os
diferentes segmentos sociais, e em especial, os membros dos mais variados
credos. E é aqui que nossa proposta se afasta daquela inspirada da Teoria das Janelas
Quebradas. Eu diria que o que nos inspira seria outra teoria, a do “Telhado de
vidro”. Não se joga pedra no telhado alheio quando o nosso é de vidro. Algo bem
próximo do que Jesus disse aos que lhe trouxeram a mulher flagrada em adultério
e que intentavam apedrejá-la: “Quem não
tiver pecado, que atire a primeira pedra!”
Contextualizando
o adágio, não se deve mirar nos vitrais do templo alheio. Nossos vitrais são
feitos de cacos como outro qualquer, portanto, tão vulneráveis quanto os dele. O
vitral é um tipo de vidraça composta por pedaços de vidro coloridos, que
geralmente representa cenas ou personagens bíblicos, sendo um dos elementos
arquitetônicos marcantes característicos do estilo gótico.
Cada tradição
religiosa montou seu próprio mosaico com os cacos disponíveis em sua cultura e
experiência espiritual. Independentemente dos arranjos feitos e das figuras que
deles tenham emergido, o mais importante é que sejam translúcidos, isto é, que
se deixem penetrar pela luz. Daí encontrarmos tantos pontos convergentes nas
mais variadas tradições. A diferença entre umas e outras são as imagens
compostas. Em nosso caso, é a imagem de Cristo que se nos salta os olhos,[3] d’Aquele que é “o resplendor da glória de Deus e a
expressão exata do seu ser.”[4]
Oxalá todos
tivessem o mesmo privilégio. Mas como poderíamos cobrar de outros a mesma
compreensão que temos sem considerar o contexto no qual nasceram e cresceram, a
cultura na qual estão inseridos, a educação que receberam, etc.? Todavia, Deus,
em Sua soberania e misericórdia, projeta a Sua luz sobre todas as vidraças. Por
isso, João, o apóstolo do amor, nos brinda com uma das mais lindas definições
acerca de Cristo, o Logos Divino: “Nele
estava a vida, e a vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, e
as trevas não prevaleceram contra ela.(...) Pois a verdadeira luz, que alumia a
todo homem, estava chegando ao mundo.”[5] De acordo com Paulo, cada um deve andar de acordo com a luz que houver recebido (Fp.3:16). E antes que
nos esqueçamos, “a quem muito
foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será
pedido” (Lc. 12:48).
Só deve ser tolerante quem tem
consciência de que a perfeição não é um dos seus atributos. Caso contrário,
estaremos incorrendo no erro eloquentemente denunciado por Jesus:
“Como você pode dizer ao seu irmão: ‘Irmão, deixe-me
tirar o cisco do seu olho’, se você mesmo não consegue ver a viga que está em
seu próprio olho? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você
verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.”
Lucas 6:42
Todos temos virtudes
e defeitos, independentemente da fé que professamos. Nem mesmo nossa religião
está imune a isso.
Basta uma rápida
incursão pela história de cada igreja ou credo para verificar quantos erros
foram cometidos em nome da fé.
Veja, por exemplo, o caso da Santa
Inquisição que pesa sobre os ombros da Igreja Católica, em que milhares de
pessoas foram condenadas, torturadas e executadas, acusadas de heresia ou
bruxaria, num dos capítulos mais tenebrosos da história recente da civilização.
Todavia, ela está longe de ser o único caso de intolerância religiosa da
chamada Época Moderna. Augusto Comte, o pai do positivismo, conta em seu livro
Filosofia Positiva que “a intolerância do protestantismo certamente não foi menos
tirânica do que aquela com que o catolicismo é muito difamado”.[6] “Os
próprios reformadores... isto é, Lutero, Beza, e especialmente Calvino, eram
intolerantes aos dissidentes tanto quantos aos católicos Romanos.”[7]
Martinho
Lutero, o tão celebrado reformador alemão, promoveu a perseguição aos
anabatistas, ala mais radical da Reforma, por discordarem, dentre outras
coisas, do método usado no batismo. Por conta disso, milhares de pessoas foram
encarceradas, torturadas e executadas. O
reformador também fazia duras críticas aos judeus e seus escritos acabaram
sendo usados pelos nazistas como justificativa ao seu antissemitismo responsável
pela morte de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Deve-se
salientar, entretanto, que próximo do fim de sua vida, Lutero retornou ao seu
sentimento inicial de tolerância. Em seu último sermão ele aconselhou o
abandono de todas as tentativas de destruir a heresia por força.[8]
João Calvino,
o reformador suíço, instaurou em Genebra a Venerável Companhia, responsável
pelo magistério e o Consistério, responsável pela disciplina religiosa. Em seu
ardoroso zelo, Calvino promovia confissões, denúncias, espionagens, visitas às
residências, levando muitos à prisão, à tortura e, em alguns casos, até a
morte. Durante o tempo em que governou Genebra, a população era proibida de
cultivar hábitos considerados nocivos como jogos, dança e teatro. Dentre as vítimas
da intolerância de Calvino, destaca-se o médico Miguel Serveto, queimado por
causa de suas proposições consideradas heréticas. Em apenas quatro anos de governo (1542-1546), 58
pessoas foram condenadas à morte por heresia.[9]
O que mais nos
causa ojeriza quanto às perseguições protestantes é o fato de serem incompatíveis
com uma das doutrinas fundamentais do Protestantismo: o livre exame das
Escrituras. É, no mínimo, contraditório defender o direito de se interpretar a
Bíblica de acordo com a sua consciência, e em seguida, torturar e matar alguém
por ter feito justamente isso.
Quem conhece a
dor de ser perseguido, não tem o direito de perseguir. Os puritanos que fugiram
da Inglaterra por causa da perseguição sofrida por parte da Coroa, exportaram
para as colônias que fundaram nos Estados Unidos o mesmo espírito persecutório.
O que pode ser atestado em episódios como o das “bruxas de Salem”, ocorrido em
Massachusetts no final do século XVII, quando várias adolescentes foram
executadas sob a acusação de praticarem feitiçaria, invocando espíritos quando reunidas
ao redor de uma fogueira. “O que é surpreendente é o fato de que, após essas
experiências, esses fugitivos não aprenderam a lição de tolerância, e não
concederam aos que eram diferentes... liberdade... Quando eles se encontraram
em uma posição para perseguir, eles tentaram superar o que haviam sofrido.”[10] Entre os grupos vítimas da intolerância deles
estavam os Quakers. Um membro desta “Sociedade dos Amigos” poderia sofrer a perda
de uma orelha, e depois, a outra, além de ter a ponta da língua queimada a
ferro quente, e às vezes, a morte.
De acordo com
o teólogo metodista Georgia Harkness, “muitas vezes, a resistência à
tirania e à procura de liberdade religiosa são combinadas, como na revolução
puritana na Inglaterra; e os vencedores, tendo alcançado a supremacia, em
seguida, criam uma nova tirania e uma nova intolerância.” [11] Incrivelmente, os Quakers foram uma exceção à
regra. William Penn, fundador do Quakerismo, também fugiu para a América devido
à perseguição religiosa, onde fundou uma colônia tolerante que hoje é o estado
da Pensilvânia. Os Quarkers tem um honrado histórico de tolerância, e estiveram
na vanguarda do movimento de abolição da escravidão na América no século XIX.
As religiões
tendem a se reinventar, tornando-se moderadas e tolerantes. Porém, não podemos
fazer vista grossa quanto à possibilidade de que sempre haja alas mais
radicais, geralmente saudosistas de um tempo considerado áureo. É assim no cristianismo,
tanto católico quanto protestante, e é assim no islamismo.
Todos temos
telhado de vidro! Não se esqueça disso.
Toda religião
tem um histórico de perseguição, seja sofrida ou impingida. Em maior ou menor
grau, todas guardam em seus anais episódios de intolerância. Se não quisermos
retroalimentar o ciclo, resta-nos perdoar as perseguições sofridas e nos
arrepender das perseguições impingidas.
Aproveitando a
teoria das janelas quebradas, minha proposta neste post é a de reduzirmos
nossa intolerância ao máximo, na esperança de que um dia ela alcance zero. Enquanto
houver o menor vestígio de intolerância, seja em nosso discurso ou em nossa
postura, servirá de munição para aqueles que fazem do ódio a sua bandeira.
Pequenos
gestos de intolerância são um chamariz para os intolerantes. Semelhantemente,
pequenos gestos de gentileza e cordialidade podem desarmar espíritos, fazendo
prevalecer o respeito, e, sobretudo, o amor.
[1] WILSON, James Q.; Kelling
George L. “Broken windows: the police and neighborhood safety”, in: Atlantic
Monthly de março de 1982.
[2] Francisco
Ferreira Milani, nascido em São Paulo, em 19 de novembro de 1936, falecido em
13 de agosto de 2005 de falência múltipla dos órgãos provocada por câncer no
reto, foi ator, dublador, humorista e político brasileiro.
[3] Gálatas
3:1
[4] Hebreus
1:3
[5] João
1:4-5,9
[6] COMTE, Augusto, Philosophie
Positive, IV, 51.
[7] Dicionário da Igreja Cristã de Oxford,
Referência 1383.
[8] DURANT, Will (S), The
Reformation, (volume 6 of 10-volume The Story of Civilization, 1967), Nova
York: Simon & Schuster, 1957, págs. 420-430.
[9] Ibidem, pág. 473.
[10] STODDARD, John L., Rebuilding
a Lost Faith, Nova York: P.J. Kenedy & Sons, 1922, pág. 207.
[11] HARKNESS,
Georgia (P), John Calvin: The Man and His Ethics, New York: Abingdon Press, 1931, pág. 222.
Simplesmente brilhante! O livro deve estar um primor. Esse post deixou-me com água na boca.
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