Por Hermes C. Fernandes
Meu nascimento foi motivo de
orgulho para os meus pais. O nome que me deram significa “iluminado”. Fui
criado para ocupar o lugar de prestígio que hoje ocupo. Não foi fácil, mas
cheguei. Hoje sou o principal da sinagoga. Cada vez que assumo o púlpito,
sinto-me o homem mais importante do mundo, o porta-voz da Lei e dos Profetas. Sou
responsável por manter a lei e a ordem em minha comunidade. Todos me ouvem,
respeitam e reverenciam.
Mas nem tudo é como sempre
quis. Nem todas as minhas orações foram atendidas. Como todo bom judeu, sempre
pedi a Deus para que jamais me desse uma filha. Afinal de contas, Ele é
conhecido como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e não como o Deus de Sara,
Rebeca e Raquel. Mas por alguma razão, Ele resolveu me castigar. Quando eu
partir, meu lugar não será ocupado por alguém em cujas veias corra o meu
sangue. Um nome tão importante quanto meu, não poderá ser perpetuado.
Se em vez de uma menina, o Eterno
houvesse me dado um garoto, faltaria apenas um ano para o seu bar-mitzvá, a
festa que marca a passagem do menino para a vida adulta. Em vez disso, tudo o que tenho
agora é uma menina doente à beira da morte. Foi necessário que ela adoecesse
gravemente para que eu descobrisse o quão importante é na minha vida.
Apesar de não ser o que pedi a
Deus, ela é tudo o que tenho. Nos seus doze aninhos de vida, aprendi a amá-la.
Seu jeitinho meigo me conquistou. O que será de mim se perdê-la? Todo o
conhecimento que tenho das Escrituras, o prestígio de minha posição na
sinagoga, parecem não valer de nada nesta situação.
Ouvi falar de um rabino da
Galileia que tem poderes místicos. Dizem que ele levanta paralíticos, restaura
a vista de cegos e que até já ressuscitou um morto, filho de uma viúva de um
vilarejo chamado Naim. Mas ele é um herege. Por causa dele, as sinagogas se
esvaziaram. As pessoas preferem ouvi-lo nas ruas e praias a nos ouvir no
conforto de um lugar apropriado para cultuar a Deus. Seus ensinos são
completamente heterodoxos. Ele até aceita mulheres entre seus discípulos. Dizem
por aí que são elas que bancam seu ministério itinerante. Onde já se viu uma
coisa dessas? Mas talvez ele seja a minha única esperança.
O único problema será lidar
com a repercussão. O que dirão outros príncipes das sinagogas quando souberem
que recorri a ele? Já não basta o fato de ser o único dentre eles que não
poderá ser sucedido por seu filho?
Tenho que fazer algo
urgentemente, antes que seja tarde demais. Minha filha não pode esperar. Quer
saber? Às favas com a minha reputação.
Por sorte, justamente
agora, na hora do meu desespero, o tal mestre da Galileia vem passando por
aqui. Preciso chamar-lhe a atenção. Não quero que me veja como um rival
descontente por estar perdendo o público. Já sei! Vou me lançar aos seus pés e
rogar encarecidamente que vá à minha casa e cure a minha princesinha.
Funcionou! Ele aceitou o meu
pedido. Mas será que esta multidão não poderia se afastar um pouco? Não estou
acostumado com tanto empurra-empurra.
Espera aí. Acho que conheço
aquela mulher. O que ela faz aqui? Lembro-me muito bem dela. Precisamente na
época em que nasceu minha filha, tive que ordenar que se afastasse do convívio
social por causa de sua hemorragia crônica. Não fiz isso por maldade. Estava
apenas cumprindo a lei. Só não podia imaginar que sua reclusão demoraria tanto.
Achei até que já estivesse morta. Quem poderia sobreviver a doze anos de
sangramento? Só não me lembro de ter dado permissão para que ela voltasse a
transitar assim livremente.
É impressão minha ou ela está
tentando se disfarçar? Acho que ela notou que eu a percebi. Tenho que tomar
alguma providência. Ela está desafiando a minha autoridade. Será que Jesus não
sabe de sua condição? Ele deveria repreendê-la por descumprir a lei!
Eu ouvi bem ou estou
alucinando? Jesus está perguntando quem o tocou? É isso mesmo? Ora, ora, tanta
gente aqui, apertando-o, oprimindo-o, empurrando-o. Que pergunta mais
descabida!
Jesus, tenho pressa! Não fique
aí se distraindo com essa gente. Minha filha está à beira da morte.
Com quem ele está falando? Por
que interrompeu sua caminhada?
Não! Não pode ser! Ele está
falando com aquela mulher. Deixe-me aproximar. Preciso saber o teor da
conversa. Provavelmente, ele está repreendendo-a e mandando-a de volta para
casa. Até que enfim. Quando tudo isso houver passado, vou cuidar disso
pessoalmente. Esta mulher não pode ficar impune. Ou será que ela se esqueceu de
que a lei diz que qualquer um que a tocar se torna impuro? Tanto ela, quanto
quem a tocar devem ser apedrejados. Pensando bem... a situação é mais grave do
que imagino. No meio desta confusão toda vai ser difícil saber quem a tocou.
Terei que fazer uma sindicância. Na verdade, isso deveria ser feito agora
mesmo. Depois que as pessoas se dispersarem, será impossível descobrir quem a tocou ou se deixou tocar por ela. Meu Deus, onde é que estou com a cabeça? Minha filha morrendo, e eu aqui preocupado com formalidades da lei. Mas não é para isso que ocupo a posição de
príncipe da sinagoga? Mas se me distrair com isso, Jesus não chegará a tempo
para curá-la. Quer saber? Já fiz vista
grossa para tanta coisa na vida... E pelo jeito, Jesus está cuidando da
situação. Já estou bem perto deles. Deixe-me ouvir o que ele está dizendo a
ela.
O que? Não pode ser. Recuso-me
a crer no que acabo de ouvir. Jesus se deixou tocar por ela? Então, ele agora
está imundo. Como poderei recebê-lo em minha casa? Isso comprometeria a pureza
do meu lar. O fato de tê-la curado, estancando sua hemorragia, não atenua sua
culpa. Mesmo curada, ela deveria esperar sete dias até que pudesse circular
novamente. E isso teria que passar por mim. Na ausência de sacerdotes, sou a
maior autoridade espiritual da área. Despedindo-a em paz, Jesus está passando
por cima da minha autoridade. Meu Deus, que situação constrangedora.
Preciso de uma desculpa para
me livrar desta saia justa. Alguém que não respeita a lei não pode ser um
enviado de Deus.
Um amigo de ofício chegou na
hora certa para me dar as últimas notícias da minha filha. Jesus não precisa
mais se dar o trabalho de ir à minha casa. Minha filha acabou de falecer.
Doze aninhos! Ela parecia tão
bem até um dia desses, brincando com outras crianças, gritando meu nome e
correndo para os meus braços quando eu chegava. De repente, a luz se apagou.
Tudo tão rápido.
Se aquela mulher não houvesse
distraído Jesus, talvez houvesse dado tempo de evitar esta tragédia. Será que
ela não poderia ter esperado um pouco mais? Pensando bem, ela começou a morrer
quando a minha filha começou a viver. E agora, ela voltou a viver quando minha filha
acabou de morrer. Doze anos! Para uma, doze anos morrendo à prestação. Para a
outra, doze anos de vida escapando subitamente por entre os dedos.
Doze anos me lamentando por
ter tido uma filha em vez de um filho que pudesse me suceder. Doze anos em que
minha alma sangrou pelas frestas abertas pelo meu preconceito. Como gostaria de
voltar atrás! Eu teria valorizado cada segundo da vida de minha princesa.
Como ele ousa insistir ir à
minha casa? Eu já lhe disse que minha filha morreu? Crer somente? É isso que
ele requer de mim? E o que, afinal, significa “crer somente”? Minha mente está
um turbilhão? Minha reputação foi destruída no momento em que me prostrei
diante dele. Minha autoridade foi desafiada quando ele se deixou tocar por
aquela mulher e ainda a despediu em paz. E para completar minha desgraça,
recebo a notícia de minha filha está morta. Como posso “crer somente”?
Mas se ele insiste, tudo bem.
O problema é que ao entrar em minha casa, por haver sido tocado por aquela
mulher imunda, ele a tornará igualmente impura. Sua presença vai profanar o meu
lar. Só me faltava esta! Ter meu lar profanado. Tudo o que me sobrou irá por
água a baixo.
Minha filha! Por que me deixou
tão cedo?
Ele está pedindo para que não
choremos? Está dizendo que ela não está morta, mas apenas dorme? De onde tirou
isso? Como pode brincar assim com a nossa dor?
Ele a está tocando? Mas ela
está morta! A lei diz que isso o torna imundo! Não se pode tocar num cadáver! Mas
pensando bem, ele já estava imundo ao se deixar tocar por aquela mulher. Ora,
para quem já está molhado, que diferença faz uma gota d’água?
Não acredito no que meus olhos
estão vendo! Ele a está levantando. Meu Deus! Minha filha voltou à vida! Que homem é este capaz de trazer de volta os
mortos? Quem é este que estancou a hemorragia da minha alma? Que me fez dar
maior valor à vida do que às tradições? Finalmente, poderei fazer jus ao nome
que recebi dos meus pais. Hoje sou Jairo, o iluminado, porque Jesus refletiu
sobre mim a Sua luz.
* Baseado em Lucas 8:40-55,
Levítico 15:25, 27-28 e Números 19:11-14
Lírico e lúcido! Parabéns pela releitura, parabéns por destacar pontos que são cruciais, os quais, todavia, poucos elencam. Jesus foi o maior revolucionário que o mundo já conheceu, Ele instaurou a Revolução do Amor e da Graça, uma pena que a religiosidade tente a todo custo manchar a Reconciliação.
ResponderExcluirMaravilhoso a forma que foi abordado o texto, a forma que foi demonstrou os acontecimentos, foi tão profundo...
ResponderExcluirNa verdade, achei muito interessante pelo fato que você foi bem ao fundo de nossa mente e confrontou nosso próprios pensamentos em relação a muitas outras coisa ( preconceito ). Vlw e continue usando esse dom.
Abraços
Simplesmente, maravilhoso! Que texto lindo!
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