Por Hermes C. Fernandes
A fé não nos impõe abrir mão do senso crítico, nem tampouco nos oferece um escape da realidade, uma espécie de blindagem, fazendo-nos viver numa bolha impenetrável. Pelo contrário, a fé nos convida a encarar a vida com todas as suas demandas, reafirmando a fragilidade e a vulnerabilidade inerentes à nossa condição humana; não se trata, portanto, de sufocar seus aspectos negativos. Evitar o sofrimento a qualquer custo também é uma forma de impingir-se sofrimento.
A chamada “positividade tóxica” consiste em impor a nós mesmos, bem como aos outros, uma atitude falsamente positiva, evitando emoções consideradas negativas, tais como o medo, a tristeza e a raiva. Negar tais sentimentos é negar nossa própria humanidade. Além de ser desonesto em relação a quem somos, sustentar tal postura é extremamente exaustivo, não nos permitindo desenvolver a resiliência necessária para que nos adaptemos a situações adversas. Assim, escondemo-nos atrás de uma máscara de positividade, na esperança de que as pessoas não percebam quão imperfeitos somos. Agimos como Moisés que ao descer do monte após seu encontro com Deus, cobriu seu rosto com um véu para que o povo não percebesse que o brilho que refletia diminuía a cada passo que dava. Reportando-se a este episódio, o apóstolo Paulo diz que “não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório (...) Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (2 Coríntios 3:13, 17-18).
Uma espiritualidade sadia não se caracteriza por sua positividade, mas por sua autenticidade. Somente ambientes e relacionamentos pautados na liberdade nos oferecem um terreno fértil para o cultivo da autenticidade.
Ser autênticos nos dá autoridade para reproduzir a recomendação de Paulo: “Que ninguém pense de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve” (2 Coríntios 12:6b). Nosso discurso deve estar alinhado com o que somos e não com o que aparentamos ser.
Não precisamos esconder nossas fraquezas sob um véu de uma espiritualidade potencialmente tóxica. Assumimos nossas imperfeições por entender que elas são o ponto de partida de qualquer transformação possível. O contrário disso seria como construir sobre areia movediça.
Além do mais, bloquear ou ignorar emoções tidas por negativas pode ter consequências nefastas para a saúde física e psicológica. As emoções que reprimimos são somatizadas, isto é, expressadas através do corpo, e não poucas vezes na forma de doenças. Quando negamos uma emoção, ela encontra uma forma alternativa de se expressar. Se insistirmos em ignorá-las, nosso corpo aumentará o volume para chamar nossa atenção para o problema. E isso acaba por nos afetar de tal maneira que nos esgota física e psicologicamente. Quando ignoramos esses sentimentos, passamos a ter dificuldade de acessá-los, até não conseguirmos mais identificá-los. Mas eles continuam lá, latentes, fermentando, até chegar o momento em que explodem em forma de adoecimento psicológico como um vulcão em erupção, expelindo lavas para todos os lados. A positividade tóxica pode ter consequências psicológicas mais graves do que a depressão.
Sem que saibamos lidar com a frustração e o fracasso, não aprenderemos o valor da resiliência. Vale aqui a admoestação de Tiago:
“Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes.” Tiago 1:2-4
Só será possível nos alegrar com o que deveria nos entristecer se conseguirmos enxergar para além do sofrimento em si. Não se trata de contorna-lo, ou justifica-lo, mas de transcendê-lo. Porém, isso requer que ele seja admitido.
Se houvesse mais honestidade acerca de nossas vulnerabilidades, nos sentiríamos mais livres para experimentar e expressar todos os tipos de emoções. Somos humanos e devemos nos permitir sentir todo o espectro de emoções, tanto as consideradas positivas, quanto as consideradas negativas. Não é possível, nem razoável ser positivo o tempo todo. Em outras palavras: É ok não estar bem.
Por isso, o mesmo Tiago diz: “Está alguém entre vós aflito? Ore. Está alguém contente? Cante louvores” (Tiago 5:13). Esta passagem é uma pá de cal naquela ideia de que temos que exibir uma alegria de fachada o tempo inteiro. Se estiver triste, apenas ore. Não finja estar alegre. Não saia por aí arreganhando os dentes para demonstrar uma espiritualidade inexistente. Ninguém deve julgá-lo por isso. Repare no que diz Pedro: “Amados, não estranheis a ardente prova que vem sobre vós para vos tentar, como se coisa estranha vos acontecesse” (1 Pedro 4:12). Essas coisas não dão em poste, mas somente em gente como nós. Portanto, em vez de se perguntar “por que eu?”, pergunte “por que não eu?” Nenhum de nós está imune.
Não somos super-homens, nem mulheres maravilha. Apesar de carregar um inestimável tesouro dentro de nós, somos frágeis vasos de barro. Pelo menos, foi esta a conclusão a que chegou Paulo: “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós. Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos” (2 Coríntios 4:7-9).
Tudo o que expõe nossa frágil condição humana visa nos fazer humildes, dependentes da graça de Deus.
Apesar disso, a positividade tóxica está na moda, e pior é que invadiu as igrejas. Todos querem um testemunho para ostentar. Parte disso se deve ao fenômeno das redes sociais que nos obriga a fazer comparações entre nossas vidas medíocres e a vida perfeita exibida pelos nossos amigos online.
Que tal sermos mais honestos, mais autênticos, sem medo de expressar que estamos tristes, deprimidos ou ansiosos? Ao reconhecermos tais emoções, aprendemos com elas a ser mais resilientes.
Não há nada errado em pensar que no fim tudo vai dar certo, mas isso não significa que o processo inteiro terá que ser agradável. É bem mais realista admitir que tudo pode acontecer, mas vai passar. As emoções são como ondas: ganham intensidade, depois descem e viram espuma, desaparecendo aos poucos.
A fé, que muita gente confunde com pensamento positivo, nada tem a ver com a presunção humana denunciada por Tiago:
“E agora, vós que dizeis: Hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá passaremos um ano, negociaremos e ganharemos. Ora, não sabeis o que acontecerá amanhã. O que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco e logo se desvanece. Em lugar disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo. Agora, porém, vós vos orgulhais das vossas pretensões. Ora, toda vanglória tal como essa é maligna. Aquele, pois, que sabe o bem que deve fazer e não o faz, comete pecado.” Tiago 4:13-17
Jesus nunca disse “vai dar tudo certo”. Pelo contrário. Ele testificou que no mundo teríamos aflições, mas que deveríamos ter bom ânimo, isto é, ser resilientes. A única garantia que Ele deu foi que estaria conosco todos os dias, inclusive nos piores e mais turbulentos. O mesmo que nos leva às águas tranquilas, que nos faz deitar em verdes pastos, que nos prepara um banquete na frente dos inimigos, também nos permite atravessar o vale da sombra da morte. De fato, se Ele for o nosso pastor, nada nos faltará, nem mesmo as adversidades. Porém, Ele jamais se ausentará.
Em vez de tentar ignorar as emoções negativas, procure validá-las; aceita-las em vez de suprimi-las. Cada emoção tem algo a nos ensinar sobre nós mesmos e nossa relação com o mundo à nossa volta.
E quando alguém compartilhar sentimentos negativos com você, em vez de tentar fazer essa pessoa se sentir melhor ou pensar mais positivamente, leve-a a refletir sobre seu desconforto ou medo, e esforce-se para ouvi-la. Nada como uma escuta atenciosa, desprovida de julgamentos.
Situações emocionalmente difíceis fazem com que as pessoas se sintam sozinhas, isoladas e fragilizadas. Quando se deparam com outras que tentam silenciar suas emoções, sua dor aumenta significativamente. Ouvir atentamente quem está em sofrimento alivia em muito a sua dor e pode fazer uma enorme diferença em sua vida.
Como isso funciona na prática? Em vez de dizer "não pense nisso, seja positivo", diga "me diz o que você está sentindo". Em vez de falar "poderia ser pior", diga "sinto muito que esteja passando por isso". Em vez de dizer "não se preocupe, seja feliz", diga "estou aqui por você".
Certas palavras, ainda que ditas com a melhor das intenções, podem gerar frustração à medida que revelam o quanto a pessoa não compreende a gravidade da situação.
Vivemos na era das Good Vibes. Quem não adere a este espírito, acaba sendo cancelado. Afinal, quem quer seguir a alguém que não irradie felicidade?
Se a tristeza excessiva nos causa repulsa, o otimismo descabido é igualmente nocivo. Ninguém é alegre o tempo inteiro. Não será com um otimismo exacerbado que poderemos enfrentar as adversidades. Aliás, a tristeza também tem um papel a cumprir em nossa jornada existencial. Sem a tristeza, jamais daríamos o devido valor à alegria. Como disse Khalil Gibran , "quanto mais profundamente a tristeza cavar suas garras em vosso ser, tanto mais alegria podereis conter."
Veja o que Jesus disse acerca da tristeza preceder a alegria:
“Em verdade, em verdade vos digo que vós chorareis e vos lamentareis enquanto o mundo se alegra. Vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. A mulher quando está para dar à luz, sente tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois de nascida a criança, já não se lembra da aflição, pelo prazer ter vindo um homem ao mundo. Assim também vós agora, na verdade, tendes tristeza, mas outra vez vos verei, e vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar.” João 16:20-22
A alegria perene é aquela gerada no útero da tristeza. A especialidade de Deus, o grande alquimista, é converter sentimentos negativos em sentimentos positivos.
Portanto, não se veja obrigado a estar alegre só porque o mundo ao seu redor esteja festejando. Curta seu momento. Elabore seu luto. É das cinzas que renasce a fênix.
Ao acreditar numa positividade contínua, achando que a felicidade seja uma obrigação, esforçamo-nos para coibir o medo, a raiva ou a tristeza, emoções que, ainda que desconfortáveis, têm funções essenciais à sobrevivência humana.
É claro que é possível cultivar uma positividade saudável, buscando enxergar sempre o lado bom das coisas, desde que isso não nos faça ignorar o lado ruim. Por exemplo: ao perder um emprego, a pessoa pode se consolar com a ideia de que já não estava contente naquele emprego e que, eventualmente, poderá encontrar algo melhor. Como cristãos, podemos, inclusive, recorrer a passagens como a que diz que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus. Assim, a tristeza não nos empurrará para o desespero, e o medo não nos entregará de mão beijada ao pânico. Mas isso não significa fingir que a falta de emprego, e consequente falta de renda, não nos afetará de alguma maneira.
O caminho é, sem dúvida, a resiliência que é o inverso da positividade tóxica, tanto quanto a fé se opõe a ansiedade. O sofrimento não deve ser negado, mas elaborado.
Além do mais, uma sociedade que nega o sofrimento abre mão de sua capacidade de sentir empatia por aqueles que sofrem. Tal falta de empatia se comprova no fato de acharmos que consolamos alguém com meras frases motivacionais do tipo “poderia ser pior” ou “tudo vai ficar bem”. A melhor maneira de apoiar alguém é espelhar seu sentimento, dizendo algo do tipo “eu sinto muito que você esteja passando por isso.” Ou simplesmente, chorando com ele, como fez Jesus com as irmãs de Lázaro, diante de seu túmulo.
A positividade tóxica é a mãe do negacionismo. Segundo esta lógica, se você pensar positivo, nada de ruim vai lhe ocorrer, e caso aconteça, vai se resolver. Em outras palavras, se você pensar positivo, não vai pegar COVID, mesmo ignorando todas as orientações sanitárias.
Qual seria o ponto de equilíbrio para que nossa espiritualidade não ceda à positividade tóxica? Como interpretar a vida de maneira positiva, porém, não tóxica? Acredito que Paulo nos ofereça uma importante reflexão sobre isso:
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus. Pois como as aflições de Cristo transbordam para conosco, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo. Se somos atribulados, é para vossa consolação e salvação; se somos consolados, para vossa consolação é, a qual se opera suportando com paciência as mesmas aflições que nós também padecemos. A nossa esperança acerca de vós é firme, sabendo que, como sois participantes das aflições, assim o sereis também da consolação. Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio na Ásia. Fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de tal modo que até da vida desesperamos. De fato, já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos, o qual nos livrou e em quem esperamos que ainda nos livrará de tão grande morte, ajudando-nos também vós com orações por nós, para que por muitas pessoas sejam dadas graças a nosso respeito, pelo dom que nos foi concedido por meio de muitos.” 2 Coríntios 1:3-11
A proposta de Paulo vai ao encontro do que os psicólogos chamam de ressignificar. Tudo o que nos acontece visa credenciar-nos para ajudar àqueles que porventura estiverem passando pelo mesmo.
O que dá sentido à vida não é um contínuo e invejável bem-estar, mas o senso de propósito e significado.
A felicidade não deveria ser vista como uma meta a ser alcançada, mas como o efeito de uma vida que vale a pena ser vivida em abundância, ainda que isso inclua a tristeza, o luto, as perdas, e a indignação pelas injustiças. Vale aqui a recomendação de Freud: “Cada um deve encontrar o seu caminho para a felicidade, e que ele seja o menos negacionista possível.”
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