Por Hermes C. Fernandes
O Ministério da Defesa publicou ontem uma ordem do dia assinada pelo general Braga Netto em referência à data de 31 de março, marcada pelo golpe de 1964, que deu início à ditadura militar no Brasil. O documento surpreendeu ao incluir as igrejas como protagonistas do golpe militar, juntamente com empresários, a imprensa, a OAB, a própria população e as Forças Armadas, que, de acordo com o general, “aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil, por grupos que propagavam promessas falaciosas, que, depois, fracassou em várias partes do mundo. Tudo isso pode ser comprovado pelos registros dos principais veículos de comunicação do período.”
O ministro ainda pede que a população reconheça o papel desempenhado por civis e militares que “os deixaram um legado de paz, de liberdade e de democracia, valores estes inegociáveis, cuja preservação demanda de todos os brasileiros o eterno compromisso com a lei, com a estabilidade institucional e com a vontade popular.”
Desconheço qualquer outro país latino-americano que tenha sofrido golpe semelhante, cujos militares insistam que se comemore o inglório evento. Pelo contrário, trata-se o fato como vexatório, digno de repulsa. A razão disso repousa no fato de que no Brasil os militares envolvidos foram anistiados, enquanto nos demais país, foram julgados e sentenciados. O processo de redemocratização, ocorrido 21 anos depois do golpe, foi encarado como um favor que os militares prestavam ao país, de modo que puderam impor seus próprios termos, que incluíam ampla anistia que beneficiasse tanto os perseguidos políticos, quanto os próprios militares. Se por um lado, a anistia possibilitou o retorno dos exilados, também isentou torturadores e demais agentes da ditadura. Portanto, crimes praticados na ditadura, incluindo prisões ilegais, tortura, assassinato, desaparecimento forçado de pessoas, ocultação de cadáveres, violações aos direitos humanos, foram todos perdoados pela Lei da Anistia. Em razão disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por se negar a investigar e condenar os culpados pelos crimes cometidos durante a Ditadura.
O Brasil mergulhou num período de 21 anos obscuros de autoritarismo, repressão e supressão de direitos, que começou com a deposição de João Goulart, um presidente democraticamente eleito, e terminou com uma vergonha anistia de mão-dupla.
Como igrejas puderam contribuir com algo tão nefasto? Simples. Os crentes embarcaram numa narrativa construída em torno de uma suposta necessidade de se defender a segurança nacional contra a “ameaça comunista”.
Um dos eventos que impulsionaram o golpe militar de 1964 foi a chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, visto ter oferecido um argumento a favor dos militares e dos grupos políticos e econômicos conservadores para a deposição do governo e a instalação do novo regime. Segundo os organizadores da marcha, João Goulart seria o representante dos interesses do comunismo a ser implantado no Brasil.
A argumentação religiosa exposta na Marcha em “defesa da família e dos valores cristãos” contra a suposta ameaça comunista do presidente, foi uma resposta ágil e direta ao comício feito por João Goulart no centro do Rio de Janeiro, em 13 de Março de 1964, no qual apresentou seu plano econômico em que indicava a necessidade da reforma agrária e a intenção de estatizar as empresas de petróleo particulares, dentre outras medidas de cunho popular.
Em apoio à intervenção militar, o pastor batista Enéas Tognini convocou o povo evangélico para um dia de jejum e oração para evitar que o Brasil se tornasse um país comunista. Sem qualquer arrependimento posterior, o pastor teria dito que os militares salvaram o Brasil do comunismo.
Mesmo que os atores não sejam os mesmos, o roteiro se repete em um cenário que parece reproduzir ao que precedeu o golpe de 1964. Não há o que ser comemorado. Mas, certamente, há razão de sobra para lamentar, sobretudo, o fato de não termos aprendido com a nossa própria história, de modo, a repetirmos os mesmos erros de gerações que nos antecederam.
Pastores vêm às redes sociais para insultar ministros do STF, como se quisessem ser presos para alegarem perseguição religiosa. Em vídeo postado esta semana, Silas Malafaia se refere ao ministro Alexandre de Moraes como “desgraçado”. Caso o ministro caia na pilha e resolva agir com ele como fez com Daniel Silveira, a narrativa falaciosa dos pastores apoiadores do governo terá alcançado seu apogeu. Até vigília foi convocada por líderes evangélicos em favor do deputado responsável por ameaçar membros do STF. Irônico foi vê-lo refugiar-se no Congresso para não ter que cumprir a ordem judicial de colocar a tornozeleira eletrônica. O mesmo Congresso que seria fechado se suas reivindicações fossem atendidas, com um novo golpe militar e a reedição do AI-5. O deputado machão que se elegeu com discurso de ódio, quebrando uma placa em homenagem a Marielle Franco, agora se acovarda diante da iminência de ter sua liberdade restringida.
Deixo aqui uma admoestação aos líderes que mais uma vez tomam o lado errado da história:
“Até quando defendereis os injustos e tomareis partido ao lado dos ímpios? Defendei a causa do fraco e do órfão, protegei os direitos do pobre e do oprimido. Livrai o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.” Salmos 82:2-4
Nada contra os militares. Tudo a favor da liberdade. E para que isso seja garantido, que os militares se limitem às suas atribuições e não queiram decidir o destino do nosso povo. Portanto, que voltem para os quartéis, de onde jamais deveriam sair a não ser para defender o seu país contra ameaças reais externas. Que os pastores e sacerdotes retomem suas atividades religiosas e deixem o cenário político. Estado e religião são água e óleo. Voltem para suas congregações e paróquias, e parem de envergonhar o nome de Jesus.
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