terça-feira, janeiro 18, 2022

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RACISMO REVERSO



Por Hermes C. Fernandes

A mais nova invencionice do racismo perverso é o tal do racismo reverso, que surge com a única pretensão de relativizar e minimizar a crueldade do preconceito racial. 

O fato inconteste é que nosso vergonhoso passado escravagista deixou fortes raízes em nossa estrutura social, derrubando o mito de que vivemos numa democracia racial, e de que, portanto, não existe racismo no Brasil. Nada mais falacioso! 

Ao considerarmos que o racismo esteja calcado em relações de poder, fica evidente que não faz o menor sentido falar de racismo reverso, já que os negros jamais possuíram poder institucional para bancarem estruturas racistas. Embora mais da metade da população brasileira seja negra (negros e pardos), o número de negros em cargos considerados de destaque é inexpressivo; basta verificar quantos médicos, advogados, engenheiros, juízes, deputados, senadores, apresentadores de TV são negros. Por muito tempo, atores e atrizes negros só representaram papéis de personagens que ocupavam atividades consideradas subservientes como porteiros, motoristas, empregadas domésticas, etc., como se negros estivessem fadados a terem seu espaço restringido a tais funções (dignas, diga-se de passagem). De um tempo para cá, a TV brasileira resolveu seguir os passos dos grandes estúdios norte-americanos com ações afirmativas que visem promover a inclusão socioeconômica de populações historicamente privadas do acesso a oportunidades, razão pela qual hoje vemos artistas negros em papéis antes preenchidos exclusivamente por brancos, como de juízes, prefeitos e até presidente da república. 

O racismo se baseia na ideia de que haja uma hierarquia entre as etnias de modo a justificar que a que se julga superior subjugue as consideradas inferiores. Trata-se de uma forma de legitimar estruturas sociais de poder e dominação. Por isso, quem defende descaradamente o racismo reverso parece ignorar a própria definição do que seja racismo, já que minorias como pretos, pardos e indígenas jamais ocuparam posição hierárquica de superioridade com relação aos brancos em nosso país. Portanto, é absolutamente descabido afirmar que a população branca seja vítima de racismo. Nenhum branco pode afirmar ter sido discriminado pela cor de sua pele, sendo impedido de entrar em estabelecimentos comerciais, bancos e restaurantes, seguido por segurança em shoppings, reprovado em seleção de emprego ou parado numa blitz policial. Assim como não se tem registros de perseguição a religiões de matriz europeia, nem de depredação de seus templos como frequentemente ocorre a centros de umbanda ou candomblé. Aliás, demonizar tradições religiosas de matriz africana também é uma expressão de racismo. No relato do Novo Testamento, Jesus se depara com um homem endemoninhado que ao ser perguntado sobre o seu nome, apresenta-se como legião, nome dado a um agrupamento de soldados romanos. Portanto, os demônios se identificam com as forças opressoras, e não com a espiritualidade dos oprimidos. Antes de busca-los nos terreiros dos que resistem ao poder colonizador, deveríamos identifica-los em expressões de religiosidade que tem como único objetivo justificar a dominação de quem se acha divinamente autorizado a oprimir e explorar. Os demônios estão nos altares, escondidos atrás de discursos de ódio travestidos de piedade. Os demônios estão nos púlpitos dos que se vendem aos interesses de uma elite mesquinha e racista. Deus sempre estará com os oprimidos, independentemente da tradição religiosa que sigam. Deus sempre será contra os opressores, mesmo que usem o Seu santo nome para justificar a opressão. Portanto, compete-nos respeitar qualquer tradição religiosa, ainda que não subscrevamos suas doutrinas, cosmovisão e dogmas. Qualquer religião pode se tornar refém de um discurso que favoreça projetos de poder, inclusive a nossa, inclusive a dos outros. Se tiver que demonizar, demonize a instrumentalização do discurso religioso visando interesses inconfessáveis. É ali que o diabo habita.

O povo hebreu foi escravizado pelos egípcios por mais de quatrocentos anos. A escravidão do povo negro no Brasil durou pouco mais de trezentos anos. Os egípcios não proibiram os hebreus de cultuarem ao seu Deus. Os negros foram proibidos de praticarem sua religião, sendo obrigados a se converterem ao cristianismo ou adotarem o sincretismo. Os hebreus não foram levados à força para o Egito, mas convidados a se refugiarem lá durante o período de fome que abateu sobre o mundo. O Faraó decidiu escraviza-los ao perceber que se multiplicavam, constituindo-se numa ameaça à sua soberania. Os negros foram trazidos para o Brasil em navios negreiros, vendidos como escravos, torturados, estuprados e mortos. Possivelmente, os hebreus sofriam racismo por parte dos egípcios. Mas não no nível sofrido pelos negros no Brasil. Os hebreus foram libertos da escravidão ao deixarem o Egito e marcharem pelo deserto rumo à Canaã. Os negros receberam alforria, porém, foram mantidos no país em condições precárias, abandonados à própria sorte, alijados de sua cultura, privados de moradia, sem direitos básicos, sem trabalho dignamente remunerado.

Um hebreu escravizado pelo simples fato de pertencer a outra etnia poderia se dizer vítima de racismo. Mas não se pode atribuir racismo a Moisés ao matar um egípcio que espancava um hebreu.

Um samaritano contemporâneo de Jesus poderia se dizer vítima de racismo por parte dos judeus, mas um judeu jamais poderia se dizer vítima de racismo por parte dos samaritanos. Isso porque, como vimos acima, o racismo implica numa relação de poder. Racistas se acham etnicamente superiores. São, portanto, supremacistas. O fato dos discípulos terem se escandalizado por flagrarem Jesus aos papos com uma samaritana configurava-se racismo. Já o fato de samaritanos se recusarem a hospedar Jesus e seus discípulos por serem judeus não configurava racismo. Porém, o fato de dois de seus discípulos sugerirem que se rogasse a Deus para que enviasse fogo do céu e consumisse aqueles samaritanos, isso sim, constituía-se num gesto racista.

Semelhantemente, pode-se dizer que os romanos poderiam ser racistas com relação aos judeus, por se acharem uma raça superior, e que, portanto, tinha o direito divino de conquistar às demais e exercer primazia sobre elas. Mas não se pode atribuir racismo a Pedro por sentir-se constrangido de entrar na casa de um centurião romano e pregar-lhe o evangelho. Pedro poderia ser acusado de preconceito, de discriminação, mas não de racismo, posto que, como judeu, pertencia ao povo dominado, enquanto Cornélio, como romano, representava as forças invasoras. Judeus eram racistas com samaritanos por se acharem superiores a estes, mas não com os romanos, visto estarem sob seu jugo.

É claro que nenhum branco hoje pode ser responsabilizado pela escravidão dos negros. Entretanto, todo branco desfruta de privilégios advindos dessa escravidão, ao passo que todo negro tem que lidar com as feridas não cicatrizadas da mesma.

Alguns justificam o seu racismo velado no fato de que negros já escravizavam negros na África, antes mesmo de serem trazidos para as Américas. Tal argumentação demonstra o nível de ignorância acerca da história dos povos africanos. Ninguém se refere à Segunda Guerra Mundial como sendo um conflito de brancos com brancos. Geralmente, refere-se aos conflitos bélicos ocorridos na Europa fazendo referência aos países envolvidos, sem considerar a cor da pele de seus cidadãos. Fala-se, por exemplo, da Alemanha contra os aliados encabeçados pela Grã-Bretanha. Tanto alemães, quanto ingleses, franceses e russos eram brancos. Semelhantemente, não há um único povo negro na África. Assim como entre os brancos da Europa, havia conflito entre esses povos.

Outro argumento usado é que os próprios negros são racistas entre si, o que poderia ser comprovado pelo fato de muitas mães negras desejarem que seus filhas e filhos se casem com homens ou mulheres brancas para clarear a família. Os que fazem tal alegação parecem desconsiderar o fato de que muitas dessas mães terem tido que lidar com o racismo a vida inteira e, por isso, desejarem que seus descendentes sejam poupados.

Para desarmar qualquer argumento racista, há que se considerar a história e a cultura de cada povo, atribuindo-lhe a devida importância. Algo como o que encontramos em Amós 9:7, onde Deus confronta a presunção do seu próprio povo:

“Não me sois, vós, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? diz o SENHOR: Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e aos filisteus de Caftor, e aos sírios de Quir?” Amós 9:7

O mesmo Deus que promoveu o êxodo dos hebreus do Egito, também esteve ao lado dos filisteus em seu próprio êxodo de Caftor, e ao lado dos sírios em seu êxodo de Quir. Onde houve opressão, ali Deus estará, invariavelmente ao lado dos que sofrem e não de seus algozes. Os filhos de Israel jamais foram melhores do que os etíopes, ou do que qualquer outro povo ou etnia.

O Deus de todos os povos jamais autorizou a opressão. Mas sempre incentivou a cooperação, o intercâmbio e o respeito entre os povos. Em Isaías 19:23-25, lemos que chegará o dia em que haverá uma estrada ligando o Egito à Assíria, duas grandes potências do mundo antigo. A profecia diz que os assírios viriam ao Egito, e os egípcios iriam à Assíria, e ambos adorarão ao Senhor. “Naquele dia Israel será o terceiro com os egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra. O Senhor dos Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, MEU POVO, a Assíria, OBRA DAS MINHAS MÃOS, e Israel, MINHA HERANÇA.”

Com base nesta profecia, meu desejo é que se abram estradas de diálogo entre pessoas de quaisquer etnias, e que a igreja cristã seja uma esquina de encontro entre os mais diferentes povos. Que sejamos ponte, não abismo. Que trabalhemos pelo encontro, não pela colisão, pela reconciliação, pelo perdão, pelo respeito, pelo amor.

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