Por Hermes C. Fernandes
O céu dos burros estava agitadíssimo, pois acabara de chegar
uma figura ilustre. Todos abriam alas para que ele passasse. Um dos jumentos mais
antigos ali parecia alheio à sua chegada. Curioso, perguntou a um colega:
- Quem é a figura? Por que todos o estão bajulando assim?
Pelo que respondeu seu colega:
- Você não sabe? É o jumentinho usado por Jesus para entrar
em Jerusalém.
O burro velho, sentindo-se enciumado, ficou à espreita,
esperando a oportunidade para abordar o recém-chegado jumentinho.
Na primeira chance, aproximou-se e se apresentou:
- Olá, amigão. Então você é o famoso jumentinho que carregou
o Filho de Deus pelas ruas da Cidade Santa?
- Sim, sou eu. E o senhor, quem é?
- Nunca ouviu falar de mim? - indagou indignado.
- Desculpe-me, senhor. Mas sou novo por aqui. Acabei de
chegar. Mas ficaria muito contente se o senhor pudesse se apresentar.
- Eu sou a mula que carregou o profeta Balaão.
- Ah sim, já ouvi falar a seu respeito lá embaixo. O senhor
é muito famoso entre os burros. Todos o consideram uma lenda.
- Eu, uma lenda? Assim você me deixa constrangido. Sou
apenas uma mula que serviu por anos a um profeta.
- Mas todos dizem que graças ao senhor, a vida de Balaão foi
poupada.
- Ora, apenas cumpri o meu dever. Ele insistia num caminho
que desagradava a Deus. Por isso, tive que tomar providências. Se ele prosseguisse
em sua rebeldia, o anjo que apareceu à nossa frente com uma espada
desembainhada o mataria.
- Ele deve ter sido muito grato ao senhor por sua lealdade,
não é mesmo?
- Quem dera... Ele nem sequer percebeu que eu o estava
salvando. Em vez disso, quando me desviei daquela rota, ele me bateu. Quando espremi
seu pé contra o muro sem querer, ele me espancou. E quando empaquei de vez, ele
me deu a maior surra que recebi em minha vida.
- E o senhor não fez nada? Deixou por isso mesmo?
- Você não ficou sabendo o que me ocorreu naquele dia? Deus
abriu minha boca para que eu falasse diretamente com ele.
- Sério? Um burro falante? E o que o senhor lhe disse?
- Disse-lhe que não era justo que ele me espancasse daquela
maneira, pois, afinal, até aquele dia eu o havia servido lealmente, sem jamais
ter empacado. Deus abriu minha boca, porque seus olhos permaneciam fechados.
Ele não conseguia enxergar o anjo à nossa frente pronto para decepá-lo.
- E o que o anjo fez, afinal?
- Você não vai acreditar se lhe contar. O anjo saiu em minha
defesa. Disse-lhe que graças a mim, sua vida foi poupada.
- Uau! Que honra! Um anjo saindo em defesa de um animal de
carga como o nós.
- E quanto a você? O que fez para que todos lhe dessem tanta
importância?
- Eu? Fiz nada não. Apenas transportei o Filho de Deus,
enquanto a multidão o aclamava como o tão esperado Rei dos Judeus.
- Espera aí... Você não sabia o que o esperava no dia
seguinte?
- Nem desconfiava. O povo parecia tão alegre de recebe-lo.
- Caso não saiba, aquele mesmo povo que gritava “Hosanas!”, um dia depois
estaria gritando no pátio do palácio de Pôncio Pilatos: “Crucifica-o!” No
mínimo, você deveria ter feito o mesmo que eu fiz. Se houvesse empacado, você
teria salvado a vida do Filho de Deus. Sinceramente, não entendo a razão de lhe
darem tanto valor aqui. Você falhou! Você foi negligente. Mesmo apanhando
injustamente, eu fiz a minha parte.
- Mas você viu o anjo com a espada na mão. Você sabia o que
o esperava. Eu não. Nenhum anjo apareceu para mim. Eu só ouvia os gritos, os
louvores, e via o tapete improvisado que se estendida diante de mim. Como eu
poderia supor o que aconteceria depois?
- Por um acaso, Jesus não trazia um chicote nas mãos?
- Sim, ele tinha um chicote. Mas não o usou em mim. Em vez
disso, usou-o para expulsar os cambistas que negociavam no templo.
- O que vocês foram fazer no templo? Ele não deveria ter se
dirigido ao palácio para depor Pilatos e Herodes e assumir o trono deixado vago
por Davi? Não era este o plano?
- Acho que o senhor está muito mal informado. Quando
atravessamos os portões da cidade, havia uma bifurcação. Eu até imaginei que
iríamos para o palácio. Mas Ele preferiu ir para o templo.
- Então está explicado! Foi por isso que as mesmas pessoas
que o recepcionaram na porta da cidade, pediram que as autoridades o
crucificassem no dia seguinte. Ele traiu suas expectativas.
- Não posso discordar do senhor. Mas acho que tanto eu
quanto o senhor trabalhamos por um mesmo propósito.
- Que propósito seria esse, afinal? Eu fiz a minha parte.
Impedir que o pior acontecesse ao profeta. Você, não. Simples assim. Mesmo que
não empacasse como eu, você bem que poderia ter se rebelado como geralmente os
jumentos fazem, e em vez de marchar para o templo, marchar para o palácio.
- Mas se eu fizesse assim, Ele não teria morrido na cruz.
- Exatamente. E você teria sido um verdadeiro herói.
- Perdoe-me, mas o senhor está equivocado. Ele tinha que
morrer na cruz para salvar a humanidade e redimir toda a criação. Era este o
propósito. E o senhor contribuiu com ele ao impedir que o profeta Balaão
prosseguisse em seu caminho.
- Como assim?
- Para onde Balaão estava indo? O que ele iria fazer naquele
dia?
- Ouvi quando o anjo disse para que ele não amaldiçoasse o
povo de Israel como lhe havia sido pedido por um rei chamado Balaque.
- Percebeu a conexão? Imagine se o anjo não se opusesse a
ele, e se o senhor não empacasse, ele lançaria uma maldição sobre o povo de
onde viria o Messias, o Salvador do Mundo, que deveria morrer na cruz pela
restauração de todas as coisas.
- Agora as coisas começam a fazer sentido. Quer dizer então
que eu tive que empacar para que lá na frente você tivesse que prosseguir. Eu
empaquei para salvar a vida do profeta. Você prosseguiu para salvar a
humanidade. Um foi poupado para que o outro tivesse que morrer e assim, todos
fossem poupados da destruição eterna. Quer saber de uma coisa? Que bom que você
não sabia o que o esperava no dia seguinte. Porque, se soubesse, talvez fizesse
o que eu fiz, e assim, pusesse tudo a perder.
- Sim. O senhor está coberto de razão. Deus me abençoou com
a bênção da ignorância. E graças a esta ignorância, prossegui em minha marcha
para que o propósito de Deus se cumprisse.
* Moral da estória: Não meça a lealdade de ninguém pela sua própria lealdade. Cada qual contribui à sua maneira na execução dos propósitos divinos.
* Esta estória continua em breve. Aguarde.
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