Por Hermes C. Fernandes
A reação exacerbada de alguns brasileiros à imigração de venezuelanos fugindo da crise que abate o seu país deveria soar-nos como um alerta e coincide com a onda nacionalista que tem varrido o país de norte ao sul. O brasileiro, que é conhecido no mundo inteiro por sua hospitalidade, passou a enxergar o estrangeiro com olhar hostil e preconceituoso. A crise humanitária dos venezuelanos exige acolhimento, não xenofobia. De acordo com o Wikipédia, "xenofobia é o medo, aversão ou a profunda antipatia em relação aos estrangeiros, a desconfiança em relação a pessoas estranhas ao meio daquele que as julga ou que vêm de fora de seu país com um cultura, hábito, raca ou religião diferente." Não se trata de um fenômeno recente na história humana. Pelo contrário, trata-se de um vírus que tem infectado os povos desde os seus primórdios. O Israel dos tempos bíblicos nos oferece um exemplo disso.
Israel se orgulhava
de ser o povo eleito de Deus, porém, havia se esquecido de que a promessa feita
a Abraão, seu patriarca, era de que através de sua descendência, todas as
nações da terra seriam igualmente abençoadas.[1]
Ser a nação escolhida não significa ser
detentor do monopólio do sagrado. Apesar das Escrituras afirmarem que Israel seria
propriedade exclusiva do Senhor, título repassado à igreja, Deus não é
exclusividade de povo algum.[2]
Ele é o Deus de todos os povos, o rei das nações, o Senhor dos mundos.
Amós, o profeta boiadeiro, deixa claro que
o mesmo Deus que agiu em benefício de Israel, também agiu em benefício de
outros povos, inclusive daqueles considerados seus desafetos.
“Por acaso, filhos de Israel, sois diferentes dos etíopes para
mim? Eu não tirei Israel da terra do Egito? Mas não tirei também os filisteus
de Caftor? Não fiz os sírios saírem de Quir?” Amós 9.7
Esta palavra, sem
dúvida, foi um golpe na arrogância nacionalista de Israel. Os filisteus, assim
como os sírios, também tiveram o seu próprio êxodo. Portanto, não fazia sentido
olhá-los de cima para baixo, como se fosse a nação predileta de Deus. Ainda que
Deus, “nos tempos passados”, tenha
deixado andar “todas as nações em seus
próprios caminhos”, “contudo, não
deixou de dar testemunho de si mesmo”, beneficiando-as desde o céu,
provendo-lhes de chuvas e estações frutíferas, e enchendo de mantimento e de
alegria os seus corações.[3]
Mesmo não recebendo as devidas glórias, Deus não as desamparou, entregando-as à
própria sorte. Mas garantiu a sua subsistência.
Em seu discurso no
Areópago de Atenas, Paulo testifica que “de
um só sangue”, Deus fez “toda a
geração dos homens, para habitar sobre toda a face da terra, determinando os
tempos já dantes ordenados, e os limites da sua habitação.”[4]
O que nos leva a concluir que as fronteiras que delimitam os territórios das
nações têm um prazo de validade. A atual configuração geopolítica mundial é
fruto de guerras e acordos internacionais. Não há um pedacinho de qualquer que
seja o território de uma nação que não tenha custado derramamento de sangue,
seja na história recente ou antiga.
Não importa a cor e a
tonalidade de nossa pele, o sangue que corre em nossas veias é invariavelmente
vermelho. Ainda que haja diversidade de etnias, todavia, só há uma raça humana.
Não há razões para se
crer numa superioridade étnica, como a defendida por Hitler e sua agenda
eugenista.[5]
Portanto, todos devem ser igualmente tratados com respeito e dignidade.
A atual onda
nacionalista que varre o mundo é uma ameaça ao futuro da sociedade humana. Um
retrocesso! Devo concordar com Albert Einstein ao afirmar que o nacionalismo é
uma doença infantil, o sarampo da humanidade. Assim como a chegada da
modernidade pôs fim ao regime feudal, a pós-modernidade deve pôr um fim à noção
que temos de nação. Desde que Yuri Gagarin[6]
avistou a terra como um enorme globo azul, nossa perspectiva de mundo mudou
drasticamente. Somos uma aldeia global. Não faz mais sentido matar e morrer por
um patriotismo cego. E nada medida em que nossa visão do universo foi se
alargando, percebemos nosso minúsculo planeta como um grão de areia girando em
torno de uma estrela de quinta grandeza, perdida nas periferias da galáxia, o
que nos remete à Escritura que diz: “Na
verdade as nações são como a gota que sobra do balde; para ele são como o pó
que resta na balança; para ele as ilhas não passam de um grão de areia.”[7]
Nenhum Estado deveria
ser objeto de nossa devoção. Pelo menos, é o que entendo ao ler as Escrituras a
partir de Jesus. Ele relativizou todas as estruturas de poder. Muito mais
importante do que elas é a humanidade. Cristo não ofereceu Sua vida por Estados
ou governos, mas pela humanidade. Portanto, devemos abandonar esta visão
provinciana, atendendo ao convite do escritor de Hebreus: “Saiamos, pois, a ele (Cristo) fora do arraial, levando o seu
vitupério. Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura.” [8]
“Cidade” aqui deve ser entendida como civilização. A pátria pela qual anelamos
não tem fronteiras, nem bandeiras. Trata-se, antes, de uma realidade celestial,
não no sentido de ser algo etéreo, pós-morte, mas de ser uma sociedade erigida
ao redor do trono da graça, em que o único vínculo que nos une é o amor.[9]
Que chegue logo a
hora em que ser brasileiro, ou americano, ou irlandês, já não será motivo de orgulho. Nascer
aqui ou acolá é inevitável, mas vangloriar-se disto é uma postura estreita e
potencialmente danosa. Paulo compreendeu isso claramente. Por isso, ainda que
pudesse gloriar-se de sua origem étnica, sendo “hebreu de hebreus”, preferiu
encarar a aparente vantagem como verdadeiro prejuízo. “O que para mim era lucro”, conclui o apóstolo, “considerei-o perda por amor de Cristo.”[10]
A humanidade é uma
única comunidade, composta de povos de diversas etnias e línguas que formam um
enorme caldeirão cultural. Conceitos racistas e separatistas como o
nacionalismo nos privam deste entendimento.
Concordo com
comediante norte-americano Doug Stanhope ao dizer que o nacionalismo ensina a
odiar as pessoas que nunca conhecemos e ter orgulho de realizações das quais
não participamos.
Gerações futuras nos
acharão tão idiotas quanto consideramos os povos pré-históricos, por defendermos
com unhas e dentes nossas fronteiras.
Prefiro fazer coro
com Pietro Gori: “Nossa Pátria é o mundo inteiro, nossa lei é a liberdade.” [11]
O que parece fazer eco às palavras de Paulo: “A Jerusalém que é de cima é livre; a qual é mãe de todos nós.”[12]Somos
filhos do futuro. Filhos da liberdade. Filhos de um mundo sem fronteiras. Não somos filhos da “Jerusalém que agora existe”, e que “é escrava com seus filhos.”[13]Em
outras palavras, não pertencemos a esta configuração geopolítica atual prestes
a caducar, nem deste sistema opressor que explora e devora seus próprios
filhos. Pertencemos a outra ordem,
cuja origem é celestial e não terrena. Somos cidadãos do reino de Deus, em que
distinções sexistas, sociais e étnicas já não existem.[14]
Celebremos, pois, “as coisas velhas já se
passaram e tudo se fez novo.”[15]. Rejeitamos, portanto, qualquer discurso inflamado que vise reavivar uma chama que já deveria ter sido extinta há tempos. Amemos o Brasil. Não meramente seus símbolos, suas cores, seu hino, seus poderes, mas, sua cultura, sua natureza, e, sobretudo, sua gente, fruto da mais surpreendente miscigenação ocorrida na história da civilização.
[1]
Gênesis 22.11
[2] Êxodo
19.5 / 1 Pedro 2.9
[3]
Atos 14.16,17
[4]
Atos 17.26
[5] Eugenia
é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando
"bem nascido". Galton definiu eugenia como "o estudo dos agentes
sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais
das futuras gerações seja física ou mentalmente". Fonte: Wikipédia.
[6] Yuri
Alekseievitch Gagarin foi um cosmonauta soviético e o primeiro homem a viajar
pelo espaço, em 12 de abril de 1961, a bordo da Vostok 1. É dele a célebre
frase: “A terra é azul.”
[7]
Isaías 40.15
[8] Hebreus
13.13-14
[9]
Hebreus 11.14-16
[10]
Filipenses 3.4-7
[11] Pietro
Gori foi um advogado anarquista italiano nascido em Messina (1865 – 1911).
[12] Gálatas
4.26
[13]
Gálatas 4.25
[14] “Nisto
não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque
todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28).
[15] 2
Coríntios 5.17
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