quarta-feira, junho 13, 2018

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A verdade nua e crua



Por Hermes C. Fernandes


I
magine ser fruto de uma relação extraconjugal entre seu pai e uma prostituta.  Crescer sendo  xingado por seus próprios irmãos de filho da p#&@ e não poder fazer nada. Não bastasse todo o bullying de seus meios-irmãos, ainda ser constantemente ameaçado de ser deserdado. Quem suportaria viver num ambiente assim, sendo insultado o tempo inteiro? Por isso, tão logo alcançou idade suficiente para decidir seu destino, Jefté fugiu de casa. E para reforçar ainda mais o estereótipo, cercou-se de homens de moral duvidosa, considerados os párias da sociedade.

Mas o mundo costuma dar muitas voltas, não é mesmo?

Tempos depois, quando os amonitas pelejaram contra Israel, seus irmãos lhe enviaram um inusitado convite: “Venha e seja nosso chefe no combate contra os filhos de Amom.”[1] Por que resolveram apelar justamente ao irmão que antes haviam rechaçado? E quanto ao estigma de bastardo, agora não pesaria mais?

Jefté não deixou barato e respondeu aos demais filhos de Gileade: “Vocês não me odiaram e me expulsaram da casa de meu pai? Por que agora vêm a mim quando estão em aperto?”[2] Engolindo seu orgulho a seco, disseram: “É por isso que viemos te procurar. Vem conosco, combate contra os filhos de Amom e você será o nosso chefe sobre todos os moradores de Gileade.”[3] Nunca Jefté poderia imaginar que este dia chegaria. Os irmãos que o expulsaram de casa agora se dispunham a submeter-se à sua liderança.

Ele não apenas aceitou o convite, como conseguiu levar Israel a uma histórica vitória sobre os amonitas, depois de esgotar todos os argumentos ao tentar resolver a situação pela via da diplomacia.

Mal começara a gozar do sabor da vitória e Jefté teve que lidar com uma situação muito mais delicada ainda. Os homens de Efraim, uma das tribos de Israel, sentindo-se enciumados por não haverem participado da campanha militar que livrara Israel dos amonitas, indagaram a Jefté: “Por que você passou a combater contra os filhos de Amom e não nos chamou para ir contigo?” E ainda por cima, o ameaçaram: “Queimaremos a fogo a você e a sua casa.”

Aquela acusação, entretanto, era totalmente infundada. Tratava-se apenas de uma justificativa fajuta para se vingarem de não terem tido qualquer protagonismo naquela vitória e sentirem-se, assim, relegados à insignificância. Além do mais, Efraim se sentia ultrajado por ter que se submeter a um filho de prostituta, não apenas como um general, mas agora também como juiz.

Jefté que não mandava recado para ninguém, disse-lhes tête-à-tête: “Eu e o meu povo tivemos grande contenda com os filhos de Amom e, embora vos tenha chamado, não me livrastes das suas mãos. Vendo que não me livráveis, arrisquei a minha vida e fui lutar contra os filhos de Amom, e o Senhor os entregou nas minhas mãos. Agora por que subistes hoje para pelejar contra mim?”[4] Em outras palavras: Vocês tiveram a chance de vocês, mas não a aproveitaram! E ainda se acham no direito de se levantarem contra mim?

Nem sempre conseguimos entender a razão que leva algumas pessoas a se insurgirem contra nós. Às vezes, não faz o menor sentido. O que alegam nem sempre condiz com a verdadeira motivação. Tudo não passa de uma cortina de fumaça, uma justificativa que disfarce sentimentos inconfessáveis como a inveja, o ciúme ou o desejo de vingança.

Pessoas por quem você lutou, dedicou sua vida, expôs sua reputação, de repente, sem mais nem menos, se colocam em oposição a você. Algumas se aproveitam para revirar feridas antigas, jogando na cara seus equívocos e precipitações. Mas no fundo, o que as aborrece não é nada disso. Não são seus eventuais erros que as incomodam, mas seus acertos. Não são suas vicissitudes, mas suas virtudes. Todavia, elas jamais admitirão. Tudo de que precisavam para mostrar suas unhas era uma brecha, ou mesmo um simples mal-entendido, algo que possa justificar seu desafeto.

Jefté os havia convocado para lutar, mas eles simplesmente se ausentaram e covardemente o abandonando na hora em que mais precisava de apoio. Que moral teriam para cobrar alguma coisa? Não tendo o que falar contra Jefté, apelaram à mentira deslavada. Como disse Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, uma mentira repetida mil vezes, acaba se tornando verdade, pelo menos, na cabecinha de quem lhe dá crédito.

Sem ter como remediar a situação, só restou a Jefté uma saída: lutar contra Efraim. Se não desse uma resposta contundente às suas insinuações e mentiras, Jefté estaria abrindo um perigoso precedente que poderia contaminar outras tribos e trazer a ruína para todo o povo de Israel.

Mesmo cansados da batalha empreendida contra os Amonitas, os Gileaditas obtiveram esmagadora vitória sobre os Efraimitas, de sorte que os sobreviventes tiveram que fugir. Para impedir a fuga em massa, Jefté colocou homens nos vaus do Jordão que davam acesso ao território de Efraim, e quando os fugitivos tentavam passar, os homens de Gileade lhes perguntavam: “Você é efraimita?” Obviamente, a resposta era “não”. Para evitar que fossem enganados e os deixasse escapar, criaram um teste simples para identifica-los. Pediam que dissessem “Shibolete”.  Se fossem de Efraim, seu sotaque os impediria de pronunciar a primeira sílaba daquela palavra. Em vez de “Shibolete”, diziam “Sibolete”, e assim, uma vez identificados, eram impedidos de passar. O vocábulo hebraico "shibolete" significa a parte da espiga onde ficam as sementes. Jamais nos esqueçamos que palavras são sementes, sejam elas pronunciadas com sotaque que for. 

Perceba a sutilidade da pronúncia. Dá para reconhecer um baiano, uma carioca e um mineiro pela maneira de falar. Cada povo tem seu sotaque característico. Semelhantemente, não é difícil identificar alguém cuja motivação seja a de se insurgir contra quem tem sido levantado e sustentado pela graça de Deus. Basta prestar atenção nas sutilezas de sua fala. Alguns até tentam disfarçar, passando uma impressão de espiritualidade. Quando estão determinados a difamar a alguém, fazem-no de tal maneira que quem ouve não percebe a intenção malévola. São capazes de falarem mal enquanto parecem falar bem. A fofoca que espalham sempre vem seguida de um “pedido de oração” por aquele irmãozinho a que pretendem detonar. O veneno que escorre dos seus lábios parece doce como um néctar. Mas o que sai de sua boca não é Shibolete, mas Sibolete. Não é amor cristão, mas ódio, inveja, ciúme, vingança.

Suas mentiras soam como verdades. Suas intenções sempre parecem as melhores possíveis.

Certa parábola judaica diz que um dia a mentira e a verdade se encontraram.

A mentira disse para a verdade:

— Bom dia, dona Verdade.

E a verdade foi conferir se realmente era um bom dia. Olhou para o alto, não viu nuvens de chuva, vários pássaros cantavam e vendo que realmente era um bom dia, respondeu para a mentira:

— Bom dia, dona mentira.

— Está muito calor hoje, disse a mentira.

E a verdade vendo que a mentira falava a verdade, relaxou.

A mentira então convidou a verdade para se banhar no rio. Despiu-se de suas vestes, pulou na água e disse:

— Venha dona Verdade, a água está uma delícia.

E assim que a verdade sem duvidar da mentira tirou suas vestes e mergulhou, a mentira saiu da água e vestiu-se com as roupas da verdade e foi embora.

A verdade por sua vez recusou-se a vestir-se com as vestes da mentira e por não ter do que se envergonhar, saiu nua a caminhar na rua.

E aos olhos de outras pessoas era mais fácil aceitar a mentira vestida de verdade, do que a verdade nua e crua.

A mentira se veste de verdade toda vez que esconde suas verdadeiras intenções. E ainda que os fatos narrados sejam verídicos, o intuito de quem os narra é pernicioso. Porém, a verdade nua e crua é a que não tem nada a esconder. Ela é o que é, verdadeira na casca e no miolo, por dentro e por fora. A mentira nada mais é do que uma fuga da realidade, patrocinada pela covardia. Por isso, há que se ter coragem para ser verdadeiro. Não há veracidade sem voracidade! Não era à toa que Jesus costumava dizer "em verdade, em verdade vos digo..." (algo como: "É na verdade que vos digo a verdade"). Não basta dizer a verdade. A verdade tem que ser dita em verdade. E mais: deve ser dita em amor, com a intenção de edificar, nunca de destruir. 

Os Efraimitas representam os que preferem fugir, esquivar-se, acovardar-se, para depois se acharem no direito de criticar e espalhar mentiras caluniosas contra quem se manteve em sua posição. Portanto, seu "sotaque" revela um caráter evasivo. Já os Gileaditas representam os que enfrentam a realidade, tomando para si a responsabilidade de mudança. Seu "sotaque" revela seu caráter leal, engajado e subversivo. 

Todos temos um “vau do Jordão” em nossas vidas. É ali que se decide o que deve passar ou não. Este “vau” é o que dá acesso ao nosso coração. Se deixarmos passar certas coisas nocivas à nossa alma, provavelmente nos acarretará males indizíveis. Depois não adianta reclamar.

Sejamos, portanto, mais seletivos com aquilo a que damos ouvidos. Uma coisa é ouvir, outra é dar ouvidos. Há coisas que não valem a pena nem sequer ouvir. É melhor evitar.

Sabe aquelas pessoas que devido ao convívio com outras, acabam assimilando seu sotaque? Já aconteceu de você ter um amigo estrangeiro e se pegar falando como ele? É natural que isso aconteça. Já aconteceu comigo. Pois bem... Cuidado para que você não seja influenciado por quem não tem outra intenção que não seja destruir o que custou tão caro para ser construído. Cuidado para que você não se pegue espalhando o que ouviu de terceiros, sem levar em conta o poder de destruição por trás do boato. Cuidado para que você não seja contagiado pela amargura de ninguém e se veja falando Sibolete em vez de Shibolete.

Prefira a verdade nua e crua à mentira travestida de verdade. Perdoe-me a redundância, mas verdadeira verdade tem sempre o sotaque do amor.

Quer um conselho? Recuse qualquer convite para participar de um banquete onde o prato principal seja a vingança. Prefira saciar-se na companhia dos que insistem na esperança. É melhor a esperança requentada que a vingança requintada.




[1] Juízes 11.6
[2] v.7
[3] v.8
[4] Juízes 12.2-3

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