Por Hermes C. Fernandes
“O maior assalto da história!” É assim que o personagem
conhecido como “El profesor” anuncia suas pretensões à quadrilha organizada
para assaltar a Casa da Moeda da Espanha na série “La Casa de Papel”. A fim de
realizar o ambicioso e minucioso plano, ele recruta oito pessoas dotadas de
certas habilidades e que não tenham nada a perder. O objetivo é se infiltrar na
Casa da Moeda, de modo que eles possam imprimir 2,4 bilhões de euros. Para tal,
eles teriam que se manter por pelo menos onze dias ali, mantendo sessenta e
sete reféns e lidando com a Polícia de elite pronta a invadir o local. Quanto
mais tempo permanecessem lá, mais dinheiro poderia ser fabricado. Por isso, as
negociações com a polícia deveriam ser arrastadas o máximo possível. E para
coibir uma invasão policial, todos os reféns foram obrigados a usar as mesmas
roupas e máscaras usadas pelos assaltantes. O plano parecia perfeito. Os
membros da quadrilha foram treinados por cinco meses para que nenhum erro fosse
cometido. Só uma coisa não estava prevista: o envolvimento sentimental entre
eles e os reféns, fenômeno psicológico conhecido como “síndrome de Estocolmo”.
Nem o professor estava imune a isso, e acabou se envolvendo com a chefe da
operação policial.
Enquanto assistia à trama, pus-me a pensar no quanto ela
serviria de analogia para o que, de fato, seria o maior assalto da história. Assalto
que já se arrasta por quase dois mil anos e que está acontecendo bem debaixo do
nosso nariz.
Tudo começou quando alguém se atreveu a achar que “a piedade é fonte de lucro.”[1]
Um tal Simão, conhecido como “o mago” se aproximou de outro Simão, também
chamado Pedro, oferecendo-lhe uma considerável quantia em dinheiro para que lhe
contasse o segredo por trás dos milagres operados em seu ministério. Porém, o
apóstolo se lembrou das palavras de Cristo advertindo a Seus discípulos quanto ao
estranho que quisesse entrar no curral das ovelhas sem passar pela porta. Jesus
o chamou de “ladrão e salteador”[2], que
vem apenas para roubar, matar e destruir.[3] Como
bom porteiro, a quem Cristo confiou as chaves do reino, Pedro soube dizer não à
pretensão daquele impostor: “O teu
dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança
por dinheiro. Tu não tens parte nem sorte nesta palavra, porque o teu coração
não é reto diante de Deus.”[4]
Mas aquela era apenas a primeira investida.
Se Simão, o mago, fosse admitido entre os apóstolos, ele
certamente seria o mercenário que abriria a porteira ao lobo para que se
servisse das ovelhas. Pois é assim que os mercenários agem. E assim eles têm
agido ao longo dos séculos.
A advertência de Jesus quanto a infiltração de estranhos
evitou que a igreja sucumbisse ao assédio de quem pretendesse se locupletar do
rebanho. Todavia, o adversário tinha uma carta na manga. Foi Paulo o primeiro a
perceber isso. Em sua despedida dos efésios, ele os advertiu: “Porque eu sei isto que, depois da minha partida,
entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não pouparão ao rebanho; e que de
entre vós mesmos se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem
os discípulos após si.”[5]
Já que as ovelhas não seguiriam a voz de estranhos, nada
mais eficaz do que arregimentar rostos familiares, gente que não levantasse
qualquer suspeita. Os tais são representados no livro de Apocalipse como aquele
que tem aparência de cordeiro, mas cuja voz é a de um dragão. Dentre os
adjetivos listados por Paulo para classificá-los estão: “amantes de si mesmos, gananciosos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
desobedientes a seus pais, ingratos, ímpios, sem afeição natural, implacáveis,
caluniadores, incontinentes, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos,
orgulhosos, mais amigos dos prazeres do que amigos de Deus, tendo aparência de
piedade, mas negando-lhe o poder.”[6]
Por trás da pele de cordeiro, lobos cruéis que não poupam o
rebanho, devorando-lhes as carnes e apropriando-se de sua lã. Os tais “falsos apóstolos”, denuncia Paulo, “são obreiros fraudulentos,
transfigurando-se em apóstolos de Cristo. E não é de admirar, pois o próprio
Satanás se transfigura em anjo de luz. Não é muito, pois, que os seus ministros
se transfigurem em ministros da justiça; o fim dos quais será conforme as suas
obras.”[7]
Voz aveludada. Olhar convincente. Gestos calculados.
Discurso inflamado. Conduta aparentemente ilibada. Quem poderia supor que tudo
isso poderia esconder um lobo cruel?
E o pior é que “muitos
seguirão as suas dissoluções, e, por causa deles, será blasfemado o caminho da
verdade. Também, movidos pela ganância, e com palavras fingidas, farão negócio
de vós.”[8] Não é exatamente isso que temos visto
em nossos dias? Quantos já não estão vacinados contra o evangelho por causa da compostura
desses lobos vorazes!
O lobo não obteria igual êxito se não encontrasse cúmplices
entre as próprias ovelhas. Como bem disse Simone de Beuavoir, “o opressor não seria tão forte se não
tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”[9]
Em “La Casa de Papel”, há um episódio em que o professor
sugere que se faça uma oferta aos reféns. Aqueles que quisessem, poderiam ser
liberados. Mas os que preferissem permanecer reféns voluntariamente, receberiam
cada um a cifra de um milhão de euros. Obviamente que um grupo optou pela
oferta enganosa e passou a colaborar com o assalto, trocando o papel de vítima
pelo de cúmplice.
Tornamo-nos cúmplices quando achamos que o que o lobo nos
oferece vem de encontro aos nossos anseios. Paulo nos deixou de sobreaviso de
que viria um tempo em que não suportariam a sã doutrina, mas, “tendo coceira nos ouvidos”, se
cercariam de mestres “segundo as suas
próprias cobiças”, recusando-se a dar ouvidos à verdade, e voltando-se às
fábulas.[10] E
relativamente fácil enganar alguém quando este está predisposto a ser enganado.
E como poderíamos julgar se uma doutrina é ou não saudável?
Basta verificar que tipo de sentimento e postura tal doutrina suscita. Confira
o que diz Paulo sobre isso:
“Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de
nosso Senhor Jesus Cristo e com a doutrina que é segundo a piedade, é soberbo e
nada sabe, mas delira acerca de questões e contendas de palavras, das quais
nascem invejas, porfias, blasfêmias, suspeitas malignas, contendas de homens
corruptos de entendimento e privados da verdade.” 1 Timóteo 6:3-5
Qualquer ensinamento, por mais eficaz que pareça, se não nos
torna seres humanos melhores não deve ser considerado saudável.
Tais lobos arrebanham multidões porque dizem o que as
pessoas querem ouvir. Eles não as confrontam com a verdade, não expõem suas
mazelas e preconceitos, não as desafiam a serem justas, mas as atraem “adulando pessoas por causa do interesse.”[11]
Algo precisa ser feito para impedir o avanço desta matilha
descontrolada. “É preciso tapar-lhes a
boca”, afirma Paulo, “porque arruínam
casas inteiras ensinando o que não convém, por pura ganância.”[12] Se nos calarmos, seremos igualmente
cúmplices de suas obras. E só há uma maneira de calá-los: denunciando-os.[13]
Ainda que para isso tenhamos que cortar na carne.
Em ano eleitoral como o que estamos vivendo, muitos
mercenários abrirão a porteira de seu redil e entregarão seus púlpitos e
ovelhas de mão beijada aos lobos. O que muitas ovelhas não sabem é que seus votos
estão sendo negociados à surdina. Quanto mais membros tem uma congregação,
maior poder de barganha tem o líder. E assim, a Bíblia deixa de ser nosso livro
de cabeceira, substituída pelo “O príncipe” de Maquiavel, onde aprendemos que
os fins justificam os meios.
De repente, o pastor cede às investidas do lobo, e em troca
de uma laje, ou de um equipamento de som, ou mesmo de uma propriedade para a
igreja, apresenta o candidato durante um culto e pede que os irmãos o apoiem.
Que mal há nisso? Se o candidato tira o dinheiro do próprio bolso para ofertar,
não são os cofres públicos que estão sendo lesados. Ledo engano. Caso seja
eleito, aquele candidato vai querer repor o que gastou, e assim, a laje da igreja,
o equipamento de som, o terreno, terão custado o dinheiro desviado da merenda
escolar, das ambulâncias que deixaram de ser adquiridas, dos salários atrasados
dos professores, etc.
Até quando assistiremos a este assalto sem nos
pronunciarmos?
Em La Casa de Papel, as autoridades achavam que os ladrões
pretendiam apenas roubar o que estivesse guardado nos cofres da Casa da Moeda. Porém,
suas pretensões eram bem mais ambiciosas. Eles queriam colocar suas máquinas
trabalhando a todo vapor na fabricação de dinheiro. Da mesma maneira, muitos
líderes religiosos chegaram à conclusão que não bastaria extrair do rebanho sua
lã, extorquindo-o através de promessas de prosperidade. Eles querem mais que
isso. Querem o poder. Querem o erário público. Querem incentivos fiscais.
Querem cargos. Querem leis que os protejam. Querem concessões de rádio e TV. Querem
a desapropriação de imóveis. Querem o direito de pregarem o que bem entenderem,
ainda que isso alimente preconceitos e promova o ódio.
Alguém precisa emperrar esta máquina eclesiástica que nada
tem a ver com o Cristo e Sua mensagem subversiva de amor e justiça. Precisamos
abandonar as pretensões do cristianismo, religião fundada por Constantino, e
voltar ao genuíno evangelho, que de religião não tem nada. E para isso, há que
se abandonar aquilo que é a raiz de todos os males, o amor ao dinheiro, e
voltar ao princípio de tudo, o primeiro amor. Que nos libertemos desta Síndrome
de Estocolmo que nos torna duplamente reféns, isto é, reféns dos que nos
enganam para se locupletar e reféns de nossa própria cobiça.
[1] 1
Timóteo 6:3-5
[2] João
10:1-5
[3] João
10:10-12
[4] Atos
8:20,21
[5] Atos
20:29,30
[6] 2
Timóteo 3:1-5
[7] 2
Coríntios 11:13-15
[8] 2 Pedro
2:1-3
[9] BEAUVOIR,
S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.
[10] 2
Timóteo 4;3-4
[11] Judas
1:16
[12] Tito
1:10-11
[13] Efésios
5:11
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