quinta-feira, abril 19, 2018

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A VAQUINHA SAGRADA - O OUTRO LADO DA HISTÓRIA



Por Hermes C. Fernandes 

Acredito que a maioria dos meus leitores conheça a estória da vaquinha sagrada que precisou ser lançada num precipício para que a família que dela dependia encontrasse outros caminhos e viesse a prosperar. Mas quero propor aqui uma releitura da fábula sob a ótica da tal vaquinha. Afinal, toda estória tem dois lados. Que tal conhecermos o lado dela?

***

Era uma vez uma vaquinha. O leite que produzia ajudava a manter uma família inteira. Todos pareciam amá-la, pois dela dependia a sua sobrevivência. Porém, num certo dia, ela estava faminta. A família só se preocupava em ordenha-la, mas se esquecera de alimentá-la. Fraca, ela saiu em busca de pastagem, mas se viu presa, cercada de arames farpados.

Vendo um boi do outro lado da cerca, perguntou-lhe:

– Como é a sensação de poder pastar livremente num lugar tão amplo?

– É maravilhoso – respondeu.

– E você, querida amiga, não está satisfeita com a grama que lhe dão?

– Como você pode ver, a grama aqui já secou faz tempo e meus donos nem sequer se preocupam em me alimentar. Só fazem exigir de mim todas as manhãs que lhes dê leite suficiente para alimentá-los. E de você, amigo boi, o que seus donos esperam receber?

– A única coisa que posso oferecer é minha força para puxar o arado. – Então é por isso que lhe mantém tão bem alimentado. E quando não tiver mais condições de puxar o arado, o que será de você?

– Logo, logo, eles me enviarão para o matadouro.

– Que triste sina a sua! Felizmente, meus donos parecem gostar muito de mim. Duvido que me deem o mesmo destino.

– Por que não aproveita o espaço entre os arames, e tenta alcançar um pouco de grama verdinha para se alimentar?

– Acho que meus donos não ficariam contentes de me ver comendo da grama de um pasto alheio. Por isso que substituíram a cerca de madeira por uma de arame farpado. Se tentar enfiar meu focinho por entre os arames, acaberei me machucando feio.

Enquanto os bovinos conversavam, o dono da vaca se aproximou, e julgou que a sua vaquinha estivesse se alimentando do pasto do vizinho e até planejando fugir. Com raiva, pôs-se a espanca-la severamente.

– Sua vaca ingrata! Como pode desejar a grama do quintal vizinho e se esquecer de toda a grama com que já te alimentamos ao longo dos anos?

No outro dia, fraca por não haver se alimentado bem e com o corpo todo dolorido devido à coça que recebera, a vaca não conseguiu produzir o tanto de leite que costumeiramente produzia. Os filhos do dono começaram a reclamar.

– Quem esta vaca pensa que é? Será que se esqueceu de suas obrigações?

Sem paciência, espancaram-na um pouco mais e fizeram pequenos talhos em suas patas. Como se não bastasse, usaram de força bruta para ordenha-la, fazendo sangrar suas tetas. Por causa disso, o leite perdeu a brancura, e misturado ao sangue, apresentou uma coloração rosa.

– Que nojo! Como poderemos beber disso? – indagou um dos filhos do dono.

– E o pior é que não dá pra vender leite estragado! – concluiu o outro, aplicando-lhe um golpe de chicote no lombo. Num reflexo defensivo, a vaca deu-lhe um coice e o machucou.

– Esta vaca está merecendo um castigo! Vamos deixa-la sozinha por um tempo, sem poder pastar, presa no curral. Só assim, ela verá o mal que nos fez – disse o dono.

Naquela noite, a família recebeu em casa uma visita inusitada: Um monge e um noviço que não tinham para onde ir. Ouvindo o mugido triste da vaca, o monge pediu para vê-la no curral.

– Não se avexe não, seu monge. Fique à vontade. O curral fica bem atrás da casa – disse o dono.

Ao entrar no curral, o monge e o noviço se depararam com uma cena deprimente. A vaca parecia desolada, prostrada sobre suas patas como se carregasse uma tonelada nas costas.

– Então, você é a famosa mimosa? – disse o monge, aproximando-se vagarosamente e acarinhando sua cabeça.

– Ela não lhe parece muito machucada, meu senhor? – perguntou o noviço.

– Sim, e pelo jeito essas feridas foram abertas recentemente – avaliou o monge.

– Isso está me parecendo maus tratos. Mas esta família me parece tão boa praça. Não tem jeito de ser do tipo que maltrata animais – comentou o noviço.

– Quem vê cara não vê coração, meu jovem – asseverou o monge.

– Se permanecer aqui por mais tempo, esta vaca vai acabar morrendo. Precisamos fazer alguma coisa urgentemente – disse o noviço.

– Nada disso é de nossa conta. E além do mais, não podemos ser ingratos à família que nos hospedou – disse o monge.

– Não é o senhor mesmo que diz que quem sabe fazer o bem e não faz comete pecado? Então... Temos que fazer algo por esta criaturinha de Deus – pressionou o noviço.

O monge não respondeu uma só palavra. Durante a madrugada, perdeu o sono, ouvindo os mugidos e pensando na tristeza daquele animal e em como aliviá-la. Quando o dia já se insinuava, levantou-se pé por pé, chamou o noviço fazendo-lhe sinal de silêncio, ambos se dirigiram ao curral. Lá chegando, desprenderam a vaca, abriram-lhe a porteira e levaram-na até um precipício.

– Ajude-me a empurrá-la – pediu o monge ao noviço.

– O senhor sabe mesmo o que está fazendo? – Não me faça perguntas. Apenas obedeça. Isso faz parte de seu treinamento.

A vaca resistiu o quanto pôde. Alguns que passavam por ali, vendo a cena, ofereceram-se para ajudar a empurrá-la. Gente que durante anos bebeu do seu leite, agora se prontificava a livrar-se de uma vaca magra, cuja carne nem dava para aproveitar. Quando a vaca finalmente se despencou precipício abaixo, o monge fez sinal para o noviço indicando que era hora de partirem.

– O senhor não vai nem ao menos se despedir da família?

– Depois de termos libertado aquela que era seu ganha-pão? Só se eu fosse louco!

– E o senhor ainda tem coragem de dizer que aquilo que fizemos foi libertá-la? Nós a matamos!

– Depende do ponto de vista. Para quem estava sofrendo como ela, morrer precipitada num despenhadeiro era um destino mais digno do que viver sofrendo nas mãos de donos tão cruéis.

Um ano depois, o monge e o noviço voltaram a passar por aquelas terras.

– Está reconhecendo este lugar? – perguntou o monge ao noviço.

– Sinceramente, a paisagem não me é estranha. Mas não me lembro de ver uma casa como esta por essas bandas – respondeu apontando para uma linda casa recém-construída.

– Que tal pedirmos um copo d’água para sabermos quem mora lá? – sugeriu o monge.

Tocando a campainha, foram atendidos por um rapaz vistoso que os reconheceu de imediato.

– Pai, veja quem está aqui – disse o garoto.

O dono da casa se aproximou e os recebeu com grande alegria.

– Pelo jeito, os senhores não estão me reconhecendo – disse o homem.

– Sua fisionomia é familiar, mas realmente não nos lembramos de onde nos conhecemos.

– Sou aquele homem que os hospedou um ano atrás. Vocês partiram sem ao menos se despedir.

– Perdoe-nos a indelicadeza. Tínhamos nossas razões. E o que houve com vocês para que prosperassem tanto em tão pouco tempo?

– Ah sim... lembra daquela vaquinha? Ela desapareceu misteriosamente!

– Sentimos muito pelo ocorrido.

– Não deveriam. Foi a melhor coisa que poderia nos acontecer. Pois desde então, meus filhos tiveram que procurar um rumo em suas vidas. A família teve que se reestruturar. Eu mesmo encontrei outra atividade a que me dedicar. E assim, tudo começou a fluir e cá estamos nós.

O monge olhou para o noviço como se dissesse: “Está vendo o bem que fizemos a eles?”

O noviço aproximou-se do monge e sussurrou-lhe:

– Seria esse o destino que mereciam depois de tudo o que fizeram àquela vaquinha?

O monge respondeu-lhe:

– Não se trata de méritos, meu jovem. Libertamos a vaca do sofrimento e ainda por cima, libertamos a família da dependência. Ninguém aqui saiu perdendo. Você só se precipitou em julgar minha atitude.

O que eles não sabiam era que a vaca havia sobrevivido ao tombo, sendo acolhida pelos donos da propriedade vizinha que, encontrando-a machucada, cuidaram de suas feridas e lhe franquearam seus verdejantes pastos.

Um comentário:

  1. Geraldo ZIMBRA8:20 AM

    Cada ponto de vista é a vista de um ponto.

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