terça-feira, fevereiro 06, 2018

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Um novo olhar sobre a prostituição




Por Hermes C. Fernandes

Em minha visita a Amsterdã, capital da Holanda, pude presenciar a liberdade com que prostitutas exibem seus corpos em vitrines em plena luz do dia, oferecendo-se para um programa de apenas dez minutos por uma bagatela de cinquenta euros. Mulheres das mais diversas etnias deixam seus países de origem em busca de melhores condições de vida. É fácil julgá-las, recrimina-las e tachá-las de mulheres de vida fácil. Em média, uma prostituta faz dez programas por noite naquela cidade e, com isso, garante ao menos quinhentos euros. É, de fato, uma quantia considerável. Entretanto, parte dele fica para o cafetão, outra para a casa, e ainda outra para o governo, já que a prostituição naquele país é uma atividade legal e que recolhe impostos. Mesmo que sobre pouco menos da metade do valor, ainda assim é um valor considerável que, dificilmente, conseguiriam em seus próprios países, seja naquela ou noutra atividade. 

Enquanto caminhava pelas ruas de Amsterdã naquela tarde chuvosa, resolvi gravar um vídeo. Uma mulher me abordou aos gritos dizendo que era proibido por lei fazer fotos ou vídeos daquelas jovens exibidas nas vitrines. O casal que me acompanhava tentou explicar que eu não pretendia expô-las, mas apenas relatar sua condição de trabalho. Para evitar problema, deixei aquela rua e fui gravar sobre uma das muitas pontes lotadas de bicicletas. Tomado de uma espécie de compaixão por aquelas meninas, iniciei o vídeo dizendo que não estava ali para julgá-las, posto que o que elas faziam não era muito diferente do que muitos fazem sem terem consciência disso. Expus, então, minha definição de prostituição: 

 Prostituir é fazer por dinheiro o que deveria ser feito por amor. 

Obviamente que esta é uma definição ampla que nos coloca numa posição extremamente desconfortável, visto que muitos incorrem justamente neste erro: fazem por dinheiro o que deveriam fazer por amor. Quantos são os ministros que sobem aos seus púlpitos dominicalmente, não mais pelo prazer de servir a Deus e ao seu povo, mas única e exclusivamente por dinheiro? Estou certo de que não são menos culpados aos olhos de Deus do que aquelas meninas que alugam seus corpos em Amsterdã ou nas ruas dos grandes centros urbanos. Quantas mulheres se mantém casadas, não por amor a seus respectivos maridos, mas por conveniência? Algumas chegam a usar o sexo como moeda para extorquir seus cônjuges. Não seria isso um tipo de prostituição? E quanto àqueles que mantêm um matrimônio de aparência para não perderem a credibilidade de seus ministérios? Sem amor, não há casamento. Ainda que tenham se casado no civil e no religioso. Ainda que tenham construído juntos um patrimônio significativo. Se falta amor, não sobra nada. 

Apesar disso, não posso comungar da ideia de que o que aquelas moças fazem seja correto. Simplesmente, não as julgo. Não me considero melhor do que elas. Contudo, posso alertá-las para a nocividade do estilo de vida que escolheram. Posso olha-las com empatia e compaixão, sem com isso endossar a exploração de que são vítimas. Sim, eu disse vítimas. Ainda que responsáveis por suas escolhas, permanecem vítimas de uma sociedade hipócrita, que ama a prostituição, mas odeia as prostitutas, que as usa e depois as descarta e apedreja. Elas nos servem como a Geni da canção de Chico Buarque. 

De tudo que é nego torto 
Do mangue e do cais do porto 
Ela já foi namorada 
O seu corpo é dos errantes 
Dos cegos, dos retirantes 
É de quem não tem mais nada 
Dá-se assim desde menina 
Na garagem, na cantina 
Atrás do tanque, no mato 
É a rainha dos detentos 
Das loucas, dos lazarentos 
Dos moleques do internato 
E também vai amiúde 
Com os velhinhos sem saúde 
E as viúvas sem porvir 
Ela é um poço de bondade 
E é por isso que a cidade 
Vive sempre a repetir 
Joga pedra na Geni! 
Joga pedra na Geni! 
Ela é feita pra apanhar! 
Ela é boa de cuspir! 
Ela dá pra qualquer um! 
Maldita Geni! 

Seus corpos são expostos no mercado do sexo, prometendo atender aos desejos mais pervertidos de seus clientes. Da prostituta que desfila na esquina à prostituta de luxo oferecida por agências de modelo de fachada, todas oferecem o mesmo produto: seus corpos. O que inclui sua vagina, seu reto, sua boca, seus seios e tudo mais. Enquanto é usada por seus clientes, ela é obrigada a fingir que está gostando. Muitas já não sabem o que é um orgasmo há anos. Não importa o que sintam, suas expressões faciais, seus gemidos, devem dizer ao cliente o quanto ele é bom de cama e consegue satisfazê-la. Caso contrário, nunca mais ele irá procura-la. Por sua vez, ele paga pelo direito de dizer o que quiser, sem se importar com o quanto vai insultá-la. Alguns ultrapassam a agressão verbal, e utilizam-se da violência física para obter prazer. Para estabelecer-se no mundo da prostituição, a mulher deve aprender a suprimir seus sentimentos. O que, diga-se de passagem, poderá lhe causar sérias dificuldades psicológicas a médio e longo prazo. Razão pela qual, muitas delas recorrem ao uso de entorpecentes como o álcool e as drogas. Algumas entram para o ramo da prostituição para garantir a manutenção do vício, e quando se dão por si, estão usando drogas para suportar a crescente demanda psicológica da prostituição, e assim, o ciclo se retroalimenta. Prostituir-se para poder se drogar. Drogar-se para poder se prostituir. 

Boa parte delas sofre de TEPT (transtorno de estresse pós traumático), que é um transtorno de ansiedade relacionado a experiências traumáticas ou que ameaçam a vida, como guerra, agressão sexual ou acidentes. Os sintomas costumam ser fisicamente e emocionalmente paralisantes, ainda que demorem meses ou mesmo anos para se manifestarem. Geralmente são piores quando o trauma é infligido por outro ser humano ou repetido ao longo do tempo. Um dos sintomas pode ser o envelhecimento precoce. Muitas dessas operárias do sexo sofrem dor abdominal inferior crônica devido a inflamação e lesões causadas pelo excesso de atividade sexual. Lesões físicas, sobretudo em seus orifícios sexuais, tornam-nas mais vulneráveis a infecções e a doenças sexualmente transmissíveis (DST). 

 Apesar de tudo isso, a maioria delas insiste na prostituição por faltar-lhe alternativas viáveis para se manter. É fácil julgá-las, dizendo que poderiam procurar uma trouxa de roupa para lavar, como já ouvi de alguns. Mas há razões que as tornam reféns dessa atividade. Dentre elas, a falta de qualificação profissional, a dependência de drogas ou álcool, coação por parte de um cafetão, dívidas e antecedentes criminais. Algumas, mesmo tendo alguma qualificação profissional, incluindo formação acadêmica, se entregam à prostituição por alguma das outras razões alistadas acima. Uma mulher com antecedentes criminais, por exemplo, dificilmente conseguirá um emprego formal. 

No Brasil, a prostituição não é considerada uma atividade ilegal. Entretanto, o incentivo à prostituição, bem como a contratação de mulheres para atuarem como prostitutas é crime, passível de prisão. Portanto, a cafetinagem [1]  segue sendo uma atividade criminosa. Hoje dia, é cada vez mais comum garotas e garotos de programa trabalharem por conta própria, sem estarem presos a um cafetão. Muitos divulgam seu trabalho através da internet, podendo selecionar o público que desejam alcançar e os potenciais clientes que preferem atender. Alguns desses profissionais do sexo são universitários que se prostituem para bancar os seus estudos.

Apesar de o incentivo à prostituição ser ilegal, órgãos do governo como a Embratur durante muito tempo não apenas fizeram vista grossa ao turismo sexual praticado em nossos cartões postais, como também incentivaram-no com propagandas subliminares devido aos lucros exorbitantes que gera. Boa parte dos turistas que visitam cidades como a do Rio de Janeiro vem atraída por imagens sensuais, principalmente exibidas durante o Carnaval.

A prostituição também é responsável direto pelo tráfico sexual, que não passa de uma forma de escravidão moderna. De acordo com o Protocolo de Palermo, tratado da ONU, o que caracteriza o tráfico sexual é o uso da força ou coerção, aproveitando a vulnerabilidade de alguém para explorar sua prostituição. O consentimento da vítima é irrelevante, assim como na escravidão e na tortura. O tráfico de seres humanos, além de uma violação dos direitos humanos, é um crime lucrativo. Trata-se do terceiro crime mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e armas. 

O lado mais glamoroso da prostituição talvez seja a chamada prostituição corporativa. Trata-se da troca de favores sexuais para se alcançar um melhor nível social ou para a concretização de negócios. Maquiavel, autor de “O Príncipe” orientava o principado a utilizar-se de mulheres sedutoras em troca de informações privilegiadas do interesse do governante. Há quem se utiliza deste tipo de prática para chantagear o concorrente, registrando com câmeras o encontro íntimo para depois exigir o que se pretende. As prostitutas corporativas geralmente são cultas, poliglotas, elegantes, ostentando joias e carros de luxo. Apresentam-se como acompanhantes, cicerones de estrangeiros, recepcionistas, tradutoras, empresárias. Usam seu poder de sedução para fechamento de contratos, pagamento e recebimento de propinas e informações sigilosas. 

A prostituição não é a profissão mais antiga do mundo, como geralmente se diz. Foi na Suméria, cerca de 2000 a.C, que surgiram as primeiras leis que distinguiam as mulheres “boas” das mulheres “más”, reforçando assim o estigma que as prostitutas já carregavam por séculos. Mais tarde, porém, em civilizações como a egípcia e a grega, as prostitutas alcançaram o status de sacerdotisas sagradas, sendo honradas como representantes das divindades e presenteadas em troca de favores sexuais [2]. Já na cultura judaica, a prostituição era severamente combatida. De acordo com as leis mosaicas, as prostitutas deveriam ser apedrejadas até a morte. Não obstante a isso, há episódios em que as Escrituras revelam certa tolerância para com as prostitutas, como no caso em que Josué poupou a vida de Raabe [3], a prostituta que acolheu os espias durante a tomada de Jericó. 

Antes da revolução sexual, era comum um chefe de família frequentar bordéis, para receber de prostitutas aquilo que o recato não permitia que recebesse de sua esposa. Igualmente comum era a prática de levar os filhos para serem iniciados por prostitutas. 

Como seguidor de Cristo, creio que devemos condenar veementemente a prostituição, por entender que tal atividade escraviza, coisifica, atenta contra a dignidade humana. Porém, jamais deveríamos julgar aos que são reféns desta prática nefasta. Recorrer aos préstimos de uma profissional do sexo seria o mesmo que ser cúmplice daquilo que a escraviza e destrói. Ou como diz Paulo, estaríamos sendo cúmplices de obras infrutuosas. [4]

A melhor maneira de se combater a prostituição não é apontando o dedo e condenando quem se prostitui. Em vez disso, deveríamos combater o que leva tanto mulheres quanto homens a alugar seus corpos no mercado do sexo. Não se combate o mal atirando pedras em seus frutos, mas atacando suas raízes. Uma sociedade mais justa e igualitária, certamente resultaria em menos mãos-de-obra para a prostituição. Uma sociedade em que mulheres fossem tratadas com mais dignidade, certamente inibiria a enorme quantidade de meninas que são aliciadas por cafetões ignóbeis e ambiciosos. 

No trabalho social que nosso ministério desenvolve no aterro sanitário de Jardim Gramacho, tomamos conhecimento de mães que oferecem suas filhas ainda menores a clientes ávidos por prazer. Meninas de 8 a 12 anos são usadas por homens bêbados que pagam um valor insignificante por seus favores sexuais. Pais oferecendo suas filhas para a prostituição? Que mundo cão é este em que vivemos? O que levaria uma mãe a agenciar a própria filha? Tal prática é tão antiga quanto a civilização. Por isso, Deus a proíbe peremptoriamente: “Não contaminarás a tua filha, fazendo-a prostituir-se.” [5]

Se no Antigo Testamento, a Lei de Moisés proíbe que se tragam ofertas advindas da prostituição ao santuário,[6] no Novo Testamento flagramos Jesus recebendo de uma prostituta uma oferta em forma de perfume que lhe custou um ano inteiro de prostituição.[7] 

Como devem ter se sentido os religiosos fundamentalistas de seu tempo, ao ouvi-lo dizer em alto e bom tom?: 
 “Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus. Porque João veio a vós outros no caminho da justiça, e não acreditastes nele; ao passo que publicanos e meretrizes creram. Vós, porém, mesmo vendo isto, não vos arrependestes, afinal, para acreditardes nele.” [8]

Primeiro, as damas! Sim, elas nos precederão! E sabe porquê? Porque é mais fácil levá-las à consciência de seu estado de carência da graça de Deus do que convencer a um religioso hipócrita e preconceituoso do quão perdido está. Nos braços de uma meretriz é possível encontrar mais compaixão do que no dedo à riste de um religioso desprovido de amor. Se quisermos alcançá-las, deixemos de usá-las para despejar nossa libido e passemos a amá-las como Jesus as amou. Enquanto a sociedade ama a prostituição, mas odeia as prostitutas, Deus amam as prostitutas, mas odeia a prostituição. Por ser amor, Ele não consegue evitar amá-las. E por isso mesmo, não pode endossar seu estilo de vida, visto que lhe traga tanto mal e sofrimento.

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[1] Agenciamento de prostitutas ou exploração sexual comercial de outra pessoa.
[2] Walton, John H.; Matthews, Victor H.; Chavalas, Mark W. (2000). The IVP Bible Background Commentary: Old Testament (em inglês) ilustrada ed. [S.l.]: InterVarsity Press. p. 754. 
[3] Josué 2.1, 6.17-25
[4] Efésios 5.11
[5] Levítico 19.29
[6] Deuteronômio 23.17-18
[7]  Lucas 7.36-50
[8] Mateus 21:31-32


* Leia aqui o que penso sobre a profissionalização das prostitutas

Um comentário:

  1. Excelente reflexão.
    O tempo passa e a hipocrisia continua mais viva do que nunca.
    O fato é quem julga os outros não tem tempo para amar o próximo.
    Nós somos chamados em Cristo para amar e não para julgar, portanto cumpramos a nossa vocação.

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