Por Hermes C. Fernandes
A prática sadomasoquista se popularizou nos últimos anos devido ao
best-seller “Cinquenta Tons de Cinza”, romance erótico de autoria da inglesa
Erika Leonard James, que graças ao seu estrondoso sucesso, lotou as salas de
exibição em sua versão cinematográfica. O primeiro livro da trilogia que é
fenômeno entre as mulheres vendeu mais de dez milhões de exemplares nas seis
primeiras semanas. Sem dúvida, um dos maiores fenômenos literários das últimas
décadas, alavancando como nunca a venda de produtos sadomasoquistas nos
sex-shops que se proliferam mundo afora.
O romance tem como personagem principal uma jovem de 21 anos chamada
Anastasia Steele. Após entrevistar Christian Grey para o jornal da universidade,
passa a ter um relacionamento nada convencional com o magnata. Em meio ao luxo,
ele a introduz num mundo sádico, intentando torna-la sua submissa sexual. Em vez
do colorido comum aos romances literários, eles se envolvem numa relação em que
o sexo casual e sádico se revela em tons envolventes.
O sadomasoquismo[1] é a prática sexual em que o
prazer é buscado por meio da dor. Envolve sadismo e masoquismo. O sádico ou
sadista é o que tem prazer em provocar dor, sofrimento físico ou moral no
parceiro sexual. O masoquista é o que tem prazer em sofrer essa dor. E há
pessoas que têm prazer em ambas as práticas, isto é, tanto em sentir dor, quanto
em provoca-la.
Os termos “sádico” e “masoquista” foram criados pelo psiquiatra austríaco
Richard Freiherr von Krafft-Ebing no livro ‘Psychopathia Sexualis’ publicado em
1886. Atualmente, o termo BDSM é mais usado para definir o sadomasoquismo, sendo
a sigla de Bondage [2], Disciplina, Dominação,
Submissão, Sadismo e Masoquismo.
Durante a relação sexual entre sadomasoquistas, o cortisol (hormônio
relacionado ao estresse) dos submissos cai significativamente, de modo que a
sensação de dor se torna em prazer. Além disso, a dopamina (neurotransmissor
relacionado ao prazer) é liberada com estímulos causados pela dor.
O comportamento sádico ou masoquista independe de fatores genéticos, pode ser
influenciado pelo ambiente familiar até os seis anos de idade. Pais agressivos e
chantagistas podem reforçar esses traços nas crianças, que poderão ser
desenvolvidos futuramente num relacionamento a dois. Para Freud, que foi um dos
primeiros a discutir o assunto dentro de uma visão psicológica, o sadomasoquismo
é patológico, e teria origem na infância. “Se a criança quando ainda pequena
presenciar o intercurso sexual, ela inevitavelmente irá considerar o sexo como
uma forma de subjugação. As crianças veem isso de uma maneira sádica.”[3]
Engana-se quem imagina que a dor seja o principal elemento na relação
sadomasoquista. Em vez disso, o que torna a prática atraente para muitos é a
consciência de que se está sob o completo controle do outro. Submissão é a
palavra chave. Mas não confunda este tipo de submissão com o proposto no
Evangelho, que significa tão somente dispor-se a servir ao próximo em amor. No
sadomasoquismo, o dominador da relação impõe o que o outro irá ouvir, fazer,
provar ou sentir. Algumas experiências envolvem derramar gotas de cera quente
sobre o corpo do dominado, açoitamentos, cordas, algemas, espartilhos,
humilhação sexual e gritos de dor e prazer.[4] Dentre
as práticas, talvez uma das mais assustadoras para os não praticantes seja a
asfixiofilia, também chamada de sufocação erótica, em que a pessoa sente um
aumento de prazer ao ter a respiração interrompida na hora do orgasmo. Apesar de
a maioria das pessoas relatar que a experiência teria sido melhor do que o sexo
tradicional, o objetivo do sexo sadomasoquista não é o intercurso em si, nem
mesmo o orgasmo, mas a catarse.
Geralmente, os praticantes de sadomasoquismo têm uma mala com uma série de
objetos que visam tornar a atividade mais completa, tais como salto agulha,
velas, pregadores para os mamilos, pênis e clitóris, algemas, roupas de couro,
cordas, cadeados, fitas adesivas, tachas pontiagudas, chicotes, palmatórias,
vendagens, etc.
O sadomasoquista não deve ser considerado um psicopata. Mesmo agressivo na
cama, ele pode ser calmo e levar uma vida social normal fora dela. A prática do
sadomasoquismo é mais frequente entre homens e mulheres instruídos, geralmente
de classe média alta. Por muito tempo, os praticantes do sadomasoquismo foram
considerados doentes mentais. Porém, em 1980 a Associação Americana de
Psiquiatria removeu o sadomasoquismo da categoria de desordens mentais. A
comunidade de especialistas em saúde mental concluiu baseada em pesquisas, que
sua prática não causaria danos reais, desde que as coisas não saiam do controle.
Nesse caso, o sadomasoquismo se tornaria doentio. Bem da verdade, em termos de
saúde mental, a prática sadomasoquista em si não torna o indivíduo pior nem
melhor que os demais.
O senso comum acredita que o ser humano é programado para fugir da dor e
buscar o prazer. Porém, o que se passa na vida real é bem diferente. Dor e
prazer são sensações fronteiriças. Diversas atividades prazerosas do dia a dia
envolvem certa dose de dor: corridas, exercícios físicos, tatuagens,
piercings etc. A ligação entre dor e prazer é biológica. Toda dor faz com
que o sistema nervoso central libere endorfinas – proteínas que agem para
bloquear a dor e que funcionam de maneira semelhante às drogas como a morfina,
gerando uma sensação de euforia. O hipocampo, centro de controle do sistema
nervoso, responde aos sinais de dor ao comandar a produção de endorfina, uma
espécie de “narcótico natural”, que além de bloquear a dor, estimula as regiões
límbicas e pré-frontal do cérebro, que são as mesmas ativadas pela paixão e pela
música.
As dores também causam um salto na produção de outro analgésico natural: a
anandamida. Conhecido como o "químico da felicidade", o aminoácido se alia a
receptores cerebrais para bloquear a dor e induzir as sensações de prazer. A
adrenalina, também produzida em resposta à dor, contribui para a excitação
através do aumento nos batimentos cardíacos.
Há uma linha tênue que separa a dor do prazer e que muitas vezes é
deliberadamente atravessada. Prazer e dor, alegria e tristeza não são apostos
entre si, mas sensações que se mesclam. O sábio Salomão é quem afirma: “Até
no riso o coração sente dor e o fim da alegria é tristeza.”[5]
Não seria o sadomasoquismo uma perversão sexual?
Segundo a psicologia, a perversão sexual é uma estrutura psicopatológica
caracterizada pelos desvios de objeto e finalidade sexuais. A pessoa portadora
de perversão sente-se atraída por aquilo que é, em geral, socialmente proibido
ou inaceitável. Deve-se salientar, entretanto, que a psicologia só considera
perversão quando o comportamento individual de excitação sexual somente se dá em
resposta a objetos ou situações diferentes das consideradas normais, e quando
esse comportamento interfere na capacidade do indivíduo de ter relações sexuais
ou afetivas consideradas normais.[6] Atualmente, a
Psicologia substituiu o termo “perversão”, que já tem um peso pejorativo no
senso comum, e colocou em seu lugar o termo “parafilia”[7] para caracterizar a patologia, numa tentativa de
amenizar o estigma que a palavra perversão coloca sobre a sexualidade humana. O
que caracteriza a patologia é a fixação nas escolhas distorcidas de objeto e
finalidade sexual. As fantasias são especializadas, de natureza repetitiva e que
angustiam a pessoa de modo que ela fica compelida ao ato parafílico. É
justamente seu caráter compulsivo que torna a parafilia na causa de um
sofrimento significativo ou prejuízo na vida familiar, ocupacional e social da
pessoa. Segundo a psicóloga clínica e terapeuta sexual Kátia Horpaczky, “na
parafilia, os meios se transformam em fins e de maneira repetitiva, configurando
um padrão de conduta rígido que, na maioria das vezes, acaba por se transformar
numa compulsão opressiva que impede outras alternativas sexuais.”[8]
De acordo com algumas teorias psicológicas, algumas parafilias podem ser
consideradas inofensivas, constituindo-se parte integral da psique humana
normal, a menos que sejam dirigidas a um objeto potencialmente perigoso, nocivo
ao sujeito ou a outros, representando prejuízo para saúde ou segurança dos
mesmos, ou ainda, quando impedem o funcionamento sexual normal.[9]
Considerar um comportamento como parafílico depende muito das convenções
sociais estabelecidas num determinado momento e lugar. A homossexualidade e
algumas práticas tais como o sexo oral ou anal e até a masturbação já foram
consideradas parafílicas, apesar de hoje em dia serem consideradas variações
normais e aceitáveis do comportamento sexual. Por isso, é praticamente
impossível elaborar uma lista definitiva de parafilias.
A masturbação, por exemplo, já não figura no catálogo de parafilias.
Entretanto, o excesso de masturbação depois da adolescência ou o fato de alguém
preferir esta prática ao contato com outro indivíduo pode configurar-se numa
parafilia.
O mesmo se dá com o sadomasoquismo. Se houver uma espécie de dependência
desta prática, a ponto do indivíduo não obter prazer sexual senão através dela,
ela poderá ser considerada prejudicial à sua saúde emocional, constituindo-se
numa parafilia, ou se preferir, numa perversão sexual.
Mesmo quem não é adepto do sadomasoquismo pode apreciar comedidamente certos
gestos comuns em qualquer relação sexual convencional, tais como mordiscadas,
tapinhas, leves puxões de cabelo, etc. Aliás, a vida sexual da mulher, via de
regra, começa com a dor provocada pelo rompimento do hímen. A diferença entre
quem pratica pequenos gestos dolorosos como os citados acima e um sadomasoquista
está basicamente na intensidade e na entrega. Portanto, ninguém deve ter seu
caráter julgado por apreciar alguma dosagem de dor durante a relação sexual.
Parafraseando Paulo, quem come não despreze quem não come e vice-versa.[10] “Tens tu fé? Tem-na em ti mesmo diante de Deus.
Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que
aprova.”[11]
[1] De acordo com a Classificação Internacional de
Doenças F65.5 o sadomasoquismo é considerado doença se apenas a atividade é a
fonte de estimulação mais importante do casal ou é necessária para a satisfação
sexual. O sadomasoquismo pode causar agressões, traumas e morte.
[2] Bondage é o nome da técnica onde o submisso é
amarrado.
[3] Citado em PsychologyToday traduzido e adaptado por
Psiconlinews. Postado em 29 de outubro de 2016 e consultado em 19/01/2018.
[4] Spanking é uma das práticas mais comuns
entre os sadomasoquistas e consiste em bater no outro com palmatória e outros
objetos.
[5] Provérbios 14.13
[6] KERNBERG, O. Perversão, perversidade e
normalidade: diagnóstico e considerações terapeuticas. Revista Brasileira de
Psicanálise, 32(1):67-82, 1998
7] Parafilia - do grego παρά, para, "fora de",e φιλία,
philia, "amor"
[8] Em “Qual é o limite entre a fantasia e a perversão
sexual?”, Revista Super Interessante versão online publicada em 28 de fevereiro
de 2006.
[9] São classificadas como distorções da preferência
sexual na CID-10 na classe F65.
[10] Romanos 14.3
[11] Romanos 14.22
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