terça-feira, junho 27, 2017

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Davi e Bate-Seba: Quando Deus extrai o bem do mal que fizemos




Por Hermes C. Fernandes 

Ele deveria estar no front de batalha, como costumeiramente fazia. Mas desta feita, Davi preferiu tirar uns dias de folga. Nada mais justo para quem levava uma vida tão agitada desde o fatídico dia em que derrotou o gigante filisteu. Enquanto seus homens lutavam pela expansão e manutenção de seu reino, Davi curtia um final de tarde no terraço de seu palácio. Com a cabeça arejada, algo fisgou sua atenção. Há poucos metros dali, uma mulher de corpo escultural banhava-se alheia ao fato de estar sendo observada. O rei voyeur chama um de seus serviçais e pergunta-lhe quem era a bela mulher. Mesmo sendo informado tratar-se de esposa de Urias, um de seus mais leais soldados, Davi não hesita mandar trazê-la às pressas para o seu deleite.

A julgar pelo texto bíblico, não houve qualquer resistência por parte de Bate-Seba em atender ao chamado do rei. Talvez imaginasse que o rei lhe daria notícias do front. Quiçá algo houvesse ocorrido ao seu marido e o rei preferiu contar pessoalmente. Sou capaz de apostar que seu coração estava a mil. Não era normal que o rei mandasse chamar alguém assim, sem mais, nem menos.

Jamais saberemos quais armas ele usou para seduzi-la: se usou de sua autoridade ou apelou para expedientes mais sutis. O fato é que ela acabou cedendo. Possivelmente, devido à ausência do marido por tempo prolongado, ela estivesse carente. Davi, por sua vez, desprovera-se de qualquer escrúpulo para conseguir o que queria: uma noite de luxúria com aquela linda mulher. O que ele jamais poderia supor era o quanto aquilo lhe custaria.

Não muito tempo depois, chegava-lhe a notícia: Bate-Seba estava grávida.

Seu mundo virou de ponta-cabeça. Seu pecado seria exposto. Sua credibilidade ruiria. Tudo pelo qual havia lutado até ali corria o risco de desabar. Nos dias atuais, a primeira ideia que lhe ocorreria talvez fosse um aborto. Em vez disso, Davi mandou buscar Urias e insistiu com ele para que desfrutasse de uma merecida noite de amor com sua esposa. Surpreendentemente, Urias recusa a oferta, alegando não ser justo que assim fizesse, enquanto seus companheiros arriscavam a vida no front. Pela primeira vez, Davi se deparava com alguém com envergadura moral superior a dele. Como alguém poderia recusar tal oferta? Como alguém poderia manter-se leal aos seus amigos a ponto de recusar uma noite de amor com a própria esposa? Se houvesse aceitado, o problema estaria resolvido. Para todos os efeitos, aquela indesejável gravidez teria sido fruto do reencontro entre Urias e Bate-Seba. Porém, o plano deu errado. Mas Davi não se dispunha a desistir. No dia seguinte, tratou de embebedar a Urias no afã de persuadi-lo a deitar-se com sua esposa. Nem assim, ele cedeu. Seu caráter era mais forte que o efeito do álcool. Não restou alternativa a Davi, senão apelar ao que havia de pior em sua natureza ambígua.

Munido de uma mensagem lacrada endereçada a Joabe, o general de confiança de Davi, Urias retornou ao front. Fiado em seu caráter irredutível, Davia sabia que Urias jamais ousaria romper os lacres daquele pergaminho e acessar sua mensagem. Urias nem sequer desconfiava que nele constava sua própria sentença de morte. A ordem do rei era clara. Joabe deveria escalar a Urias para posicionar-se na frente da batalha, e quando os inimigos avançassem, todos os homens deveriam retroceder e deixa-lo sozinho, vulnerável ao ataque. Como o “homem segundo o coração de Deus” poderia revelar-se tão covarde? Desconfio que a razão não era apenas a gravidez de Bate-Seba, mas o fato de ele ter se deparado com alguém mais honrado do que ele. Definitivamente, não havia lugar para Davi e Urias no mesmo reino. Sua existência por si só desafiava seus mais profundos escrúpulos. Portanto, numa única tacada, Davi se livrava de dois problemas.

Desta vez, o pleno funcionou. Urias foi morto pelas mãos dos amonitas. Agora, Bate-Seba era uma mulher viúva, portanto, desimpedida. Passado o tempo de luto, Davi mandou busca-la e a tomou como esposa.

Tudo voltara a ser como antes. Ou melhor, tudo ficara ainda melhor para Davi. Afinal, aquela linda mulher tornara-se sua esposa.  Até que... Num belo dia, o rei recebe a inusitada visita de um profeta.

Natã era daqueles que não tinham papas na língua, mas sabia usar bem as palavras. Sua missão era confrontar o rei e expor, não apenas o seu pecado, mas também sua natureza contraditória. Para tal, o profeta recorre a uma parábola na qual um homem muito rico, dono de vastos rebanhos, recebe em sua casa um viajante. Em vez de mandar matar um de seus bois para alimentar o viajante, manda matar a única cordeira de um vizinho muito pobre. Ao ouvir o relato, tomado de ira, Davi se levanta do trono e vocifera: Este homem merece a morte! Como alguém tendo tanto pode fazer tal coisa a alguém que nada tinha senão uma mísera cordeira?

Fitando-lhe os olhos, Natã diz: Este homem é você! Deus lhe deu tantas coisas, e se não estivesse satisfeito, Ele lhe daria muito mais. Mas em vez de contentar-se, você preferiu tomar a única mulher de um homem que lhe era leal. Não pense que Ele fará vista grossa a isso! O juízo de Deus virá sobre você.

Diante do veredito divino, Davi confessa: Eu pequei!

Arrependido, o rei ouve dos lábios do profeta que Deus já o havia perdoado, mas que isso não o isentaria das consequências de seu pecado. Deus não estava disposto a colocar panos quentes sobre o seu erro, evitando assim que Seu precioso nome fosse escarnecido entre as nações. Como medida disciplinar, o fruto daquele pecado não vingaria.

Enquanto a criança sobrevivia, Davi orava com todas as suas forças, rogando que a sentença divina fosse revogada.  Seus conselheiros já demonstravam preocupação com seu estado emocional. Ele não comia, nem bebia, nem se banhava. Só fazia chorar. O que faria se a criança viesse a óbito?

Tão logo a criança morreu, Davi levantou-se, tomou um banho , alimentou-se e retomou sua rotina. Todos ficaram estupefatos com sua inusitada reação. Ele, finalmente, virara a página. Já não adiantava se lamentar. “Eu irei a ela, mas ela jamais virá a mim”, respondeu ao ser indagado por seus anciãos.

Todos lemos esta história a partir de Davi. Mas quanta dor Bate-Seba enfrentou!  Quão difícil a ela foi sofrer o assédio do rei, engravidar-se dele, perder seu marido de maneira cruel e covarde, ter que conviver com o homem responsável por isso, e ainda perder tragicamente seu primeiro filho.  

Que bom saber que a história não termina assim. Deus é capaz de extrair coisas boas até de nossos equívocos mais insanos.  Uma segunda gravidez estava a caminho. Mas agora, ela não era um romance do rei, mas sua esposa, aquela que se assentava ao seu lado no trono.

Em Sua infinita misericórdia, Deus a presenteara com um filho que sucederia Davi em seu trono. O texto bíblico diz que Deus amou a Salomão. De todos os filhos de Davi, ele não foi apenas o escolhido por Deus para sucedê-lo, mas também foi aquele por cuja linhagem viria Jesus, o Salvador dos homens.

Quem diria... Bate-Seba na árvore genealógica de Jesus!

Isso não significa que Deus houvesse endossado o erro de Davi. As consequências foram drásticas. Deus não o poupou de nenhuma delas. Entretanto, nada disso foi capaz de alterar o Seu propósito na vida e na descendência do rei salmista.

Lições aprendidas deste episódio:

1 – Estar no lugar certo, fazendo a coisa certa, na companhia das pessoas certas, nos poupará de dar passos incertos em nossa vida.

2 – Um erro não justifica outro erro. A melhor maneira de lidar com nossos erros é admitindo-os diante de Deus.

3 – A misericórdia que usamos para com os outros será a mesma que se aplicará a nós. Semelhantemente, a rigidez com que tratamos os outros se voltará contra nós.

4 – O perdão de nossos pecados não nos isenta de suas consequências.

5 – Devemos lutar para reverter uma situação que esteja em processo, mas também devemos aprender a virar a página e seguir em frente quando ela se revela irreversível.

6 – Nenhum de nossos equívocos é capaz de colocar em risco os propósitos divinos em nossa vida.

7 – Deus é poderoso e amoroso o suficiente para extrair coisas boas de nossos equívocos.

8 – O que começou errado não está fadado a terminar errado.

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* Esta reflexão está baseada nos seguintes textos: 2 Samuel 11:1-15, 26-27; 12:1-24; 1 Reis 1:28-31

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