Por Hermes C. Fernandes
Nenhuma ideologia política tem sido alvo de tantos maus
entendidos como o anarquismo. Para o senso comum, anarquismo ou anarquia são
sinônimos de desordem, caos ou vandalismo. Foi baseado neste conceito
equivocado que a profetiza norte-americana Cindy Jacobs relatou à cantora Ana
Paula Valadão uma visão que teria tido com uma letra A dentro de um círculo
(logo do anarquismo) que pairava sobre o Brasil, o que levou ambas à conclusão
de que um “principado de anarquia” estava tomando o país de assalto, resultando
em rebeliões nos presídios e o caos nas ruas do Espírito Santo devido à
paralisação da política militar.
“Anarquismo” nada tem a ver com isso. Trata-se, antes, de
um conjunto de princípios políticos, sociais e culturais que defende o fim de
qualquer forma de hierarquia e dominação (política, econômica, social e
religiosa). Em suma, os anarquistas defendem uma sociedade baseada na liberdade
total, porém, responsável. O objetivo do anarquismo é superar a ordem social
vigente através de um projeto construtivo fundamentado na autogestão, tendo em
vista a constituição de uma sociedade libertária que tenha por base a
cooperação e a ajuda mútua entre seus indivíduos livremente associados.
A própria origem etimológica do termo aponta para este
conceito. “Anarquismo” deriva-se do grego anarkhos
(ἀναρχος) que significa “sem governantes”.
Justamente por questionar a necessidade da autoridade, o anarquismo tem sido visto por cristãos como
incompatível com a proposta do evangelho. Afinal de contas, somos ensinados a
nos submeter às autoridades constituídas, reconhecendo-as como ministros de
Deus, ainda que sejam déspotas, tiranos, sanguinários.
Infelizmente, estamos habituados a ler as Escrituras com
as lentes ideológicas que visam justificar o status quo. Não foi em vão que
Napoleão Bonaparte disse: “Religião é uma coisa excelente para manter as
pessoas comuns quietas.” Ou como bem conclui Karl Marx, “a religião é o ópio
do povo.”
O que a maioria parece desconhecer é que a proposta
cristã original nada tinha de religião (pelo menos, não o que hoje consideramos
religião). Ela estava bem mais próxima de uma proposta revolucionária. Mas
desde que se tornou numa religião estatal, o cristianismo perdeu boa parte de seu
poder subversivo. O Estado apropriou-se de seu discurso e adaptou-o aos seus
interesses. A mensagem do Cristo que antes fazia tremer os tronos dos poderosos,
passou a justificar a sede de poder das classes dominantes.
O Cristo que emerge das páginas do Novo Testamento jamais
poderia ser considerado rei nos moldes deste mundo. Ele está bem mais para um
anti-rei. Seu discurso desarticula qualquer ambição de dominação.
Certa feita, Jesus flagrou um bate-boca entre seus
discípulos para ver quem seria o maioral. Sua resposta foi paradigmática:
“Os reis dos gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre
eles são chamados benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre
vós seja como o menor; e quem governa como quem serve. Pois qual é maior: quem
está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre
vós sou como aquele que serve.” Lucas
22:24b-27
O que foi isso,
senão um golpe desferido sobre a pretensão de se estabelecer uma hierarquia
entre seus discípulos? Propositadamente, Jesus subverte a ordem baseada na
autoridade imposta de cima para baixo. Em seu reino, o maior é aquele que serve
à mesa, e não aquele que almeja ser servido. Ele nos introduz um novo conceito sobre o
exercício da autoridade. Em vez de ser aquele que exerce controle, é aquele que
exerce cuidado.
Alguém com um discurso desses teria que ser banido o
quanto antes. Não eram seus milagres que preocupavam as autoridades da época, e
sim o seu discurso revolucionário. O que Ele propunha não era uma insurreição
contra os romanos, mas algo bem mais profundo e amplo. Um levante contra o
modelo social baseado em hierarquias e controle. E a única arma que deveria ser
usada para emperrar este sistema era o amor.
A natureza do reino que Ele representava era,
indubitavelmente, anárquica. Ele mesmo, sendo o Rei enviado do céu, não
pretendia impor-se como tal, mas apresentar-se como um servo, o menor de todos,
o que se apresentava para lavar os pés dos demais.
A igreja por Ele iniciada tinha como objetivo oferecer ao
mundo uma amostra grátis de como as coisas funcionam no reino de Deus. Uma
comunidade formada por pessoas oriundas de todas as classes sociais, porém, niveladas
pela graça. Qualquer distinção classista deveria desaparecer. Entre eles já não
haveria distinção étnica, social ou mesmo sexista.
Muito antes da constituição da igreja neotestamentária,
Israel experimentou um período de três séculos e meio de anarquia. Eis a prova
cabal de que a utopia pode ser alcançada. Mesmo sem a presença operante do
Espírito Santo iluminando as consciências (o que só ocorreria a partir de
Pentecostes), as doze tribos de Israel coexistiram por 349 anos sem se
submeterem à figura de um monarca.
Há um livro da Bíblia inteiramente dedicado a este
período da história de Israel. Nele lemos que “naqueles dias não havia rei em Israel; porém cada um fazia o que
parecia reto aos seus olhos” (Juízes
21:25).
Apesar de não terem reis, as tribos se articulavam entre si
sob a orientação do seu Deus que falava pelos lábios de profetas. Com o passar do tempo, os israelitas começaram
a almejar constituir uma monarquia semelhante à de outros povos da região. Bastou
que um dos juízes se destacasse para que eles o vissem como um pretenso
candidato ao trono. Foi assim com Gideão que se recusou bravamente a ocupar a
vaga. A proposta que lhe fora feita pelo povo que acabara de libertar da
exploração dos midianitas era que Gideão não apenas se fizesse rei, mas também fundasse
uma dinastia. “Domina sobre nós”,
disseram eles, “tanto tu, como teu filho
e o filho de teu filho; porquanto nos livraste da mão dos midianitas.” Quem em sã consciência recusaria a uma oferta
dessas? Pois Gideão a recusou peremptoriamente: “Sobre vós eu não dominarei, nem tampouco meu filho sobre vós dominará;
o Senhor sobre vós dominará” (Juízes
8:22,23). Ele teria sido o primeiro rei de Israel, caso se dobrasse ante as
reivindicações do seu povo. Mas preferiu passar a vez. Se dependesse do herói
hebreu, Israel seguiria sendo uma perfeita anarquia.
Séculos mais tarde,
quando o oráculo de Deus pesava sobre os ombros de Samuel que reunia o triplo
ofício de profeta, sacerdote e juiz, “todos
os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e disseram-lhe:
Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos;
constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o
têm todas as nações.” Por razões óbvias, Samuel sentiu-se ofendido pela
demanda popular e trouxe o assunto a Deus que lhe disse: “Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não te têm rejeitado
a ti, antes a mim me têm rejeitado, para eu não reinar sobre eles” (1 Samuel 8:4-7).
Apesar de sentir-se
preterido por seu próprio povo, Deus resolveu atender ao seu apelo. Todavia,
convém salientar que a monarquia foi uma concessão divina, não significando que
expressasse “a boa, perfeita e agradável
vontade de Deus” para o seu povo.
Alguém poderá
objetar dizendo que já era plano de Deus para que mais adiante, Davi, que era
um homem segundo o seu coração, ascendesse ao trono. Fica subentendido que
Saul, o primeiro rei, foi um improviso, alguém que deveria esquentar o trono
para aquele que seria, de fato, a provisão de Deus, de cuja descendência viria
o governante dos povos, o Filho de Deus.
Permita-me uma
analogia. Digamos que a anarquia experimentada por Israel naquele longo período
equivalesse ao primeiro andar de uma construção. Deus, então, resolve ceder à
pressão popular, permitindo a construção de um segundo andar que seria a
monarquia. Davi e sua descendência equivaleriam à escada que ligaria ambos os
andares. Através dele, Deus traria ao mundo um rei diferente de todos, que
abriria mão do controle pelo cuidado, do poder pelo amor.
Em outras palavras,
a provisão divina é tão vasta que abarca até nossos mais desastrosos
improvisos.
Porém, isso não significa
que Deus tenha desistido de seu plano original. Não há plano B. As eventuais
contingências no percurso não impedirão a execução de seu propósito.
Dentro do contexto
do Novo Testamento, ouso afirmar que Maria, a mãe de Jesus, foi a primeira
pessoa a perceber o teor subversivo da proposta de Deus para a sociedade
humana. Em seu cântico conhecido como Magnificat, ela expressa eloquentemente
suas expectativas anárquicas:
“A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus
meu Salvador; porque atentou na baixeza de sua serva; pois eis que desde agora
todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque me fez grandes coisas o
Poderoso; e santo é seu nome. E a sua misericórdia é de geração em geração
sobre os que o temem. Com o seu braço agiu valorosamente; dissipou os soberbos
no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os
humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.” Lucas 1:46-53
Depor os poderosos? Elevar os humildes? Esvaziar o bolso dos
ricos? Distribuir bens para os famintos? Quem diria que a mãe de Jesus pintada
pela tradição como uma figura inofensiva tivesse ideias tão revolucionárias e
ideais tão libertários? Que educação ela não teria dado a Jesus, hein? Que tipos de valores ela não lhe
teria passado?
Por incrível que pareça, este tipo de ideário perpassa todo
o Novo Testamento. Dos Evangelhos sinóticos a Apocalipse.
Foi justamente este ideário subversivo e anárquico que
bancou a postura dos apóstolos diante das ameaças recebidas da casta
sacerdotal. Expressamente proibidos de ensinarem em nome de Jesus, Pedro e os
demais responderam às maiores autoridades religiosas de seu tempo: “Mais
importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29). O que repesentaria tal postura senão desobediência civil? A mesma pregada
por Martin Luther King Jr, Mahatma Gandhi, Mandela, Leon Tolstói e tantos
outros.
Nenhuma autoridade, por mais legítima que seja, tem a
palavra final. Suas ordens devem passar pelo crivo da consciência. A submissão
requerida nas Escrituras, sobretudo nas epístolas de Paulo e de Pedro, não pode
ser confundida com subserviência (falaremos mais sobre isso num próximo post). Recuso-me a crer que Deus requeresse que obedecêssemos
cegamente a alguém, violando nossa consciência em nome de um capricho qualquer.
Embora creiamos que as autoridades constituídas servem a um
propósito divino, não atribuímos a elas inerrância, infalibilidade, tampouco vitaliciedade.
Toda autoridade tem escopo e prazo de validade. Nenhuma autoridade pode extrapolar
as bordas da sua esfera de atuação, nem o prazo estabelecido para o seu
exercício.
O mesmo apóstolo que nos advertiu a que nos submetêssemos às
autoridades, afirmou que agora mesmo os poderosos deste mundo “estão sendo reduzidos a nada” (1
Coríntios 2:6). O Cristo de Deus é aquele em cuja mão há um cetro de ferro com
o qual está quebrando toda estrutura de poder. O anúncio da boa nova do reino é
seguido pela denúncia das estruturas hierárquicas que visam manter os homens
num cativeiro. E não imagine que a revolução virá de cima para baixo. Pelo
contrário. Ela acontece de baixo para cima. Não se trata de uma intervenção
apoteótica, mas de uma insurreição pacífica, motivada exclusivamente por amor.
A igreja é convocada a participar de uma conspiração divina
que visa depor os poderosos e elevar os humildes, estabelecendo assim a
anarquia do reino de Deus. Somos, por assim dizer, a ferramenta pretendida por
Deus para emperrar a máquina, sabotar o sistema de dominação, opressão e
exploração.
É a isso que Paulo alude no primeiro capítulo de sua
primeira epístola aos Coríntios:
“Porque, vede, irmãos, a vossa
vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos,
nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste
mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo
para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as
desprezíveis, e as que não são, para aniquilar
as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele.” 1 Coríntios 1:26-29
Por isso, a igreja precisa caminhar par a par com os
movimentos sociais, identificando-se com seus clamores e aspirações. Em vez
disso, temos nos alinhado aos poderosos, sem perceber que assim, estamos nos
insurgindo contra o projeto do reino de Deus.
O último capítulo da história já foi escrito. Paulo nos
oferece um irresistível spoiler:
“Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando
houver destruído todo domínio, e toda autoridade e todo poder. Porque convém
que reine até que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés.” 1 Coríntios 15:24,25
Não se trata do fim do mundo, mas da conclusão do processo
histórico. Todas as estruturas de poder terão sido demolidas. A mensagem libertária
do evangelho terá sido espalhada por todo o tecido social, gerando uma nova
consciência que resultará no apogeu do processo civilizatório, em que governos
se tornarão obsoletos. Seremos, então,
governados pela consciência iluminada pelo Espírito de Cristo. Cumprir-se-á a
última pincelada profética de Paulo: Quando todas as estruturas de poder
houverem se sujeitado a Cristo, então,
Ele mesmo “se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus
seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28).
Haveria um desfecho melhor que esse? Deus será tudo em todos! Nada de
hierarquias! Nada de governantes! Não mais nações divididas por fronteiras! Não
mais a hegemonia do capital! Nada de exploração! Nada de opressão! Apenas Deus
sendo tudo em todos. Seja bem-vindo à
santa anarquia do reino de Deus.
Na próxima semana,
abordaremos Romanos 13 à luz do que expusemos até agora.
Segue abaixo a palestra que dei recentemente sobre o tema em questão. Acho que vale a pena dar uma conferida.
Segue abaixo a palestra que dei recentemente sobre o tema em questão. Acho que vale a pena dar uma conferida.
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