sábado, novembro 19, 2016

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O que a palavra esconde e o silêncio revela



Por Hermes C. Fernandes

Num mundo de obviedades, em que todos somos flagrantes ambulantes, não é qualquer um que desenvolve a habilidade de nos ler nas entrelinhas. É preciso ser dotado de sensibilidade ímpar para decifrar os códigos do ser e acessar aquela camada oculta entre a epiderme e a alma. É como o lençol que se estende discretamente entre a colcha e o colchão.

Se fosse uma camada espessa, qualquer um a encontraria. Mas é tênue e difusa. Camufla-se. Esconde-se, principalmente, na linguagem. É mais fácil prestar atenção no que é bem dito ou mal dito, deixando passar incólume o não dito.

Quanta eloquência há no silêncio, no hiato entre as palavras,  na pausa para respirar ou suspirar. Se mal compreendemos o que se fala, quanto menos o que se cala. Assim como numa radiografia, o contraste entre palavras e silêncio nos dá uma imagem tridimensional de nossa alma. Mas somente olhos clínicos, devidamente treinados por uma percepção aguçada, podem emitir um laudo do que se passa nas entrelinhas do ser.

Até o ritmo, o fluxo das palavras encerra significados profundos. Nem mesmo uma vírgula, uma reles vírgula, aparece no meio de uma frase à toa. Quantos pontos finais escondem a intenção de se tornarem reticências! Quantas interrogações sonham em se tornar exclamações! Palavras escondem mais do que revelam. Por isso, ouve-se mais com os olhos do que propriamente com os ouvidos. Observa-se o movimento dos lábios enquanto destila cada palavra, a postura, o brilho no olhar, a linguagem das periferias do corpo, etc.

Ouve-se com o faro. Pena não termos o olfato perspicaz para perceber odores sutis, disfarçados nos perfumes.

Ouve-se com o tato. Quanta coisa diz um toque! Que dirá um abraço!

Ouve-se, sobretudo, com o paladar. É preciso provar as palavras. Saber que sabor têm. Se são insossas ou devidamente temperadas; se são doces, amargas ou mesmo agridoces.  E para isso, temos que mordiscá-las, saboreá-las, mastigá-las, absorver todos os seus nutrientes.  Deixar que elas se tornem carne e sangue. O verbo tem que se fazer carne em nós.

E por fim, é necessário que se esteja atento às figuras de linguagem, aos contos, às verdades implícitas na ficção. Uma coisa é o que se diz, outra é o que se pretende dizer. A distância entre a expressão e a intenção pode ser abismal.

Se tão somente houvesse uma espécie de tecla SAP que nos facilitasse a compreensão do que se pretende dizer, a estrada da comunicação jamais seria interditada. Pensando bem, esta tecla existe e se chama amor.


Abaixo, um poema que compus tempos atrás.

Um cálice de ‘cale-se’ – Um brinde ao silêncio

Silêncio é tributo prestado àquilo que a alma encanta
Silêncio absoluto, recado tranquilo que acalma ou espanta

Se falo, ao céu expresso o que sinto
Se calo, réu confesso, consinto

Se falo, descrevo o que vejo
Se calo, é pela paz que almejo
Se falo, eu ancoro o desejo
Se calo, num mar calmo velejo
Se falo, demonstro traquejo,
Se calo, me vem um lampejo
Se falo, faço  gracejo
Se calo, desperto bocejo
Se falo, enxurrada despejo
Se calo, valorizo o gotejo

Palavra é braçada.
Silêncio, mergulho.
Palavra é presente.
Silêncio, embrulho.
Palavra é porta.
Silêncio, janela.
Palavra conforta.
Silêncio, anela.
Palavra exorta.
Silêncio, apela.
Palavra distrai.
Silêncio, revela.
Palavra é tinta.
Silêncio é tela.
Palavra distingue.
Silêncio, nivela.
Palavras marcam.
Silêncio, sequela.
Palavra é palácio.
Silêncio, capela.
Palavra é barco.
Silêncio, a vela.
Palavras são partos.
Silêncio, gestação.
De palavras, fartos
Por silêncio buscarão.

Antes de levantar nossas vozes
lembremo-nos que diante dos algozes
O Verbo Divino se calou
Por nós sorveu inteiro o cálice
Se vai orar, primeiro, cale-se
em reverência à dor e a eloquência do seu amor.

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