Por Hermes C. Fernandes
Num mundo de obviedades, em que todos somos flagrantes
ambulantes, não é qualquer um que desenvolve a habilidade de nos ler nas
entrelinhas. É preciso ser dotado de sensibilidade ímpar para decifrar os
códigos do ser e acessar aquela camada oculta entre a epiderme e a alma. É como
o lençol que se estende discretamente entre a colcha e o colchão.
Se fosse uma camada espessa, qualquer um a encontraria. Mas
é tênue e difusa. Camufla-se. Esconde-se, principalmente, na linguagem. É mais
fácil prestar atenção no que é bem dito ou mal dito, deixando passar incólume o
não dito.
Quanta eloquência há no silêncio, no hiato entre as
palavras, na pausa para respirar ou
suspirar. Se mal compreendemos o que se fala, quanto menos o que se cala. Assim
como numa radiografia, o contraste entre palavras e silêncio nos dá uma imagem
tridimensional de nossa alma. Mas somente olhos clínicos, devidamente treinados
por uma percepção aguçada, podem emitir um laudo do que se passa nas
entrelinhas do ser.
Até o ritmo, o fluxo das palavras encerra significados
profundos. Nem mesmo uma vírgula, uma reles vírgula, aparece no meio de uma
frase à toa. Quantos pontos finais escondem a intenção de se tornarem
reticências! Quantas interrogações sonham em se tornar exclamações! Palavras
escondem mais do que revelam. Por isso, ouve-se mais com os olhos do que
propriamente com os ouvidos. Observa-se o movimento dos lábios enquanto destila
cada palavra, a postura, o brilho no olhar, a linguagem das periferias do corpo,
etc.
Ouve-se com o faro. Pena não termos o olfato perspicaz para
perceber odores sutis, disfarçados nos perfumes.
Ouve-se com o tato. Quanta coisa diz um toque! Que dirá um
abraço!
Ouve-se, sobretudo, com o paladar. É preciso provar as
palavras. Saber que sabor têm. Se são insossas ou devidamente temperadas; se
são doces, amargas ou mesmo agridoces. E
para isso, temos que mordiscá-las, saboreá-las, mastigá-las, absorver todos os
seus nutrientes. Deixar que elas se
tornem carne e sangue. O verbo tem que se fazer carne em nós.
E por fim, é necessário que se esteja atento às figuras de
linguagem, aos contos, às verdades implícitas na ficção. Uma coisa é o que se
diz, outra é o que se pretende dizer. A distância entre a expressão e a
intenção pode ser abismal.
Se tão somente houvesse uma espécie de tecla SAP que nos
facilitasse a compreensão do que se pretende dizer, a estrada da comunicação
jamais seria interditada. Pensando bem, esta tecla existe e se chama amor.
Abaixo, um poema que compus tempos atrás.
Um cálice de ‘cale-se’ – Um brinde ao silêncio
Silêncio é
tributo prestado àquilo que a alma encanta
Silêncio absoluto, recado tranquilo que acalma ou espanta
Silêncio absoluto, recado tranquilo que acalma ou espanta
Se falo, ao céu
expresso o que sinto
Se calo, réu
confesso, consinto
Se falo, descrevo
o que vejo
Se calo, é pela
paz que almejo
Se falo, eu ancoro
o desejo
Se calo, num mar
calmo velejo
Se falo, demonstro
traquejo,
Se calo, me vem um lampejo
Se falo, faço gracejo
Se calo, desperto bocejo
Se falo, enxurrada
despejo
Se calo, valorizo
o gotejo
Palavra é braçada.
Silêncio,
mergulho.
Palavra é
presente.
Silêncio,
embrulho.
Palavra é porta.
Silêncio, janela.
Palavra conforta.
Silêncio, anela.
Palavra exorta.
Silêncio, apela.
Palavra distrai.
Silêncio, revela.
Palavra é tinta.
Silêncio é tela.
Palavra distingue.
Silêncio, nivela.
Palavras marcam.
Silêncio, sequela.
Palavra é palácio.
Silêncio, capela.
Palavra é barco.
Silêncio, a vela.
Palavras são
partos.
Silêncio,
gestação.
De palavras,
fartos
Por silêncio
buscarão.
Antes de levantar nossas vozes
lembremo-nos que diante dos algozes
O Verbo Divino se calou
Por nós sorveu inteiro o cálice
Se vai orar, primeiro, cale-se
em reverência à dor e a eloquência do seu amor.
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