sexta-feira, outubro 02, 2015

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Intolerância religiosa e a Teoria da Janela Quebrada



“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos
façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”  ― Saramago

Por Hermes C. Fernandes

No final dos anos 1960, o psicólogo social Philip Zimbardo da Universidade de Stanford (EUA), realizou um experimento em que duas viaturas idênticas foram abandonadas em vias públicas. Uma delas foi deixada no Bronx, zona pobre de Nova York, então conhecida por seu alto índice de criminalidade. A outra foi deixada em Palo Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Em poucas horas, a viatura abandonada no Bronx foi vandalizada. Levaram suas rodas, espelhos, rádio e até o motor. O que sobrou dela foi totalmente destruído. Já a viatura deixada em Palo Alto manteve-se intacta por uma semana. Não se dando por satisfeito, o pesquisador quebrou uma das janelas do veículo e afastou-se para ver o que aconteceria. Em pouco tempo, o carro foi totalmente depenado, da mesma maneira que ocorreu no Bronx. O psicólogo concluiu que o delito não se deu devido à pobreza, haja vista que o carro estava numa região rica e supostamente segura. O fato é que, uma janela quebrada numa viatura abandonada em via pública transmite a ideia de deterioração e desinteresse, informando aos transeuntes de que ninguém se importava, provocando, assim, uma reação inusitada de depredação.

Tomando por base esta experiência, dois criminologistas da Universidade de Harvard, James Wilson e George Kelling,[1] desenvolveram a Teoria das Janelas Quebradas, que afirma, entre outras coisas, que o delito é sempre maior em zonas onde prevaleça o descuido, a sujeira, e a desordem. Segundo esta teoria, se uma janela de um edifício aparece quebrada sem que ninguém a conserte, logo todas as outras estarão igualmente quebradas. Deve-se resolver os problemas quando ainda estão pequenos, impedindo, assim, que se agigantem e se perca o controle sobre eles. Em 1990, os autores foram enviados a Nova York onde desenvolveram um trabalho no metrô para comprovar sua teoria. Eles apostaram que se as “janelas quebradas” fossem arrumadas, a delinquência seria reduzida. Em outras palavras, se o lixo fosse recolhido, os ratos não encontrariam o ambiente perfeito para se proliferarem.

A partir daí, a polícia começou a combater os pequenos delitos, como entrar sem pagar, urinar, mendigar e pichar as paredes das estações e os trens. Meses depois, a delinquência no metrô de Nova York havia caído 75%. Aos poucos, a mesma política começou a ser adotada em outros lugares, tais como praças e parques, obtendo resultado semelhante.  Animado com o resultado, em 1994, o prefeito Rudolph Giuliani adotou uma política de combate ao crime que se tornou conhecida como “Tolerância Zero”. A expressão que soava repressiva e autoritária, foi responsável por impulsionar a popularidade do prefeito e recuperar a confiança dos nova-iorquinos na segurança pública.

Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que visitei Nova Iorque em 1991, fui advertido por um transeunte por causa da filmadora que carregava comigo a tiracolo na região da Broadway. Depois da implementação desta política, voltei várias vezes à cidade, e presenciei famílias inteiras transitando pelas ruas da cidade tarde da noite em completa segurança.

O termo “tolerância zero” virou até bordão nos lábios do Seu Saraiva, personagem vivido pelo saudoso ator e comediante Francisco Milani no programa Zorra Total da Rede Globo de Televisão. “Como é assim”, dizia ele em tom sarcástico, “pergunta idiota, tolerância zero!”[2]

Não precisa grande esforço para perceber que o título do livro que estou prestes a lançar foi inspirado no termo usado para designar a política responsável por coibir o avanço da criminalidade em Nova York. Todavia, trata-se de um trocadilho. O assunto tratado aqui não é propriamente a redução da criminalidade, mas a promoção da paz entre os diferentes segmentos sociais, e em especial, os membros dos mais variados credos. E é aqui que nossa proposta se afasta daquela inspirada da Teoria das Janelas Quebradas. Eu diria que o que nos inspira seria outra teoria, a do “Telhado de vidro”. Não se joga pedra no telhado alheio quando o nosso é de vidro. Algo bem próximo do que Jesus disse aos que lhe trouxeram a mulher flagrada em adultério e que intentavam apedrejá-la: “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra!”

Contextualizando o adágio, não se deve mirar nos vitrais do templo alheio. Nossos vitrais são feitos de cacos como outro qualquer, portanto, tão vulneráveis quanto os dele. O vitral é um tipo de vidraça composta por pedaços de vidro coloridos, que geralmente representa cenas ou personagens bíblicos, sendo um dos elementos arquitetônicos marcantes característicos do estilo gótico.

Cada tradição religiosa montou seu próprio mosaico com os cacos disponíveis em sua cultura e experiência espiritual. Independentemente dos arranjos feitos e das figuras que deles tenham emergido, o mais importante é que sejam translúcidos, isto é, que se deixem penetrar pela luz. Daí encontrarmos tantos pontos convergentes nas mais variadas tradições. A diferença entre umas e outras são as imagens compostas. Em nosso caso, é a imagem de Cristo que se nos salta os olhos,[3] d’Aquele que é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser.”[4]

Oxalá todos tivessem o mesmo privilégio. Mas como poderíamos cobrar de outros a mesma compreensão que temos sem considerar o contexto no qual nasceram e cresceram, a cultura na qual estão inseridos, a educação que receberam, etc.? Todavia, Deus, em Sua soberania e misericórdia, projeta a Sua luz sobre todas as vidraças. Por isso, João, o apóstolo do amor, nos brinda com uma das mais lindas definições acerca de Cristo, o Logos Divino: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.(...) Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem, estava chegando ao mundo.”[5] De acordo com Paulo, cada um deve andar de acordo com a luz que houver recebido (Fp.3:16). E antes que nos esqueçamos, “a quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lc. 12:48).

Só deve ser tolerante quem tem consciência de que a perfeição não é um dos seus atributos. Caso contrário, estaremos incorrendo no erro eloquentemente denunciado por Jesus:

“Como você pode dizer ao seu irmão: ‘Irmão, deixe-me tirar o cisco do seu olho’, se você mesmo não consegue ver a viga que está em seu próprio olho? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.” Lucas 6:42

Todos temos virtudes e defeitos, independentemente da fé que professamos. Nem mesmo nossa religião está imune a isso.

Basta uma rápida incursão pela história de cada igreja ou credo para verificar quantos erros foram cometidos em nome da fé.

Veja, por exemplo, o caso da Santa Inquisição que pesa sobre os ombros da Igreja Católica, em que milhares de pessoas foram condenadas, torturadas e executadas, acusadas de heresia ou bruxaria, num dos capítulos mais tenebrosos da história recente da civilização. Todavia, ela está longe de ser o único caso de intolerância religiosa da chamada Época Moderna. Augusto Comte, o pai do positivismo, conta em seu livro Filosofia Positiva que “a intolerância do protestantismo certamente não foi menos tirânica do que aquela com que o catolicismo é muito difamado”.[6] “Os próprios reformadores... isto é, Lutero, Beza, e especialmente Calvino, eram intolerantes aos dissidentes  tanto quantos aos católicos Romanos.”[7]

Martinho Lutero, o tão celebrado reformador alemão, promoveu a perseguição aos anabatistas, ala mais radical da Reforma, por discordarem, dentre outras coisas, do método usado no batismo. Por conta disso, milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e executadas.  O reformador também fazia duras críticas aos judeus e seus escritos acabaram sendo usados pelos nazistas como justificativa ao seu antissemitismo responsável pela morte de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Deve-se salientar, entretanto, que próximo do fim de sua vida, Lutero retornou ao seu sentimento inicial de tolerância. Em seu último sermão ele aconselhou o abandono de todas as tentativas de destruir a heresia por força.[8]

João Calvino, o reformador suíço, instaurou em Genebra a Venerável Companhia, responsável pelo magistério e o Consistério, responsável pela disciplina religiosa. Em seu ardoroso zelo, Calvino promovia confissões, denúncias, espionagens, visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura e, em alguns casos, até a morte. Durante o tempo em que governou Genebra, a população era proibida de cultivar hábitos considerados nocivos como jogos, dança e teatro. Dentre as vítimas da intolerância de Calvino, destaca-se o médico Miguel Serveto, queimado por causa de suas proposições consideradas heréticas. Em apenas quatro anos de governo (1542-1546), 58 pessoas foram condenadas à morte por heresia.[9]

O que mais nos causa ojeriza quanto às perseguições protestantes é o fato de serem incompatíveis com uma das doutrinas fundamentais do Protestantismo: o livre exame das Escrituras. É, no mínimo, contraditório defender o direito de se interpretar a Bíblica de acordo com a sua consciência, e em seguida, torturar e matar alguém por ter feito justamente isso.

Quem conhece a dor de ser perseguido, não tem o direito de perseguir. Os puritanos que fugiram da Inglaterra por causa da perseguição sofrida por parte da Coroa, exportaram para as colônias que fundaram nos Estados Unidos o mesmo espírito persecutório. O que pode ser atestado em episódios como o das “bruxas de Salem”, ocorrido em Massachusetts no final do século XVII, quando várias adolescentes foram executadas sob a acusação de praticarem feitiçaria, invocando espíritos quando reunidas ao redor de uma fogueira. “O que é surpreendente é o fato de que, após essas experiências, esses fugitivos não aprenderam a lição de tolerância, e não concederam aos que eram diferentes... liberdade... Quando eles se encontraram em uma posição para perseguir, eles tentaram superar o que haviam sofrido.”[10] Entre os grupos vítimas da intolerância deles estavam os Quakers. Um membro desta “Sociedade dos Amigos” poderia sofrer a perda de uma orelha, e depois, a outra, além de ter a ponta da língua queimada a ferro quente, e às vezes, a morte.

De acordo com o teólogo metodista Georgia Harkness, “muitas vezes, a resistência à tirania e à procura de liberdade religiosa são combinadas, como na revolução puritana na Inglaterra; e os vencedores, tendo alcançado a supremacia, em seguida, criam uma nova tirania e uma nova intolerância.” [11] Incrivelmente, os Quakers foram uma exceção à regra. William Penn, fundador do Quakerismo, também fugiu para a América devido à perseguição religiosa, onde fundou uma colônia tolerante que hoje é o estado da Pensilvânia. Os Quarkers tem um honrado histórico de tolerância, e estiveram na vanguarda do movimento de abolição da escravidão na América no século XIX.

As religiões tendem a se reinventar, tornando-se moderadas e tolerantes. Porém, não podemos fazer vista grossa quanto à possibilidade de que sempre haja alas mais radicais, geralmente saudosistas de um tempo considerado áureo. É assim no cristianismo, tanto católico quanto protestante, e é assim no islamismo.

Todos temos telhado de vidro! Não se esqueça disso.

Toda religião tem um histórico de perseguição, seja sofrida ou impingida. Em maior ou menor grau, todas guardam em seus anais episódios de intolerância. Se não quisermos retroalimentar o ciclo, resta-nos perdoar as perseguições sofridas e nos arrepender das perseguições impingidas.  

Aproveitando a teoria das janelas quebradas, minha proposta neste post é a de reduzirmos nossa intolerância ao máximo, na esperança de que um dia ela alcance zero. Enquanto houver o menor vestígio de intolerância, seja em nosso discurso ou em nossa postura, servirá de munição para aqueles que fazem do ódio a sua bandeira.

Pequenos gestos de intolerância são um chamariz para os intolerantes. Semelhantemente, pequenos gestos de gentileza e cordialidade podem desarmar espíritos, fazendo prevalecer o respeito, e, sobretudo, o amor.




[1] WILSON, James Q.; Kelling George L. “Broken windows: the police and neighborhood safety”, in: Atlantic Monthly de março de 1982.
[2] Francisco Ferreira Milani, nascido em São Paulo, em 19 de novembro de 1936, falecido em 13 de agosto de 2005 de falência múltipla dos órgãos provocada por câncer no reto, foi ator, dublador, humorista e político brasileiro.
[3] Gálatas 3:1
[4] Hebreus 1:3
[5] João 1:4-5,9
[6] COMTE, Augusto, Philosophie Positive, IV, 51.
[7] Dicionário da Igreja Cristã de Oxford, Referência 1383.
[8] DURANT, Will (S), The Reformation, (volume 6 of 10-volume The Story of Civilization, 1967), Nova York: Simon & Schuster, 1957,  págs. 420-430.
[9] Ibidem, pág. 473.
[10] STODDARD, John L., Rebuilding a Lost Faith, Nova York: P.J. Kenedy & Sons, 1922, pág. 207.
[11] HARKNESS, Georgia (P), John Calvin: The Man and His Ethics, New York: Abingdon Press, 1931, pág. 222.

Um comentário:

  1. Simplesmente brilhante! O livro deve estar um primor. Esse post deixou-me com água na boca.

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