Por Hermes C. Fernandes
Recentemente, o programa "Amor & Sexo" veiculado pela Rede Globo de Televisão causou escândalo ao exibir corpos inteiramente nus. Homens e mulheres comuns surgiram no palco dançando e pulando com suas genitálias à mostra. Sem dúvida, a nudez segue sendo um tabu em nossa sociedade. Mesmo os artistas que compunham a banca do programa demonstravam estar surpresos com a ousadia da direção do programa. Olhos arregalados e bocas abertas revelavam o grau de perplexidade da plateia, indicando o desconforto que deve ter gerado na audiência.
Enquanto refletia sobre a repercussão da estreia da nova temporada do programa apresentado por Fernanda Lima, fui remetido a um misterioso episódio narrado no evangelho segundo Marcos.
O clima era tenso. Jesus acabara
de ser identificado por um beijo. Um dos seus discípulos tentara impedir sua
prisão e quase tira a vida de um dos soldados do sinédrio. Ainda bem que ele
não era tão bom de mira. Em vez de acertar o pescoço, arranca a orelha. No meio
da confusão, alguém rouba a cena.
Somente Marcos relata o episódio.
Um jovem que o seguia discretamente, sai de trás de algum arbusto correndo,
envolto unicamente num lençol. Os soldados tentam agarrá-lo, mas ele, largando
o lençol, foge completamente nu (Mc.14:51).
Seria cômico, não fosse num
momento trágico em que o Filho de Deus era entregue para ser sacrificado por
nós.
Por que cargas d’água aquele
jovem seguia Jesus de madrugada naquelas condições? Seria um voyeur? Um
exibicionista? Um pervertido?
Não creio que tal episódio
estaria exposto nas Escrituras sem que houvesse uma boa razão. Alguma lição
pode ser extraída daí. Mas, qual?
Proponho aqui uma leitura
arquetípica deste fato desconcertante e hilário.
Desde os primórdios, a nudez tem
sido relacionada à vergonha, e por isso mesmo, tornou-se num tabu. A primeira
reação de Adão ao perceber-se nu foi esconder-se e improvisar um tapa-sexo com
folhas de parreira.
Não há absolutamente nada de
errado com a nudez. Deus não nos fez vestidos. A nudez é apenas um eufemismo da
nossa condição de vergonha decorrente da culpa.
O próprio Deus providencia roupas
para o primeiro casal, feitas a partir da pele de algum animal. Os teólogos
creem que o sacrifício daquele animal prefigurava o sacrifício de Jesus, meio
pelo qual nossa culpa seria expiada e nossa vergonha devidamente coberta.
Dentro da simbologia bíblica, as
vestes representam o resgate de nossa dignidade. Somos mais do que meros
animais guiados por instintos. Somos seres dotados de consciência, aptos à
reflexão, instigados a buscar sentido para a existência. Nada nos convence a
aceitar a vida de maneira crua. A consciência é a tecelagem onde se produz o
tecido da espiritualidade. É nela que os fios se entrelaçam. Descobrimo-nos como
um ponto na grande teia da vida. Estamos conectados a tudo e a todos, e,
sobretudo, ao Supremo Tecelão.
Todavia, nossa espiritualidade
precisa ser devidamente costurada. Caso contrário, será como aquele lençol que
cobria o jovem foragido, deixando-nos expostos quando mais precisarmos dela.
Entre as atribuições do Messias,
Isaías profetiza que Ele nos daria “vestes
de louvor no lugar de espírito angustiado” (Is.61:3). O que difere uma
veste de um lençol é a costura. Estar vestido de louvor nada mais é do que
tornar-se motivo de louvor a Deus. A maneira como nos portamos ante as demandas
da vida poderá resultar em glória ou em vergonha, honra ou desonra para Aquele
a quem devemos nossa existência.
Uma espiritualidade sem costura
pode parecer mais conveniente, fácil de descartar depois de usada. Todavia, não
oferece qualquer garantia. Na hora do aperto, a gente vai e ela fica.
A igreja de Laodiceia foi
seriamente repreendida por Jesus devido a este tipo de espiritualidade ‘sem
eira, nem beira’. Apesar de arrogar-se
rica, poderosa, influente, Cristo diz que ela ignorava seu real estado de
desgraça, miséria, pobreza, cegueira e nudez. “Aconselho-te que de mim compres ouro provado no fogo, para que te
enriqueças; e roupas brancas, para que te vistas, e não apareça a vergonha da
tua nudez” (Ap.3:17-18). Nossa avaliação é constantemente confrontada com a
avaliação divina. Geralmente, somos exigentes com os outros, mas condescendente
conosco mesmo. Todos igualmente estamos
sujeitos à inspeção relâmpago de Cristo. Sem dizer o dia, a hora e o lugar, Ele
vem e “bem-aventurado aquele que vigia, e guarda as suas vestes, para que não
ande nu, e não se veja a sua nudez” (Ap.16:15). E nestas horas, de nada
adianta tentar esconder-nos atrás de algum arbusto como fez Adão. Afinal, “não
há criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e
patentes aos olhos daquele a quem havemos de prestar contas” (Hb.4:13).
De repente, o que está escondido
vem à tona. A vergonha é exposta. E nosso caráter é devidamente tratado.
Só há uma maneira de escaparmos desta exposição e da vergonha
que ela produz. Paulo diz que devemos nos despojar “da ira, da cólera, da
malícia, da maledicência, das palavras torpes”, deixar de mentir uns aos
outros, pois já nos despimos do velho homem com os seus feitos e nos vestimos
do novo, “que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o
criou” (Cl.3:8-10).
Adão deve primeiro livrar-se das folhas da parreira para vestir-se com as
roupas providas pelo próprio Deus. Devemos livrar-nos do lençol que nos cobre
para vestir-nos com as vestes da justiça de Cristo. E depois de vestidos, devemos revestir-nos “como eleitos de Deus, santos e amados, de
coração compassivo, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade”,
suportando-nos e perdoando-nos uns aos outros, da mesma maneira como Ele nos
perdoou. E como se não bastasse, há ainda uma espécie de sobretudo: “Revesti-vos do amor, que é o vínculo da
perfeição” (Cl.3:12-15).
A gente se cinge (roupa de baixo), se veste, se reveste e no final, ainda
coloca o sobretudo do amor. Ele é o retoque final, sem o qual a indumentária não
estaria completa.
Interessante nota que a palavra grega traduzia por “vínculo” é “syndesmos”,
que poderia ser igualmente traduzida por “costura”. Sem amor, a bainha se desfaz,
os botões caem, a manga solta. Mesmo vestidos, estaríamos potencialmente nus.
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