Meu medo, ódio e admiração por Chico Anysio

Por Hermes C. Fernandes

Devo confessar que minha simpatia a Chico Anysio foi tardia. Somente a partir dos anos 90, com a Escolinha do Professor Raimundo, passei a admirá-lo e reconhecer sua genialidade. Permita-me explicar meus motivos.

Quando criança, em meados dos anos 70, alguns de seus personagens me assustavam, provocando-me pesadelos terríveis. Entre eles o Pantaleão e o Bozó. Sempre que ia dormir, olhava por baixo da cama pra verificar se um deles não estava lá. Era a época do Chico City.

Já no início dos anos 80, passei a sentir ódio dele. Tudo por causa de Tim Tones, um dos seus personagens mais marcantes à época, paródia do pastor americano Jim Jones, que induziu cerca de 900 pessoas ao suicídio na Guiana Francesa. Por causa desta personagem, sofri os mais cruéis bullyngs por parte dos colegas de escola que sabiam que meu pai era pastor. Jamais me esquecerei da vez em que fui perseguido por nove deles que queriam me bater, e só escapei por ter me abrigado atrás do balcão de uma farmácia na Praça de Quintino Boicaúva. Ser pastor era sinônimo de ser ladrão, aproveitador, estelionatário, etc. A casa onde morávamos foi apedrejada várias vezes. Numa delas, uma pedra enorme rompeu com a janela do meu quarto, e veio parar há poucos centímetros da minha cabeça. Nem o carro do meu pai era poupado, quando passávamos pela rua ao lado da igreja. Tim Tones só fazia instigar ainda mais o ódio que as pessoas tinham pela classe pastoral.

Porém, com a chegada dos anos 90 tudo mudou. As perseguições diminuíram, apesar dos escândalos envolvendo alguns líderes, como a prisão de Edir Macedo no Brasil, e o adultério de Jimmy Swaggart nos EUA. Foi nesta época que redescobri o Chico, e percebi que, apesar de tudo o que minha família sofreu por causa de um dos seus personagens, o que ele criticava não eram os pastores sérios, dentre os quais meu pai figurava, mas os que usavam o nome de Deus para se locupletar.

A Escolinha marcou uma época muito boa da minha vida, o início do meu casamento e ministério, a chegada dos meus filhos. Mesmo quando passei um tempo nos EUA, assistia através de fitas de vídeo que eram trazidas por brasileiros que visitavam seus familiares.

Chico, além de ser um gênio, também tinha um gênio difícil. Falava o que pensava. O que lhe rendeu não apenas admiradores, mas também desafetos. O humorista não conseguiu ficar quieto ao ver Rafael Mascarenhas, filho de Cissa Guimarães, morrer após ser atropelado. Revoltado, desabafou em seu blog: “Mas e então? Que Deus é este que deixa que morra um menino de 18 anos, à espera de começar seu caminho na vida e deixa vivo e solto o animal que o atropelou, o débil mental que faz de um túnel uma pista de corrida e simplesmente arranca da vida um ser bonito, jovem, ansioso por começar a viver, filho de uma mãe maravilhosa, como colega, como amiga e como pessoa?” Este desabafo rendeu-lhe muitas críticas, principalmente por parte dos religiosos que o acusaram de ateísmo.

Não estou certo de que Chico tenha se reconciliado com Deus, mas, sinceramente, torço que sim. Numa de suas últimas entrevistas, ouvi-o falando de Deus com certa reverência e carinho. Recuso-me a crer que ele fosse cético. Como todos os mortais, passou por uma crise, questionou, lamentou, e expressou sua revolta. Coisa não muito diferente daquela vivida por homens como Davi e Jeremias.

Dentre todos os manifestos postados no Facebook por meus amigos, um chamou-me a atenção, e foi escrito por José Barbosa Junior:

“Vai, Chico! Vocês farão falta! Todos vocês!”
“Chico foi um gadareno às avessas. Na imensa multiplicidade, a identidade do gênio!”

Bom descanso, Chico! Espero revê-lo, quando juntos estivermos diante do Trono d’Aquele que por Sua graça lhe dotou de tanto talento.

Até mais!

Abaixo, um poema de Chico Anysio que termina falando de Deus.

“O meu sonho na vida era ter o poder de ser um videocassete de mim mesmo. Ter o controle remoto que me permitisse renascer experiências vividas. Eu poderia voltar no tempo, acelerar, pular cenas dos próximos capítulos. Parar a imagem num momento que me tivesse sido glorioso, vivê-lo outra vez. Talvez, eternizar um orgasmo.
Eu poderia correr a fita de modo a entrar na percepção do futuro ou recuar
Eu poderia correr a fita de modo a entrar na percepção do futuro ou recuar para consertar, corrigir, para confirmar. Ah, com esse aparelhinho eu poderia criar o ideal.
Ah, o ideal.
O ideal seria que o homem nascesse com 80 anos, fosse ficando mais moço, mais moço, até morrer de infância. Nascendo com 80 anos, aos 60 ele casaria com uma mulher de 59. Mas com uma vantagem: A cada dia, a cada semana, a cada mês, a cada ano, ela ia ficando mais nova, mais nova, até se transformar numa gata de 20.
Depois ficariam noivos, namorados.
A bicicleta.
O velocípede.
Desaprendiam a andar, esqueciam como engatinhar,
O voador, o cercadinho.
Do cercadinho para o berço.
As fraldas molhadas.
O peito da mãe.
Até que, num dia qualquer, pararia de respirar.
Seria o tempo correndo para trás até aparecer o último homem: Adão.
O último primeiro, a quem Deus colocaria sobre a mão e, em vez de soprar para ele,
inspiraria o homem outra vez para dentro de sí mesmoAh, o ideal.
O ideal seria que o homem nascesse com 80 anos, fosse ficando mais moço, mais moço, até morrer de infância. Nascendo com 80 anos, aos 60 ele casaria com uma mulher de 59. Mas com uma vantagem: A cada dia, a cada semana, a cada mês, a cada ano, ela ia ficando mais nova, mais nova, até se transformar numa gata de 20.
Depois ficariam noivos, namorados.
A bicicleta.
O velocípede.
Desaprendiam a andar, esqueciam como engatinhar,
O voador, o cercadinho.
Do cercadinho para o berço.
As fraldas molhadas.
O peito da mãe.
Até que, num dia qualquer, pararia de respirar.
Seria o tempo correndo para trás até aparecer o último homem: Adão.
O último primeiro, a quem Deus colocaria sobre a mão e, em vez de soprar para ele,
inspiraria o homem outra vez para dentro de sí mesmo.”