Quero aqui sugerir pelo menos mais três desafios à agenda da igreja evangélica brasileira, à vivência de uma fé engajada na e através da igreja.
1. Uma igreja presente no mundo, encarnada e aberta para o diálogo
“Que estrago fez o neoplatonismo em nossa igreja, desencarnando-a, desencarnando a nossa mensagem, reduzindo-a a uma ginástica cerebral e a um inconseqüente exercício místico”. Com isso, Cavalcanti afirma que uma corrente filosófica chamada dualismo, a qual pressupõe a divisão entre corpo e alma, sagrado e profano, mundo terrestre e espiritual, tomou conta do pensamento e estilo de vida desenvolvido na igreja cristã nos últimos tempos. Prova disso está na idéia, ainda corrente no meio evangélico, de que existem lugares mais sagrados que outros, ou até mesmo práticas que configuram uma consagração, visto que privilegiam a elevação da alma ou espírito em detrimento da matéria, em si, má.
Durante muito tempo, ser cristão significou (e em alguns contextos ainda significa) viver uma vida extremamente regrada e obediente, conforme os dogmas e a reta doutrina da igreja. A identidade cristã (evangélica), assim, é uma identidade fixa, inflexível, baseada num tradicionalismo engessado e estéril. Essa concepção ainda sobrevive, e é resultado também da influência do fundamentalismo norte-americano que pra cá foi exportado. O que predomina nesse modelo é o isolacionismo, isto é, a ausência do mundo. Mundo, para nós evangélicos, é tudo aquilo que “jaz no maligno” e nada se pode fazer por ele.
Há uma patente confusão aqui entre “ser” e “estar” no mundo. “O mundo que jaz no maligno não é a criação de Deus, mas todos os sistemas que se afastam do modelo de Deus". Em sua oração sacerdotal (João 17), Jesus afirma que nem ele, nem tampouco seus discípulos “são” do mundo (no sentido de provir, pertencer). Provimos do e pertencemos ao Pai e ao Reino dos Céus. Porém, a verdade que nos desafia é que, assim como o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo, como expressão inequívoca de seu grande amor pelo mundo, o mesmo Jesus agora nos envia ao mundo como embaixadores de uma “revolução silenciosa” que deve ser produzida pela encarnação desse amor no mundo.
Dessarte, uma igreja engajada é aquela que se faz presente no mundo a fim de transformá-lo, se juntando a ele como expressão do “sim” de Deus ao mundo (David Bosch), endossando a profunda amabilidade divina por toda a criação. Conforme o Pacto de Lausanne, “a nossa presença no mundo é indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender”. Uma outra expressão desse engajamento está no confronto e negação das realidades de morte que no mundo imperam, como outra vez recorda o Pacto: “a mensagem de salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam”.
A igreja hoje é chamada a lutar contra a morte, a resistir às forças de morte. Essa tarefa começa por afastar as vozes da morte, que dizem: “isto não dará certo”; “O Brasil não tem jeito”; “Por que trabalhar quando tudo o que edificamos pode ser destruído por outros?”; “Lutar pra quê, militância é coisa do passado”; “Por que realizar mais um encontro, escrever mais um livro ou gastar tempo debatendo quando a realidade não quer ser transformada?”. Em oposição às vozes discursivas que nos rodeiam, precisamos aplicar a resistência da voz cristã, que deve ser uma ressonância da voz do Espírito de Deus. De acordo com Henri Nouwen, resistência “significa dizer ‘não’ para todas as forças de morte onde quer que elas possam estar e, como corolário, dizer um claro ‘sim’ a tudo o que representa a vida, sob qualquer forma em que possamos encontrar”.
2. Uma igreja educada teologicamente, íntegra politicamente e profética ativamente
“A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta”. Apesar dessa consciência dos líderes reunidos em Lausanne, bem como o esforço posterior da ala evangelical da igreja latino-americana em divulgar sua missão integral, vimos poucos avanços em termos de aceitação dessa teologia entre a imensa maioria dos evangélicos no Brasil, por diversos fatores que aqui não vale nomear.
Após anos e anos de resistência da ala fundamentalista-conservadora da igreja quanto ao seu engajamento na política, também da luta inglória dos cristãos progressistas instando a que acordássemos para a necessidade urgente de assumirmos nosso papel como cidadãos também daqui e não somente do reino e a levantarmos nossas vozes contra as injustiças que imperam e nosso país, chegamos em 2006, diria eu, com um saldo negativo. Não me refiro apenas ao desinteresse geral das pessoas pela política ou por projetos que englobem o coletivo. O fato que marca a participação dos evangélicos na política hoje é que ainda persistem mentalidades e posturas antigas, aliadas ao conformismo generalizado e à visível apatia dos cristãos tipicamente pós-modernos. O “folclore evangélico” vigente na sociedade civil é dos mais plurais e deturpa os princípios do Evangelho. São deputados evangélicos com malas cheias de dinheiro provenientes sabe-se lá de onde; é a idéia do “crente não se mete em política” ainda como sinal de uma convalescente alienação dos evangélicos; é a ideologia do “irmão só vota em irmão” corroborando aos malefícios do curralismo eleitoral evangélico e a antiga busca por representatividade e beneficiamento próprio.
Embora existam iniciativas relevantes de vozes dissonantes da maioria no meio evangélico, tem-nos causado pesar e vergonha, o fato de que a política, um dos meios de participação na sociedade civil, não tem sido aproveitada para aplicação ao bem comum, mas como trampolim de projetos pessoais e corporativistas que, na maioria dos casos, atendem às ambições de poder de líderes mal-intencionados e totalmente despreparados para exercer os cargos para os quais foram eleitos. Robinson Cavalcanti escreveu há anos atrás que,
Grosso modo, estamos trocando a alienação por uma presença conservadora, reacionária, comprometida, clientelista e fisiológica. Lotes de votos estão sendo negociados em troca de lotes de terrenos, telhas, tijolos e empregos. Políticos evangélicos têm apoiado teses as mais danosas aos interesses do bem comum do povo brasileiro. Em vez de sermos parte da solução, estamos reforçando os problemas.
O envolvimento com as estruturas de poder requer, acima de tudo, o exercício da ética cristã e um caráter que se molda ao de Cristo. Não bastam boas intenções no sentido de ajudar a igreja ou aos irmãos da fé, nem uma cristalização da moral individual, mas uma atitude profética e um inconformismo santo com as injustiças que grassam nesses lugares. Precisamos de mais co-beligerância (inclusive com não-cristãos) em projetos de reflexão e ação que convirjam aos valores do reino, privilegiem o bem comum e a transformação integral da sociedade. Projetos que passem pela inclusão dos mais pobres, a conscientização dos mais abastados e sua mobilização junto aos intelectuais e a elite esclarecida, por uma sociedade mais justa e fraterna, que combata a violência e todas as formas de exclusão e alienação.
Parafraseando Cavalcanti, “não podemos ficar presos ao pêndulo que vai de uma santidade fora da cidadania até uma cidadania sem santidade”. Assim, toda a igreja é convocada a ensinar todo o conselho de Deus ao ser humano todo, compartilhando com todos aqueles a quem chamamos “próximo”, das mais inusitadas formas e nos mais diferentes contextos, as boas novas e valores do reino de Deus. Esse talvez possa ser um bom resumo para aquilo que chamamos de missão integral da igreja.
3. Uma igreja com um coração ardente, cheio de misericórdia e compaixão aos feridos
O chamado de Jesus à sua igreja continua sendo o do engajamento. E, como se engajar significa envolver-se, botar a “mão na massa”, mexer com as sujeiras e podridões da sociedade em que vivemos mesmo que, com isso, venham a “feder” mais, então esse chamado precisa ser temperado por uma paixão incondicional por Jesus e sua maneira de lidar com o ser humano, por um coração cheio de misericórdia, daqueles que também foram recebidos com misericórdia, e pela compaixão. Diz o texto de Mateus 9.36: “Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas, como ovelhas sem pastor”. Quando olhamos para as multidões nos dias de hoje, não da sacada do prédio, mas do plano em que elas estão, o que vemos? Que tipo de reação deveria ser provocada em nosso coração por aquilo que vemos? Afinal de contas, como definir as multidões de nosso tempo, e mais, como o poder transformador do evangelho poderá alcançá-las?
O texto de Mateus diz que Jesus andava por todas as partes, curando e ministrando a palavra, cumprindo o ministério que a Ele fora designado pelo Pai. Jesus lidou com todo tipo de multidão em seu ministério: a multidão dos que creram em sua mensagem; a multidão dos afoitos para ver milagres, sinais e prodígios acontecendo; a multidão dos religiosos enfurecidos com sua pregação revolucionária, cobras que aguardavam o momento certo para “dar o bote”; e a imensa multidão dos pobres, doentes, malditos e excluídos pela sociedade, a quem ninguém prestava a atenção.
Multidões e mais multidões, diferentes expectativas, propósitos, sonhos, necessidades, etc, mas com uma carência básica em comum: a de pastoreio para suas vidas. De alguém que se compadecesse o suficiente, entendesse o bastante e fosse eficazmente capaz de cuidar, compreender suas aflições e amar sem pedir nada em troca. Isso denota não apenas a falta do Supremo Pastor (Deus) na vida dessas pessoas, mas também de trabalhadores que, submissos ao chamado do Senhor da Seara, se dispusessem em ir à colheita, doando seu tempo e cuidados para que ela seja uma boa colheita.
Jesus olhou para as multidões e teve compaixão delas. Compaixão é diferente de dó. Dó é um sentimento de alguém que está distante do outro e nada pode (ou quer) fazer a respeito da dor alheia (por isso é desprezível, uma piedade de fachada, egoísmo disfarçado). Compaixão, porém, literalmente significa padecer junto, sofrer junto, sentir a mesma paixão, se colocar na mesma dimensão, partilhar do lugar existencial em que o outro se encontra e estar suscetível às contingências desse lugar tanto quanto o outro está. Uma coisa é saber que milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. Outra é vivenciar uma situação em que se está “abaixo da linha de pobreza”, parafraseando César M. Lopes. Uma coisa é ter consciência do mix de confusão, alienação, competição, depressão e carências que são vividas pelos jovens universitários hoje. Outra bem diferente é entrar no meio de tudo isso sem se julgar um estranho, alienígena ou pensar que nada daquilo tem a ver contigo. A compaixão, segundo Henri Nouwen,
É a via para a certeza de que somos cada vez mais nós mesmos, não quando somos diferentes dos outros, mas quando somos uma e a mesma coisa. Na verdade a principal questão espiritual não é: ‘Qual o teu contributo específico?’, mas: ‘O que é que tu tens em comum?’. Não é o ‘suplantar’ mas sim o ‘servir’ que faz de nós pessoas mais humanas; não é o demonstrarmos a nós mesmos que somos melhores que os outros, mas sim confessarmos que somos precisamente como os outros.
A impressão que tenho é a de que perdemos a capacidade de chorar, lamentar e nos compadecer pela dor e a desgraça alheia. Todos os dias vê-se nos noticiários um bocado de gente sofrendo pela violência e exclusão engendradas por um sistema que propõe a “liberdade”, mas uma liberdade que apenas alguns gozam. Roubos, seqüestros assassinatos, prisões; é gente sofrendo e fazendo sofrer por todos os lados, do banco do ônibus ao carro importado: torturas, humilhações e morte. E a gente? “A gente ta vendo tudo, ta vendo a gente... querendo ou não”, é o que disse o cantor Gabriel O Pensador.
O problema, outra vez digo, está na indiferença e na apatia de todos nós, em acharmos que essas ocorrências ao nosso redor não nos dizem respeito. Mas, se Salomão estava certo sobre a inevitabilidade de certos males nesta existência sem sentido, o que inclui tanto ímpios quanto justos, uma hora “o raio” poderá atingir a qualquer um de nós. Não há homem que não peque, assim como não há quem não sofra as conseqüências de seus atos ou de sua inoperância. Quando formos abordados diretamente por um desses males, quem sabe acordemos para a realidade, abramos nossos olhos e vejamos, a partir de nosso próprio sofrimento, nosso Deus chorando pela dor e os gemidos de sua criação. Então, as dores do mundo não poderão ser esquecidas ou ignoradas, como diz Henri Nouwen:
Nossa dor faz com que experienciemos o abismo de nossa própria vida, no qual nada está estabelecido, claro ou óbvio, mas tudo está constantemente passando e mudando. E, à medida que sentimos a dor de nossas próprias perdas, nossos corações, doendo, abrem nosso olho interno para um mundo no qual as perdas são sofridas muito além de nosso próprio mundinho de família, de amigos e de colegas. É o mundo de prisioneiros, refugiados, pacientes de aids, crianças famintas e os incontáveis seres humanos que vivem em constante medo. Então, a dor de nossos corações chorosos conecta-se com os lamentos de uma humanidade que sofre. Então, nosso luto torna-se maior que nós mesmos.
Conclusão
Ao concluir esta reflexão, lembro-me de um outro poeta, o cantor evangélico João Alexandre, quando afirma em uma de suas músicas que: “Enquanto se canta e se dança de olhos fechados, tem gente morrendo de fome por todos os lados. O Deus que se canta nem sempre é o Deus que se vive não, pois Deus se revela, se envolve, resolve e revive”. Precisamos conhecer melhor o Deus a quem dirigimos tantos sacrifícios de louvor e adoração. Adoração é muito mais do que isso que se tem ensinado nos cultos (e agora até em escolas próprias pra isso). Por que? Porque a adoração inclui o cumprimento da missão; tem muito mais a ver com o ser de Deus e sua natureza operando em nós pelo Espírito, que com nosso desejo, sincero ou abominável de barganhar com ele e de tentar agradá-lo. Todos os “agrados” e “mimos” que Deus poderia receber já foram dedicados por Jesus na cruz. Está consumado! Todo louvor, glória e adoração, daí pra frente, devem ser produto da graça em e por meio de nós. Do contrário, lembrando das palavras de Jesus, nossa justiça em nada excede à justiça dos escribas e fariseus.
Deus não precisa de sacrifícios! Ele disse: “Misericórdia quero, não sacrifício, o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos” (Os 6.6). Ele não entra no jogo sórdido das barganhas humanas. Ele quer menos ortodoxia (doutrina certa) e mais ortopraxia (prática certa), na verdade, uma tem que ser resultado da outra; menos consciência de um compromisso, e mais encarnação desse compromisso: com a justiça, a paz, a liberdade, envolvendo-se, engajando-se. Se cantar o amor de Deus é bom, melhor é viver. Que ele nos encha de discernimento e coragem!
Escrito por Jonathan Menezes com título original "Missão integral, desafios a uma fé engajada na igreja" (Via Emeurgência)
passando aqui, porque você passou por lá: http://prviniciusvargas.blogspot.com/
ResponderExcluirLeio sempre seus textos. Sou um pastor incomodado com o que fazem da igreja, como torcem a Bíblia e como ficam ricos com isso contrariando tudo o que eu acredito, vivo e prego...
Enfim, criei um blog apenas para poder publicar alguns textos meus escritos para minha igreja. Não penso em fazer apologética (tem gente que faz isso melhor que eu).
Eu só queria de fato que as pessoas voltassem a buscar a palavra pura e simples. Que deixasse os apóstolos de lado e voltassem os olhos para o único que pode salvar.
Não sei... eu às vezes vejo o meu esforço (guardadas as enormes proporções)parecido com o de Amós. Não vivo do ministério. Prego a verdade da Bíblia e vejo minha igreja pquena ter mais firmeza de fé que muitos outros rupos maiores que contam com a mídia televisiva a seu lado.
Acho que temos objetivos parecidos e meios diferentes (um pouco apenas, mas inda assim diferentes)...
Se quiser podemos ampliar esse debate: jviniciusvargas@gmail.com
Fique na paz
O ler a conclusão desse post, lembrei-e de uma frase do pai do Bispo Hermes: "Que as mesmas mãos que se erguem em louvor, sejam estendidas ao próximo em amor.".
ResponderExcluirNão consigo conceber o Evangelho como algo desconectado da realidade social que nos cerca. Não entendo o REINO apenas como uma certeza escatológica, mas como uma realidade possível para os nossos dias.
Os evangélicos brasileiros se ufanam por se denominarem "A terra do avivamento", mas não veremos avivamento até que iniciativas simples acordadas no Pacto de Lausanne serem uma realidade nas igrejas do Brasil.
Quando reconhecermos nossa responsabilidade em ter permitido que tamanha opressão espiritual e social s abatesse sobre nossa terra,aí poderemos nos humilhar, orar e arrepender de nossos maus caminhos. Assim veremos o Senhor sarar, verdadeiramente, nossa terra.