Por Hermes C. Fernandes
Hoje se comemora no Brasil o dia de finados. Dia de honrar a memória dos que partiram, decorando seus túmulos com flores. Admiro a maneira leve (e até divertida) com que os mexicanos celebram este dia, chamando-o de “el dia de la santa muerte.” Entre os elementos usados na celebração estão os esqueletos adornados e coloridos. Recentemente, em minha visita ao México, deparei-me com esqueletos decorativos espalhados por lojas, shoppings, hotéis e os mais diversos ambientes. Se para nós, brasileiros, a imagem inspira terror, para eles, não passa de um lembrete de nossa mortalidade. De primeira mão, tem-se a impressão que eles estejam zombando da morte. Mas na verdade, eles a estão ressignificando. Chamá-la de "santa" (como se a houvessem canonizado) é o mesmo que dizer que ela não os apavora mais. Algo análogo ao que Paulo, apóstolo fez ao exclamar: "Onde está, ó morte, o seu aguilhão? Onde está, ó morte, a sua vitória?"
A despeito da postura que adotemos, o fato inconteste é que a morte é a única certeza que temos. Independentemente de nosso credo, posição social, etnia, orientação sexual, todos, sem exceção, temos um destino comum: a morte.
Por mais que a gente tente driblá-la ou adiá-la, mais cedo ou mais tarde ela vem. Gostemos ou não, morrer faz parte do ciclo natural da vida. Portanto, resta-nos a resiliência e a esperança de que a morte não seja um adeus, mas apenas um “até logo.” Porém, como ser resiliente diante de uma morte que poderia ter sido evitada? Como aceitar passivamente que mais de seiscentos mil brasileiros (5 milhões em todo o mundo) tenham tido sua vida e sonhos interrompidos por uma vírus que poderia ter sido combatido com a devida seriedade?
Como cristão, creio na vida pós-túmulo. Mas para além do dogma, creio que a vida que se viveu aqui em baixo, segue ecoando mesmo após o último suspiro.
Na narrativa de Gênesis, Deus interpela a Caim acerca de seu irmão Abel a quem assassinara: “Onde está Abel, teu irmão?” Pelo que ele, descaradamente respondeu: “Acaso sou eu guardador do meu irmão?” O Criador, inconformado com a sua desfaçatez, confronta-o: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” (Gênesis 4:9-10).
Repare nisso: Nem mesmo a morte foi capaz de embargar o clamor da vítima de uma injustiça.
Assim como sangue de Abel, o sangue de mais de seiscentos mil mortos está clamando a Deus por justiça, e denunciando ante o tribunal divino o descaso daqueles que poderiam ter evitado a tragédia, mas não o fizeram. Pior do que "canonizar" a morte é se atrever a "canonizar" quem facilita o seu trabalho.
Saltando de Gênesis para Apocalipse, deparamo-nos com uma cena ainda mais intrigante. O vidente João descreve uma multidão de vítimas do poder do estado romano, chamando-a de “mártires” (em grego, “testemunhas”, isto é, “alguém que presta testemunho”). Esta incontável multidão clamava com grande voz diante de Deus: “Até quando ó verdadeiro e santo Soberano, não julgas e vindicas o nosso sangue?” (Apocalipse 6:10). Alguns capítulos depois, esta mesma multidão de mártires do sistema opressor romano reaparece enaltecendo a Deus: “A salvação, a glória, a honra e o poder pertencem ao nosso Deus, pois verdadeiros e justos são os seus juízos. Julgou a grande prostituta, que havia corrompido a terra com a sua prostituição, e das mãos dela vindicou o sangue dos seus servos” (19:1-2).
Deus não vai deixar barato o descaso com que nossas autoridades lidaram com esta pandemia. O sangue dos que partiram prematuramente está clamando diante de Deus.
Brasília e sua classe política são a nossa Babilônia, a grande prostituta, que etiquetou a alma dos cidadãos brasileiros, e a negociou na banca dos interesses escusos.
A CPI pode não dar em nada. O ministério público pode se negar a denunciar o governo. O STF pode fazer vista grossa. Mas não escaparão da justiça divina.
Não foi somente o sangue de Abel que clamou diante de Deus por justiça. O escritor da epístola aos Hebreus diz que sua oferta, mesmo depois de morto, ainda fala. Em outras palavras, a contribuição que sua vida representou durante sua estada neste mundo não perdeu a eloquência, mas segue ecoando ao longo de infindáveis gerações. A melhor homenagem que podemos fazer aos que partiram, seja pela COVID ou por qualquer outro fator, é ecoar e amplificar a vida que tiveram entre nós, relembrando e aprendendo com seus erros e acertos. Dentro da cultura mexicana pré-hispânica, se os mortos não forem relembrados, eles desaparecerão para sempre. Portanto, não deixemos que suas vozes se calem e que suas vidas sejam relegadas ao esquecimento. Sigamos amando-os e trabalhando pela manutenção de sua memória e de seu legado. Que sejamos, por assim dizer, extensão de sua existência.
A morte pode até não ser santa, mas também não é o bicho-papão que costumava ser. Em Cristo, ela foi vencida e ressignificada, para que em vez de temê-la, possamos encará-la., não como um ponto final, mas como um ponto em meio a reticências. Celebremos a vida de quem está entre nós e a memória de quem seguirá vivendo em nossos corações.
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