quinta-feira, outubro 22, 2020

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POR MAIS FRANCISCOS E MENOS MALAFAIAS

 


Por Hermes C. Fernandes

Sempre me pego refletindo sobre aqueles que hoje são celebrados como heróis da nossa civilização, mas que em seu tempo foram tachados de hereges, subversivos, revolucionários, e por isso mesmo, duramente combatidos. Pergunto-me de que lado eles se poriam nas questões que hoje nos dividem. Por fim, pergunto-me de que lado Jesus estaria. Alguém conseguiria enxergá-lo cerrando fileira com a casta sacerdotal de sua época? Se fosse este o caso, duvido que Ele entrasse no templo derrubando as mesas e expulsando os vendilhões. Alguém o imaginaria engrossando o coro de quem pretendia apedrejar aquela mulher? Em vez disso, Ele preferiu defender seu direito. Isso mesmo! Seu direito de viver.

Jesus invariavelmente se pôs ao lado dos excluídos, dos marginalizados, dos oprimidos, dos explorados. Ele não resistia ao clamor das minorias. Da vez em que foi importunado por uma mulher cananeia (depois pesquise na Bíblia o significado de ser cananeu na visão de um judeu daquela época), disse que não tiraria o pão da boca dos filhos para dá-lo aos cachorrinhos. Quem lê esta passagem cruamente corre o risco de escandalizar-se com Jesus. Mas sua pretensão não era de compará-la a um animal qualquer. Sabendo de antemão qual seria sua reação, Ele quis dar uma lição em seus discípulos. É possível que eles, como judeus que eram, até tenham gostado de ouvi-lo fazer aquela comparação esdrúxula. Eles chegaram a pedir que Jesus a dispensasse logo, porque ela vinha atrás clamando por sua filha enferma. Porém, para a surpresa deles (mas não de Jesus!), ela respondeu: “Sim, Senhor, mas os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa do seu senhor.”  Compadecendo-se dela, Jesus elogiou sua fé, atendeu ao seu clamor e curou sua filha. 

Que lição encontramos aí? Aquilo que para uns já não tem tanto valor, para outros tem valor inestimável. O que para uns não passa de migalha, para outros é o pão que lhes resta. 

Ontem, o mundo ficou boquiaberto com a declaração do Papa Francisco a favor da

união civil para casais homoafetivos. De fato, foi um gesto extremamente generoso e corajoso. Menos de 24 horas depois, o pastor Silas Malafaia anuncia um vídeo em que vai “arregaçar” o Papa que, segundo ele, estaria negando os princípios morais do evangelho. Quando a Suprema Corte americana, tão admirada por Malafaia e cia, autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo , as reações foram imediatas. Milhões celebraram, enquanto outros milhões lamentaram. Dificilmente encontramos (pelo menos nas redes sociais) quem se mantivesse isento. 

Ironicamente, uma instituição que tem sido tão desgastada ao longo das últimas décadas, tornou-se o sonho de consumo de milhões de casais homossexuais. Os mais conservadores vociferavam: Este é um direito concedido por Deus exclusivamente a casais heterossexuais. Sim, assim como o ministério terreno de Jesus era focado exclusivamente nos judeus. Mas isso não o impediu de sensibilizar-se com aquela cananeia. Com toda a pressão política e religiosa, a Suprema Corte preferiu ser sensível ao clamor desta minoria e atender à sua reivindicação. 

Como seguidor de Cristo, encontro aí razão para celebrar. Prefiro ver gays numa relação monogâmica a vê-los entregues à prostituição e a promiscuidade. Além do mais, ninguém vai conduzir um gay a Cristo negando-lhe os direitos. Infelizmente, alguns celebram quando a dama da justiça usa sua espada para retribuir o mal, mas não celebram quando usa sua balança para atribuir direitos iguais a todos. O problema é que toda vez que um dos pratos da balança pende para um lado, a espada da justiça vem contra ela mesma. 

Mas isso é contra a lei de Deus! Esbravejariam alguns. Não perca seu tempo citando os versos bíblicos que condenam tal prática. Eu os conheço todos. Como também conheço aquelas passagens bíblicas que apoiam a escravidão, por exemplo. Passagens como Levítico 25:44 foram prodigamente usadas por religiosos que tentavam impedir que os escravos fossem livres. Segundo eles, isso faria com que a sociedade entrasse em colapso. Os abolicionistas foram chamados de hereges por renegarem o sagrado direito de se ter escravos. Isso é uma abominação! Sim, casamentos mistos também. Começo a acreditar que chamamos deliberadamente de abominação aquilo que ainda embrulha nosso estômago. Tem mais a ver com nossos escrúpulos do que com o que cremos. Assim como hoje ouvimos aquela velha alegação de que se um pastor se negar a celebrar as bodas de um casal gay será preso, na época da abolição, pregadores bradavam dos púlpitos que se os escravos fossem livres, em breve, haveria casamentos mistos, claramente proibidos pelas Escrituras conforme passagens como Esdras 10:2-3 e Neemias 13:23-27. Os fiéis ficavam horrorizados ao imaginar suas lindas filhas, louras e de olhos azuis, sendo desposadas por negros de mãos calejadas. 

Quer gostemos ou não, o mundo mudou. O que hoje causa ojeriza em alguns, será visto como normal pelos seus netos. Assim como nos horrorizamos ao saber dos maus-tratos que os negros sofriam no passado, nossos netos se horrorizarão ao tomarem conhecimento da homofobia que vigorava em nossos dias. Homens como Martin Luther King viveram à frente do seu tempo. De que lado eles estariam agora? Jesus viveu muito, muito à frente do seu tempo. Por isso, reconheceu que seus contemporâneos não estavam prontos para lidar com questões ligadas à sexualidade. “Nem todos podem receber esta palavra”, disse com relação aos eunucos, homens que não tinham qualquer interesse no sexo oposto.  Ninguém que tenha vivido à frente do seu tempo ficou ileso. Há um preço a se pagar por posicionar-se pela justiça e pelo direito. O que me encoraja é saber que estamos presenciando um momento histórico. Nossos descendentes nos invejarão por havermos sido testemunhas disso. 

Uma parcela considerável da população americana teve seus direitos assegurados. Eu temeria o juízo de Deus se o direito lhes fosse negado, pois foi Ele mesmo quem advertiu: “Ai dos que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores, para privar os pobres dos seus direitos, e da justiça os oprimidos do meu povo; fazendo das viúvas sua presa e roubando dos órfãos.”  Entende-se por "leis injustas" aquelas que são parciais, que atendem a uns em detrimento de outros. Equidade é tratar a todos de igual modo, sem privilégios, sem prejuízos. Iniquidade é exatamente o oposto disso. Iniquidade não é conceder direitos, mas negá-los. 

Assim como teria celebrado se houvesse assistido a Jesus atendendo ao clamor de uma mulher pertencente a um povo amaldiçoado, concedendo-lhe o que os “filhos” desprezavam, celebro a conquista da população homossexual daquele país, ainda que isso me custe ser atacado pelos que não sabem chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram. 

Aos que discordam de mim, saibam que os respeito. Graças à democracia em que vivemos, temos o direito de discordar uns dos outros. Portanto, não neguemos este direito aos outros. Como disse Voltaire: Posso não concordar com nada que você diz, mas morreria pelo seu direito de dizê-lo. 

Sei o que é ser vítima de preconceito. Quando criança, tive minha casa apedrejada pelo simples fato de sermos uma família protestante. Acordei com um paralelepípedo rente à minha barriga. Teria me matado se atingisse a cabeça. Tenho o privilégio de ser pai de uma pessoa com deficiência. Sei como é lidar com aqueles olhares indiscretos. Talvez por isso me identifique tanto com o clamor das minorias.

Por mais Francisco e menos Malafaias. Mais amor e menos rancor e discriminação.

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