quarta-feira, julho 01, 2020

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DARK à luz da fé



Por Hermes C. Fernandes

DARK - Sem dúvida uma das melhores séries sobre viagens no tempo que já assisti, não apenas pela engenhosidade da trama, como também pela maneira como trata temas existenciais de cunho filosófico, colocando-nos cara a cara com nossos temores mais profundos e nossas dúvidas mais cruéis. Diferentemente de outros filmes e séries que abordam o assunto, Dark explora as implicações existenciais do tempo e seus efeitos sobre a natureza humana.

A trama se passa na cidade fictícia de Winden, na Alemanha, deflagrada pelo impacto do desaparecimento de uma criança, expondo os segredos e as conexões ocultas entre quatro famílias locais, que incluem uma conspiração envolvendo viagens no tempo que se estende por gerações.
Sem pretender me alongar, nem dar spoiler, dentre as coisas que me chamaram a atenção estão alguns indícios de que seu autor tenha recorrido às Escrituras em busca de inspiração. Não é coincidência que os dois principais personagens recebem nomes bíblicos: Jonas (que no futuro passa a identificar-se como Adam ou Adão em português) e Martha (que se apresenta depois como Eva).

De acordo com a teologia cristã clássica, Adão e Eva são aqueles sobre os quais pesa a culpa pela desgraça da humanidade. O que teria acontecido se o primeiro casal não houvesse desobedecido ao Criador? Ainda assim precisaríamos de um Redentor? Seria o plano de redenção uma espécie de plano B ou plano “tapa buraco”? Deus teria sido pego de surpresa? O evento conhecido como “Queda” poderia ter sido evitado? E se um de nós pudesse viajar no tempo e impedir que a serpente os enganasse? E se conseguisse tomar o tal fruto proibido das mãos de Eva antes que o levasse à boca?

Jonas é aquele profeta rebelde que toma a direção oposta à que Deus lhe ordenara. Mas no meio do caminho, uma tempestade enviada por Deus altera seus planos. Jonas é atirado ao mar, engolido por um grande peixe e vomitado na praia do lugar para onde Deus o havia enviado. Não seria isso uma evidência de que independentemente de nossas decisões, os propósitos divinos sempre prevalecem? Qualquer coisa que façamos acaba por contribuir na execução de Seus planos. No fim, uma cidade inteira foi convertida, evitando assim sua destruição. Isso, porém, não impediu que Jonas se deprimisse a ponto de pedir a morte em oração.

Marta e Maria eram  irmãs de Lázaro. Enquanto Maria escolheu parar e sentar-se para ouvir Jesus, Marta preferiu se manter ocupada com suas atividades domésticas. Ter escolhido “a melhor parte” não impediu Maria de amargar ver seu irmão morrer, enquanto esperava a chegada do mestre para cura-lo. O destino é inexorável. Ainda que pudéssemos voltar no tempo, tomar outros caminhos, eles sempre desaguariam numa espécie de delta temporal, um ponto de convergência onde a nossa liberdade de escolha e nosso destino se reencontram, tal qual ocorre entre um rio e o oceano. Mesmo que um rio sofra uma transposição de sua calha, como ocorreu com o São Francisco, isso não impedirá que suas águas cheguem ao oceano. O ciclo é ininterrupto. O fato de Maria ter escolhido a melhor parte não impediu que seu irmão morresse. Nem a fato de Marta, sua irmã, ter escolhido a pior não o impediu que ele fosse ressuscitado por Jesus. Portanto, a morte de Lázaro independia da postura adotada por suas irmãs com relação a Jesus. Elas, porém, acusam a Jesus de não haver chegado a tempo para evitar que seu irmão morresse. Porém, Jesus sabia que aquilo era inevitável. Não haveria ressurreição sem que houvesse morte. Assim como não haveria redenção se não houvéssemos caído de nosso estado original. Como exclamou Santo Agostinho: “Bendita a queda que nos proporcionou tão grande Redentor.”

Providência divina e responsabilidade humana são os dois leitos de um mesmo rio e devem correr lado a lado, de maneira sinérgica, interativa, até chegar ao delta da eternidade, quando as águas da cronosfera desaguarem na kairosfera. Somente então, tudo fará sentido. Nossa ignorância pode ser uma bênção. De fato, o que conhecemos é uma gota, mas o que ignoramos é um oceano. Jesus disse que tinha tanto para dizer aos Seus discípulos, porém eles não estavam preparados. Na ocasião em que lavou os seus pés, Ele disse: “O que eu faço agora não podeis compreender, mas compreendereis depois.”

Outra coisa que me chamou a atenção em Dark foram os inusitados encontros entre os eus do passado, do presente e do futuro, que acontecem envolvendo os protagonistas, além de outros personagens como o filho do casal, produto da união entre dois universos, o de Jonas e o de Martha, criados a partir de uma bifurcação temporal. Quem fomos, quem somos e quem seremos coexistem na malha temporal. Nossas escolhas são influenciadas tanto pelo nosso passado quanto pelo nosso futuro. O que somos destinados a nos tornar está sempre em contato com o nosso “eu” presente. Quem somos é o ponto de convergência entre quem fomos e quem seremos. "Torna-te quem tu és." Parafraseando Nietzsche, nosso destino é nos tornar quem, de fato, somos.

O desaparecimento repentino de crianças na pequena cidade alemã remete a acontecimentos idênticos ocorridos 33 anos e 66 anos antes, envolvendo uma misteriosa caverna, uma usina nuclear suspeita e um estranho homem recém-chegado na cidade. A história começa em 2019, mas se conecta com histórias que se passam em 1986 e em 1953 através de viagens no tempo. 33 era a idade de Cristo ao ser executado numa cruz pelas mãos dos romanos. De acordo com Paulo, o período que abarca o nascimento e a morte de Jesus era chamado de “plenitude dos tempos.” Mas tanto para Paulo, quanto para seus colegas Pedro e João, a cruz histórica foi a manifestação de um evento meta-histórico, ocorrido antes do início dos tempos.

A cruz é o centro gravitacional capaz de prover o nó que une todos os universos. Por isso, Paulo diz que na cruz Deus fez convergir em Cristo todas as coisas que há nos céus e todas as coisas que há na terra. Em outras palavras, todos os mundos visíveis e invisíveis, acessíveis e inimagináveis, todos os universos possíveis, foram atraídos a Ele. A cruz é a encruzilhada onde tempo e eternidade se encontram. Assim como a criança gerada no ventre de Martha era o fruto inusitado do encontro de dois mundos (tempos distintos e paralelos), Cristo é o elo entre o nosso mundo e o mundo porvir.

Sinto-me instigado cada vez que leio em Hebreus que fomos visitados pelos poderes do mundo vindouro.

Este “mundo vindouro” é o tal paraíso tão almejado pela alma humana.

O paraíso é a ambiência existencial de onde fomos expulsos quando iniciamos nossa peregrinação. É tanto o ponto de partida, quanto o lugar de chegada. O início é o fim, e o fim é o início. Por isso, o tal paraíso figura nas primeiras e nas últimas páginas das Escrituras, no Gênesis e no Apocalipse. Ele é de onde viemos e para onde estamos indo. É nele que adentramos no momento em que deixamos o tempo e o espaço, num voo non-stop, isto é, sem escalas. “Hoje mesmo”, foi o que Jesus garantiu ao homem crucificado ao Seu lado, “estarás comigo no Paraíso.”

Ficou a cargo do Espírito Santo conduzir a humanidade até o entroncamento final entre tempo e espaço. Cada vida que parte do tempo é uma vida que adentra o Paraíso, que não se encontra em um lugar qualquer do universo, mas no entroncamento entre o tempo e a eternidade, onde o ponto de partida é também o ponto de chegada, o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim.

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