Por Hermes C. Fernandes
O que distingue um privilégio de um direito legítimo? Imagine uma gangorra. Se de um lado dela estiver o direito, do outro estará o dever, e ambos se equilibram. Tanto um, quanto outro deve ser aplicado indistintamente a todos. Mas se de um lado da gangorra estiver o privilégio, do outro estará o preconceito. Onde impera o direito, todos ganham. Mas o privilégio contempla apenas alguns.
Onde houver privilégios e preconceitos, haverá clamor por direitos.
A equação pode parecer simples, mas envolve muitos fatores. Quem estaria disposto a abrir mão de seus privilégios? Aliás, muitos nem sequer os reconhecem. Por estarem tão acostumados a usufrui-los, parece-lhes algo absolutamente natural.
Nem todo privilégio pode ser renunciado, porém, deve ser constantemente denunciado até que se torne motivo de constrangimento e não mais de vanglória por parte de quem o desfruta.
Paulo, por exemplo, poderia se considerar um privilegiado por causa de sua confortável posição social. Em vez disso, ele mesmo denuncia seus privilégios, considerando-os como excremento, o resultado final de um processo de promoção e manutenção da segregação. Na apresentação de seu invejável currículo, ele diz integrar a linhagem de Israel a quem pertence as promessas divinas, a tribo de Benjamim de onde procedeu seu primeiro monarca, a mais popular facção política e religiosa de seu tempo, os fariseus, além de ser defensor intransigente das tradições, da lei e da ordem, o que levou-a a perseguir vorazmente os cristãos. “Mas o que para mim era lucro”, arrematou, “considerei perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como excremento, para que possa ganhar a Cristo” (Filipenses 3:4-8).
Qualquer coisa que nos faça sentir-nos melhores que os demais deve ser ressignificada. A graça nivelou-nos a todos de modo que ninguém é melhor que ninguém. Nenhum privilégio tem o reconhecimento dos céus. Todos são frutos da injustiça.
O que seria considerado privilégio em nossa sociedade contemporânea? Ser branco? Homem? Hétero? Cristão (católico ou evangélico)? O que nos confere vantagens imediatas com relação a outros? Se não podemos reverter isso, alterando nossa posição privilegiada, estaríamos dispostos a abrir mão das vantagens que dela decorrem? Não posso, por exemplo, alterar minha orientação sexual. Sou hétero. Isso é inerente à minha condição existencial. Mas entendo que isso me confere vantagens sobre os homossexuais. Refiro-me, obviamente, a vantagens do ponto de vista social. Não conheço ninguém que tenha sido despedido do emprego sob a alegação de ser hétero. Mas conheço muitos homossexuais que têm sérias dificuldades de se posicionar no mercado de trabalho devido à sua orientação sexual. Se quero “ganhar a Cristo”, como disse Paulo, devo expor meus privilégios, denunciando-os e considerando-os perdas. E por que deveríamos considera-los perda, se na verdade, se constituem em vantagem e lucro? Pelo simples fato de outros saírem perdendo devido às vantagens advindas de nossa posição privilegiada. Não posso mudar a cor da minha pele. Mas tenho o direito de não me sentir nada confortável pelo fato de ser preferido numa entrevista de emprego por ser branco. Não devo endossar preconceitos só porque não sou vítima dos mesmos. Tampouco devo apoiar privilégios por me beneficiar deles.
Outro exemplo pode ser encontrado nas páginas do Antigo Testamento. Trata-se do episódio em que Davi, depois de haver cometido adultério, mandou chamar a Urias, o esposo traído que estava no campo de batalha, para outorgar-lhe um privilégio inusitado. Evidentemente, o objetivo de Davi não era a concessão de um privilégio a um dos seus mais leais soldados, e sim, um ardil para tentar livrar sua própria cara. Quando Urias chegou ao palácio, Davi lhe deu uma merecida folga para que pudesse passar a noite na companhia de sua esposa. Com isso, a embaraçosa gravidez de Bate-seba seria atribuída ao próprio marido, e Davi, seria poupado de uma exposição desnecessária que poderia até destituí-lo do trono. Mas, surpreendentemente, Davi se vê diante de um homem de envergadura moral e ética superior à sua. Como ele poderia desfrutar das benesses e prazeres do leito conjugal sabendo que seus companheiros seguiam arriscando suas vidas no campo de batalha? Sua ética ilibada fez com que abrisse mão do privilégio e voltasse para o front. Nem mesmo embriagando-o, Davi conseguiu dissuadi-lo de reunir-se a seus companheiros. Aquela havia sido a primeira vez que Davi ficara em casa enquanto seus homens lutavam pela expansão do seu reino. Urias, porém, recusou a oferta. Sentindo-se encurralado, Davi recorreu ao mais covarde expediente. Enviou pelas mãos de Urias uma carta a Joabe, seu general, para que este o pusesse à frente da batalha, de modo que, quando os inimigos avançassem, os demais soldados recuassem e o deixassem sozinho. Morrendo Urias, Davi se livraria de um grande problema. A confiança de Davi na idoneidade de Urias era tão grande que em momento algum ele considerou que ele pudesse abrir a carta e se deparar com sua sentença de morte (2 Samuel 11:7-17). Funcionou. Mas isso custou muito caro a Davi. Deus não o deixaria impune.
Somente quem tenha envergadura moral e ética é capaz de abrir mão de algo que lhe seja vantajoso, pois entende o privilégio sempre priva alguém de seus direitos.
Se me vejo detentor do direito de usufruir de certos privilégios, passo a olhar para outro como quem está abaixo de mim. Isso se chama preconceito.
Geralmente, privilégios são concessões, enquanto direitos são conquistas. Ninguém concede direito a ninguém. O máximo que se pode fazer é reconhecer o direito e buscar protegê-lo. Diferentemente de quem goza de um privilégio, aquele que desfruta de um direito não pode negá-lo aos demais. Isso seria uma contradição.
Moisés, por exemplo, abriu mão de sua posição como príncipe do Egito para sofrer ao lado do seu povo. O próprio Jesus abriu mão de recorrer aos seus atributos divinos, esvaziando-se, assumindo a posição de servo daqueles que deveriam servi-lo. Que Ele seja nosso maior exemplo, de modo que, jamais nos estribemos em nossa posição social, religiosa, eclesiástica, étnica, intelectual, ideológica; mas que nos posicionemos pelos direitos de todos, sem discriminar quem quer que seja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário