Por Hermes C. Fernandes
Para Yuval Noah Harari, professor e historiador israelense, autor do livro "Sapiens: Uma breve história da humanidade", a mobilização global em torno da pandemia da COVID-19 não terá implicações apenas na forma como organizamos nossos sistemas de saúde, mas também deverá moldar a maneira como estruturamos a economia, a política e a cultura para o futuro — tudo isso com base em decisões rápidas e emergenciais, tomadas em meio àquela que pode vir a ser a maior crise vista pela nossa geração. “Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar. Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva — mas habitaremos um mundo diferente", vaticina Harari. A natureza de emergências como a do novo coronavírus, diz o autor, faz com que processos históricos avancem muito rapidamente. "As decisões que em tempos normais podem levar anos de deliberação são aprovadas em questão de horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são colocadas em serviço porque os riscos de não fazer nada são maiores. Países inteiros servem como cobaias em experimentos sociais em larga escala. O que acontece quando todos trabalham em casa e se comunicam apenas à distância? O que acontece quando escolas e universidades inteiras ficam online? Em tempos normais, governos, empresas e conselhos educacionais nunca concordariam em realizar tais experimentos. Mas esses não são tempos normais", conclui.
Algo análogo ocorreu na passagem de outras ‘tormentas’, como a peste bubônica, a gripe espanhola, as duas grandes guerras, etc. Uma nova configuração do mundo poderá emergir dos escombros deixados por esta pandemia. Situações calamitosas como esta empurram a humanidade, fazendo-a avançar o que, em tempos normais, levariam décadas.
Porém, nem todos parecem dispostos a acompanhar ou, ao menos, se adequar à nova realidade imposta pela pandemia. Muitos preferem nutrir a esperança de que tudo voltará a ser como antes, possibilidade que deveria ser descartada de imediato.
O fato é que, não podemos voltar ao que chamamos de normalidade, visto que, o normal era exatamente o problema. Estamos em um caminho sem volta. Portanto, ao cabo deste processo, temos que sair melhores, mais humanos, menos egoístas, mais empáticos e solidários. Porém, tudo dependerá da maneira como respondermos às demandas deste tempo de crise.
Há um episódio bíblico que ilustra bem tempos como este e nos adverte a uma tomada de posição coerente com a nossa fé. Jeremias narra uma visão em que o Senhor lhe mostrou “dois cestos de figos”, “um cesto tinha figos muito bons, como os figos temporãos, mas o outro, figos muito ruins, que não se podiam comer, de ruins que eram” (Jeremias 24:1a,2).
O cesto de figos bons representava os judeus que haviam sido levados em exílio para a Babilônia. O próprio Deus assume a responsabilidade por tal acontecimento, usando o rei Nabucodonosor como instrumento para o estabelecimento de uma configuração mundial. Nem mesmo Jerusalém seria poupada, e, portanto, seus habitantes deveriam se render ao exílio proposto sem qualquer hesitação.
Entretanto, Deus assume o compromisso de cuidar pessoalmente dos que fossem levados para a terra dos caldeus: “Porei os meus olhos sobre eles, para o seu bem, e os farei voltar a esta terra. Edificá-los-ei, e não os destruirei; plantá-los-ei, e não os arrancarei. Dar-lhes-ei coração para que me conheçam, porque eu sou o Senhor. Ser-me-ão por povo, e eu lhes serei por Deus, pois se converterão a mim de todo o seu coração”(Jeremias 24:4-7). Basta ler o livro de Daniel para conferir que Deus cumprira o que prometera. Os exilados foram recebidos como príncipes, como gente de valor, e não como escravos ou cativos. Deus os honrou em terra alheia.
Uma das razões pelas quais Deus permitiu que Jerusalém fosse desocupada, e que seus filhos fossem levados em exílio para a Babilônia, era o estado em que sua própria terra estava. Permita-me explicar: Quando Deus introduziu seu povo na terra prometida, foi feita uma aliança entre Ele, seu povo e a terra. Eles poderiam plantar por seis anos consecutivos, mas no sétimo ano a terra deveria descansar (Levítico 25:3-5). Por 490 anos, eles semearam, colheram ininterruptamente, mas não observaram o ano sabático em que o solo deveria descansar. Interessante que hoje, milhares de anos depois, a ciência comprova que se a terra não descansar a cada seis colheitas, ela perde a fertilidade, ficando improdutiva.
Foi necessário que Deus permitisse a invasão de Jerusalém por parte do exército da Babilônia e que seus filhos fossem levados em exílio por 70 anos. Havia chegado a hora da cobrança. A terra já não suportava mais. E se ela deixasse de produzir, a fome destruiria aquela nação. Se dividirmos 490 por 7, veremos que dá exatamente 70 anos, o tempo de descanso acumulado.
Deixar a terra descansar é entregá-la a si mesma, permitindo que produza espontaneamente, no ritmo que a própria natureza impõe, sem interferência humana. O que podemos aprender com isso?
O coronavírus é para nós o que temos sido para o planeta. O aquecimento global é a febre que indica que nos tornamos numa infecção viral devastadora para o planeta. Como bem disse Paulo, toda a criação está gemendo por haver sido submetida à vaidade humana. Deixamos nossa posição original de guardiões da criação para sermos seus principais predadores. É claro que o sistema imunológico do planeta reagiria. Já que tsunamis, furacões e terremotos não conseguem nos parar, a natureza engendrou um vírus letal capaz de nos fazer pisar no freio, mesmo que nos faça derrapar na curva da economia. O que nossos anticorpos são para nós, o coronavírus é para o planeta. Precisávamos sair um pouco de circulação, deixando a natureza respirar livremente. Resultado: As tartarugas estão voltando as praias para por seus ovos, aproveitando a ausência de banhistas. Duas baleias foram vistas próximas das praias cariocas. Até golfinhos foram flagrados nadando nos canais de Veneza.
Os judeus deviam 70 anos sabáticos a terra. Antes que o solo ficasse estéril, Deus transportou seu povo para a terra dos caldeus, para que lá passassem 70 anos. Portanto, o exílio do povo significaria o descanso da terra, e não apenas um castigo, um corretivo por seus deslizes morais ou religiosos.
Nem todos aceitaram o veredicto divino. Muitos questionaram e se revoltaram contra Deus e a sua Palavra. E é nesse contexto que Deus levanta Jeremias. Os que contestaram o veredicto divino foram comparados aos figos ruins, que de tão ruins não se podia comer (Jeremias 24:2).
Assim como se lança fora aquilo que não se pode ingerir, “do mesmo modo”, diz o Senhor, “entregarei Zedequias, rei de Judá, os seus príncipes, e o resto de Jerusalém, quer fiquem nesta terra, quer habitem na terra do Egito. Farei que sejam espetáculo horrendo, ofensa para todos os reinos da terra, opróbrio e provérbio, escárnio, e maldição em todos os lugares para onde os lancei”( vv. 8-9).
Zedequias, que fora constituído às pressas como rei de Judá, liderou a resistência. “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”, dizia o rei. Havia quem preferisse retornar ao Egito a ter que se render ao Império Caldeu.
Enquanto os “figos bons” haviam sido “enviados” por Deus, os “figos ruins” seriam “lançados”. O contraste seria claramente visível. Uns foram de bom grado por entenderem o propósito de Deus. Outros, foram mediante coerção. Algo bem parecido com o que está ocorrendo nesses dias de pandemia. Enquanto uns aderem à quarentena convencidos de que é o melhor a ser fazer para salvaguardar sua vida e a de seus entes queridos, outros seguem desdenhando das orientações das autoridades médicas, deixando-se levar pela opinião de quem não sabe o que diz.
Todo movimento tem um líder e um mentor. Nem sempre o que lidera é o mesmo que mentora. Geralmente, aquele que está numa posição de poder necessita ser legitimado aos olhos do povo. Esta é a dobradinha. O falso profeta é aquele que serve aos poderes constituídos em sua rebelião contra Deus. Em vez de denunciar, prefere bajular. Em vez de contestar, prefere corroborar.
Quem respaldava as decisões de Zedequias era um profeta de araque chamado Hananias, que só dizia o que o rei queria ouvir. Provavelmente, vivia à custa do palácio. Veja o que diz a Escritura:
“No mesmo ano, no princípio do reinado de Zedequias, rei de Judá, no quarto ano, no quinto mês, Hananias, filho de Azur, o profeta de Gibeom, me disse na casa do Senhor, perante os olhos dos sacerdotes e de todo o povo: Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Eu quebrarei o jugo do rei da Babilônia.” Jeremias 28:1-2
Isso era tudo que Zedequias, e os supostos “heróis da resistência” queriam ouvir: Segundo a sua profecia, muito em breve o jugo do rei da Babilônia seria quebrado. Quem não se rejubilaria com uma notícia dessas?
Uma coisa ninguém podia negar: Hananias era um homem convincente e que parecia acreditar naquilo que dizia. Senão, jamais se atreveria a afirmar que o exílio babilônico duraria apenas dois anos (vv. 3-4). Neste curto prazo, tudo voltaria ao normal. Até os utensílios do Templo seriam devolvidos para que os judeus pudessem cultuar a Deus como antes.
Eis a marca registrada dos falsos profetas: eles sempre dizem o que as pessoas anseiam ouvir. Promessas e mais promessas. E tudo isso, a serviço de quem está no poder. Falsos profetas adoram fixar prazos, marcar datas. Eles sabem que as pessoas ficam impressionadas com isso. Eles desdenham da ciência, questionam dados, descredibilizam informações e espalham fakenews que corroborem com seus posicionamentos.
E quanto a Jeremias, como reagiu àquela profetada?
“Disse Jeremias, o profeta: Amém! Assim faça o Senhor! O Senhor confirme as tuas palavras, com que profetizaste.” Jeremias 28:5
Será que Jeremias estava sendo irônico ou ele realmente desejava que se cumprisse a profecia de Hananias? Dizer “amém” a uma palavra requer concordância. Será que Jeremias teria sido mais um a se deixar iludir? Sinceramente, creio que ele apenas expressou o que seu coração desejava. Assim como às vezes o que um desses pregadores midiáticos profetizam vem ao encontro do que nosso coração almeja ver. Confesso que eu adoraria que esta pandemia não passasse de uma gripezinha e que a quarentena fosse absolutamente desnecessária. Porém isso parece muito longe da realidade. E não será o meu “amém” que poderá alterar isso. Diferentemente do que dizem por aí, querer não é poder. Antes, fosse.
Logo após o seu sonoro “amém”, Jeremias complementou:
“Entretanto, ouve esta palavra, que eu digo aos teus ouvidos e aos ouvidos de todo o povo: Os profetas que existiram antes de mim e antes de ti, desde a antiguidade, profetizaram guerra, mal e peste contra muitas terras e grandes reinos. O profeta que profetizar paz, quando se cumprir a palavra desse profeta, será conhecido como profeta na verdade enviado pelo Senhor.” Jeremias 28:7-9
Simples assim. Se a profecia se cumpre, o profeta é reconhecido como verdadeiro. Se não se cumpre, deve ser considerado mais um a engrossar as fileiras dos falsos profetas.
Na mente de Hananias, era hora de virar o jogo. Sua reputação estava sendo questionada, e sua estratégia para reverter o placar foi, no mínimo, inusitada.
“Então Hananias, o profeta, tomou o jugo do pescoço do profeta Jeremias, e o quebrou. Disse Hananias aos olhos de todo o povo: Assim diz o Senhor: Assim quebrarei o jugo de Nabucodonosor, rei de Babilônia, depois de passados dois anos completos, de sobre o pescoço de todas as nações. E Jeremias, o profeta, foi-se embora.” Jeremias 28:10-11
Todo mundo ficou impressionado. A estratégia parecia ter funcionado. Nada como uma boa dramatização para dar peso à palavra.
Ao revelar a Jeremias o exílio do seu povo, Deus o orientou a colocar uma espécie de jugo em volta de seu pescoço. Era uma maneira de chamar a atenção para aquilo que estava prestes a acontecer. Hananias, no afã de virar o placar, arranca o jugo do pescoço de Jeremias, e sem pedir licença, quebra-o à vista de todos. Segundo ele, da mesma maneira, Deus quebraria o jugo de Nabucodonosor. Uau! Que coisa impressionante!
Aos olhos do povo, Hananias se tornou também o benfeitor de Jeremias, pois tirou-lhe o jugo que lhe pesava o pescoço. Porém, por trás daquele gesto aparentemente solidário, estava a intenção de desmoralizar o porta-voz de Deus.
Sabe qual foi a reação imediata de Jeremias? Foi-se embora. Era hora de retirar seu time de campo. Não adiantava bater boca com aquele falso profeta. Afinal, o povo estava ao lado dele. Jeremias já estava sendo considerado o “profeta do caos”, alguém que não merecia nem sequer atenção, quanto mais crédito.
Os que haviam sido convencidos por Jeremias já estavam longe dali, a caminho da Babilônia. Quem permanecia em Jerusalém era porque dava maior crédito a Hananias. Era chegado o intervalo do jogo. O placar está empatado. Mas o segundo tempo viria, quando Jeremias teria recobrado seu ânimo. Era hora de reunião com o Técnico.
“Veio a palavra do Senhor a Jeremias, depois que Hananias, o profeta, quebrou o canzil de sobre o pescoço do profeta Jeremias: Vai, e dize a Hananias: Assim diz o Senhor: Jugo de madeira quebraste, mas em vez dele terás jugo de ferro. Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Jugo de ferro pus sobre o pescoço de todas estas nações, para servirem a Nabucodonosor, rei de Babilônia, e servi-lo-ão. Até os animais do campo lhe darei.” Jeremias 28:12-14
Chega de dramatização! É a hora da verdade! Deus não Se deixa impressionar com as artimanhas humanas, ainda que travestidas de disciplinas espirituais como uma convocação de um jejum nacional. Seu propósito sempre prevalece.
Hoje, o jugo que pesa sobre nós é a quarentena. Trata-se, entretanto, de um jugo de madeira. Os profetas aliados ao poder tentam remover tal jugo, convencendo-nos de que seja desnecessário. Mas é melhor um jugo de madeira, do que um jugo de ferro. É melhor estar em quarentena no conforto do lar do que disputar um leito de UTI e um respirador para poder sobreviver.
Quando, afinal, nos convenceremos de que não precisamos de quem nos arranque o jugo, mas de quem nos diga a verdade? Não carecemos de dramatizações inúteis que nos mantenham cativos, mas da verdade nua e crua que nos liberte da alienação. Não precisamos de quem nos tire da quarentena com fakenews, mas de quem zele pela nossa sobrevivência. Não precisamos dar ouvidos a quem só se interesse pela manutenção de seus impérios eclesiásticos e só se preocupem com a queda da arrecadação de suas igrejas. Nem tampouco precisamos oferecer devoção a políticos que estão mais preocupados em salvaguardar a economia do que em salvar vidas.
O enviado do Senhor fala as Suas Palavras, ainda que não agrade a seus interlocutores. Mas aquele que vai sem ser enviado terá que arcar com o custo de sua iniciativa rebelde. Quem vai sem ser enviado, acaba sendo lançado, assim como os figos ruins que se deixaram ludibriar por suas falsas promessas.
“Então disse Jeremias, o profeta, a Hananias, o profeta: Ouve, Hananias! O Senhor não te enviou, mas fizeste que este povo confiasse em mentiras. Pelo que assim diz o Senhor: Eu te lançarei de sobre a face da terra. Este ano morrerás, porque pregaste rebeldia contra o Senhor. Morreu Hananias, o profeta, no mesmo ano, no sétimo mês.” Jeremias 28:15-17
A mensagem do falso profeta parecia de esperança, mas na verdade produzia alienação. Ora, se fossem passar apenas dois anos na Babilônia, não haveria porque fazer planos, integrar-se à sociedade local, e nem mesmo trabalhar por sua prosperidade. A mensagem de Deus foi clara: Orem pela paz, e trabalhem pela prosperidade da cidade, pois se ela prosperar, vocês também prosperarão (Jeremias 29:1,4-7,11).
Provavelmente, as profecias de Hananias devem ter repercutido para além dos muros de Jerusalém, chegando aos ouvidos dos exilados na Babilônia, razão pela qual, muitos se recusavam a desfazer as malas, visto que, se suas predições estavam corretas, sua estada em Babilônia seria rápida, com duração de apenas dois anos.
Fato é que não sabemos ao certo quanto tempo durará esta quarentena. Torcemos para que termine o quanto antes. Porém, devemos estar preparados para o contrário. De nada vai adiantar cedermos à ansiedade. Aquietemos, portanto, o coração, e confiemos nos cuidados do nosso Pai Celestial.
Que nosso objetivo não seja apenas encontrar um mundo melhor, mas, sobretudo, de nos tornarmos pessoas melhores. Que nossas casas se tornem no laboratório onde reaprendamos a arte do convívio e desenvolvamos nossa inteligência emocional no trato com aqueles com que compartilhamos o mesmo espaço.
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