segunda-feira, março 30, 2020

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A ELOQUÊNCIA DO EXEMPLO


Por Hermes C. Fernandes

Era quase meia-noite. O ambiente absolutamente insalubre, cheio de ratos e insetos. Devido à escuridão da cela, não lhes era permitido enxergar um ao outro. Seus pés acorrentados em um tronco. O calor insuportável fazia com que o suor brotado de seus corpos escorresse até as feridas recém-abertas nas costas pelas chicotadas que haviam recebido. Eles bem que poderiam ter questionado a justiça divina que os permitira estar ali sem que houvessem cometido crime algum. Poderiam estar revoltados com o próprio Deus que os comissionara, mas não os impedira de sofrer aquela injustiça. A razão de estarem presos não era outra senão o anúncio da boa nova. Mas em vez de murmurar, resolveram encher aquela atmosfera de canções de louvor ao seu Redentor. O eco de suas vozes chegou às celas vizinhas. Os demais presos admiravam a resiliência daqueles dois que se diziam discípulos de um Galileu chamado Jesus. Como poderiam cantar numa situação daquelas? Como poderiam louvar estando privados de sua liberdade? Pareciam pássaros que mesmo engaiolados, seguem cantando enquanto sonham com a liberdade. De repente, um terremoto. Os alicerces da prisão são sacudidos de tal maneira que todas as grades se abrem como num passe de mágica. Que grande oportunidade tiveram aqueles presos de escaparem de sua sina cruel. Mas por alguma razão inexplicável, ninguém arredou o pé. A começar por Paulo e Silas.

O carcereiro, desesperado, tomou sua espada e ensejou um suicídio, pois sabia que era a única maneira de poupar sua própria família de ser executada pelas autoridades romanas. Já que não havia como impedir uma fuga em massa, era-lhe melhor morrer. Quem sabe, quando as autoridades encontrassem seu corpo, não julgariam que ele teria sido morto pelos presos em vez de haver facilitado a sua fuga. Ele sabia que a pena por facilitar a fuga de presos era a morte, mas não sem antes assistir à execução de toda a sua família. Por sorte, Paulo chega a tempo de impedir que ele levasse a cabo aquele desatino. Qual teria sido seu argumento para dissuadi-lo? “Não faça isso, pois todos estamos aqui.” Paulo falava pelos presos. Eis o grande milagre narrado nessa passagem do Novo Testamento. Não foi o terremoto, como muitos acreditam, e sim, o fato de Paulo e Silas haver impedido uma fuga em massa daquela prisão em Filipos. Sabemos o que Paulo disse ao carcereiro, mas o que teria dito aos presos para convencê-los a não aproveitar o terremoto para escapar? Nada. Pelo menos, não há registro sobre qualquer discurso que tenha feito. Subentende-se que foi o seu exemplo que os impediu de fugir. Naquela noite, o carcereiro e sua família se renderam à mensagem do evangelho. Nascia ali a igreja de Filipos, a quem, mais tarde, Paulo dirigiu uma de suas mais importantes epístolas. No outro dia pela manhã, chegou o alvará de liberdade para Paulo e seu amigo. Se houvessem se aproveitado do terremoto e fugido, passariam o resto de suas vidas como foragidos da justiça. Mas perceberam que o terremoto não tinha o objetivo de resgatá-los da prisão, e sim, de resgatar aquela família.

Não há mensagem mais eloquente do que o exemplo.

Exemplo como o do Papa Francisco que nesta semana celebrou uma missa solitária no Vaticano. Exemplo como o de pastores que fecharam suas igrejas para poupar o rebanho que lhes foi confiado. Exemplo que, infelizmente, faltou ao presidente do país que ontem deixou o palácio do Planalto para passear pelo comércio de uma das cidades satélites do Distrito Federal, cumprimentando transeuntes, tirando selfies com crianças e idosos, como se ainda estivesse em campanha eleitoral. Que mensagem ele está passando para a nação durante este momento de pandemia? Sem contar que seu gesto descredibiliza o ministro da saúde de seu próprio governo.

Assim como Paulo e Silas convenceram aqueles presos a permanecerem na prisão, compete aos líderes da igreja, bem como aos líderes da nação, convencer o rebanho e a população respectivamente que o melhor lugar para se ficar é em casa. Ficar em casa é bem diferente que permanecer numa prisão fétida, úmida, com os pés presos em troncos, com as costas ensanguentadas, correndo o risco de contrair uma doença por mordida de ratos ou picada de insetos. Será que é mesmo pedir muito?

Ninguém está condenado a passar o resto de sua vida preso em seu domicílio. Não se trata de cárcere privado, mas de uma quarentena que visa salvar vidas, incluindo de pessoas a quem amamos.

Emprego, a gente corre atrás e consegue outro. Dívidas, a gente negocia. Bens materiais, a gente conquista. Mas a vida é um bem inegociável.

Aguente firme. Vai passar. E quando finalmente as autoridades nos liberarem da quarentena, poderemos voltar a circular livremente sem medo de ser feliz.

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