Por Hermes C. Fernandes
Um menino de apenas doze anos foi flagrado por seus pais
numa calorosa discussão com professores. Sem o menor recato, ele tanto
respondia suas perguntas, quanto os questionava, colocando-os numa verdadeira
saia justa. Seus pais não entenderam a cena, já que era inadmissível que
garotos de sua idade ousassem questionar. Afinal, naquele sistema educacional,
as crianças eram ensinadas a obedecer, não a pensar. Mas, por incrível que
pareça, os professores não se sentiram desrespeitados. Antes, ficaram admirados
com sua inteligência inquiridora. O episódio protagonizado por Jesus se deu em
Jerusalém cerca de quarenta anos depois de que a Biblioteca de Alexandria, a
maior do mundo antigo, sofreu seu primeiro incêndio em que ao menos 40 mil
obras de seu magnífico acervo foram destruídas.
Uma cena como esta foi possível dois mil anos atrás, mas
talvez não seja mais possível nas salas de aula de nosso país a partir da
implementação do programa conhecido como “Escola Sem Partido”, movimento político criado em 2004 no Brasil
pelo Deputado Federal Erivelton Santana. Segundo os defensores do movimento, o
programa representaria pais e estudantes contrários ao que chamam de
"doutrinação ideológica" nas escolas.
Quase 60 projetos de lei foram apresentados em todo o país
sob a influência do movimento, dentre eles o do então senador e pastor Magno
Malta, apresentado em junho de 2016 e intitulado PLS 193/2016. O projeto visa
limitar a atuação dos professores para impedir que eles promovam suas crenças
ideológicas e partidárias em sala de aula ou que incitem os estudantes a
participarem de protestos populares. Como parte da limitação é buscada uma
tipificação de crime chamado no projeto de “assédio ideológico” em sala de
aula. O Escola Sem Partido tem apoiado a muitas propostas inspiradas nas ideias
do movimento apresentadas nas assembleias legislativas e câmaras municipais de
todo o país, sendo a maioria delas por
parlamentares católicos ou evangélicos. Em outubro deste ano, pouco após a
eleição de Jair Bolsonaro para presidente, o relator do Escola sem Partido na
Câmara dos Deputados, deputado Flavinho (PSC), adicionou alterações na redação
do projeto na véspera da votação, deixando-o ainda mais restritivo. No novo
texto, noções como "gênero", "orientação sexual",
"ideologia de gênero" e "preferências políticas e
partidárias" não podem fazer parte de "materiais didáticos e
paradidáticos", "conteúdos curriculares", "políticas e
planos educacionais" e "projetos pedagógicos das escolas."
De acordo com os apoiadores do projeto, a importância do
Escola sem Partido se deve ao fato de que em uma sociedade livre, as escolas
não devem funcionar como centro de doutrinação, mas sim fornecer uma formação
ideologicamente neutra e voltada ao aprendizado. O movimento afirma que existe
um processo de doutrinação ideológica de cunho esquerdista muito forte nas
escolas. Seus defensores afirmam que questões como religião e gênero também não
devem ser discutidas em sala de aula, mas restringir-se à esfera familiar.
Já os especialistas em educação criticam o programa
afirmando que nada na sociedade é isento de ideologia, e que o Escola Sem
Partido é uma proposta carregada de conservadorismo, autoritarismo e
fundamentalismo cristão. Também afirmam que apesar do discurso de aparente
neutralidade, o Escola sem Partido defende uma escola sem espaço para discussão
da cidadania. Caso o projeto seja aprovado, o aluno seria privado do desenvolvimento
do pensamento crítico.
Não é à toa que professores que se manifestaram contra o
projeto de lei o chamam de "Lei da Mordaça". O que se pretende inibir, de fato, não é a
tal doutrinação esquerdista, e sim, o pensamento crítico, beneficiando, assim,
o status quo.
“Doutrinação ideológica” era aquilo a que minha geração foi
submetida durante o regime militar, com matérias como “Moral e Cívica” e OSPB
(Organização Social e Política Brasileira), enquanto outras como Filosofia e
Sociologia desapareceram do currículo, dado o seu teor considerado subversivo.
A meu ver, o tal Escola sem partido é um baita retrocesso.
Sob o pretexto de criar-se uma escola isenta, já, já, teremos em nosso
currículo escolar matérias como o criacionismo, e teorias pseudocientíficas
como a Terra Plana, etc. Estaremos dando um salto de volta ao passado
obscurantista da idade pré-moderna. Mais um pouco, queimaremos livros como
fizeram os nazistas, para proteger nossas crianças da influência malévola do
marxismo cultural.
Após analisar as propostas e os documentos disponibilizados
pela campanha, o Conselho Nacional de Direitos Humanos emitiu uma resolução em
que repudiou todas as iniciativas do Escola sem Partido. O Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Direitos Humanos tratou os projetos de lei promovidos
pelo movimento como ameaças aos direitos humanos básicos.
Enquanto isso, líderes evangélicos vociferam em seus
púlpitos, conclamando seus fiéis a abraçarem um discurso que poderá vacinar a
sociedade contra o evangelho ao tentar impor sua moral religiosa.
Como cereja do malfadado bolo, a bancada evangélica se pronunciou contemplada pela escolha do filósofo colombiano Ricardo Vélez Rodriguez, de linha conservadora, para ocupar a cadeira de ministro da Educação no governo Bolsonaro. A mesma bancada criticou severamente o primeiro nome a ser escolhido para a pasta, o diretor do Instituto Ayrton Senna, Mozart Neves. Tal insatisfação se deu por conta do fato de que Neves não demonstrar qualquer comprometimento com o movimento Escola sem Partido (aliás, é um crítico do mesmo). Aproveitando-se da onda conservadora que culminou na eleição de seu pupilo ao cargo de chefia da nação, a bancada evangélica resolveu testar seu poder de veto, barrando a nomeação de Neves. Logo em seguida, Bolsonaro anunciou o colombiano para Educação, que, dentre outras coisas, é crítico do Enem, do PT, e diz que é preciso 'refundar' o Ministério da Educação, demonstrando total afinidade com o projeto Escola sem Partido.
Sobre educação, Vélez Rodríguez diz em seu blog que os brasileiros estão “reféns de um sistema de ensino alheio às suas vidas e afinado com a tentativa de impor, à sociedade, uma doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista, travestida de 'revolução cultural gramsciana', com toda a corte de invenções deletérias em matéria pedagógica como a educação de gênero". Para ele, essa educação atual estaria “destinada a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da religião, da cidadania, em soma, do patriotismo.” O filósofo também se posiciona contra as cotas raciais, considera-as um “paliativo que jogam para frente a exclusão”. Além disso, considera o golpe militar de 1964 como um evento a ser comemorado pelos brasileiros por ter livrado o país do comunismo.
Não bastasse a demonstração do poder que exercerá no próximo
governo, a bancada evangélica também comemorou nesta quinta o avanço no
Congresso de uma de suas principais bandeiras. A bancada conseguiu vencer a
obstrução montada pela oposição, fazendo com que o projeto Escola sem Partido
desse um importante passo na Câmara. O relatório do deputado Flavinho (PSC) foi
finalmente lido numa comissão especial, possibilitando que o texto já possa ser
votado nessa comissão a partir da próxima semana. Se conseguirem aprovar a
proposição ainda neste ano, será uma exibição de força antes mesmo de o novo
governo se instalar.
Um país que já produziu educadores como Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Anísio Teixeira, Maria Nilde Mascelllani, Florestan Fernandes, agora vê
sua educação entregue nas mãos de um professor colombiano afinado com as pretensões
norte-americanas de reduzirem o país a uma república de bananas. Eu disse
“república DE bananas” e não “das bananas”.
Caso fosse verdadeiramente fiel aos ensinos de Cristo e ao
legado dos Reformadores, a igreja evangélica estimularia o senso crítico e a
autonomia de pensamento, em vez de tentar cercear a liberdade de professores
que, apesar de não terem seu trabalho devidamente reconhecido, seguem movidos
pelo ideal de preparar as próximas gerações para um mundo mais justo, plural e
igualitário.
No fundo, os defensores da “lei da mordaça” acham perigoso
que as pessoas questionem o atual padrão de produção capitalista, de sociedade
de classes, de orientação sexual; acham arriscado demais que o povo saia às
ruas em manifestações que não sejam manipuladas pelas elites, que a população
LGBT defenda seus direitos, que as mulheres conquistem mais espaço, que o pobre
questione a exploração a que é submetido. Já alguns líderes evangélicos
preferem que seu povo seja mantido sob controle, engolindo a seco seus
ensinamentos, mesmo que estes se oponham frontalmente aos ensinos de Jesus.
Se não for para tomar partido pelas minorias, pelos
excluídos e oprimidos, prefiro uma IGREJA SEM PARTIDO, que respeite o ESTADO
LAICO e não queira impor seus valores e princípios a ninguém, sob pena de
perder sua relevância e credibilidade. Já que o lema do presidente eleito é
“Mais Brasil, menos Brasília”, que tal adotarmos o lema “Mais AMOR, menos
preconceito”?
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