Ao ser esbofeteado
por ordem do sumo sacerdote, Paulo declarou que dar um tapa em um prisioneiro
antes da condenação sob o devido processo legal seria uma violação da lei.[3]
Ora, se um simples tapa era contrário à lei, logo, impingir qualquer sofrimento
a um ser humano antes que seja devidamente julgado e condenado deve ser
considerado ilegal. E veja que não estou me referindo à violação dos direitos
humanos, mas a infringir a lei do próprio Deus. E convém salientar que a lei não se aplica
somente ao “natural da terra”, mas também ao “estrangeiro que peregrina entre
vós”, tendo em vista que há uma “mesma lei” para ambos.[4]
Nicodemos, o mestre
fariseu, argumentou ante os seus pares que julgar um indivíduo ou uma multidão
como inimigos do Estado sem que tenham sido condenados em um tribunal é
contrário à lei.[5]
Lançar mão do expediente da tortura para extrair informações de um suspeito é
presumir que o indivíduo seja culpado sem o devido processo judicial a que ele
tem direito.
De acordo com os
princípios bíblicos que regulam os procedimentos numa guerra, um inimigo
poderia ser morto em combate, mas se o conflito terminou, os prisioneiros não
devem ser tratados de forma desumana. Um exemplo disso pode ser encontrado
em 2 Reis 6:21-23:
“Quando o rei de Israel os viu, perguntou a Eliseu: "Devo
feri-los, meu pai? Devo feri-los? "Ele respondeu: "Não! Costumas
matar prisioneiros que capturas com a tua espada e o teu arco? Manda-lhes
servir comida e bebida e deixa que voltem ao seu senhor". Então
preparou-lhes um grande banquete e, terminando eles de comer e beber, mandou-os
de volta para o seu senhor. Assim, as tropas da Síria pararam de invadir o
território de Israel.”
Tal procedimento era
adotado como regra, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento. Tanto Salomão,
quanto Paulo vaticinam:
“Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver
sede, dá-lhe água para beber. Assim fazendo, amontoarás brasas vivas sobre a
cabeça dele, e o Senhor te recompensará.” Provérbios 25:21-22
“Portanto, se o teu inimigo
tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo
isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do
mal, mas vence o mal com o bem.” Romanos 12:20,21
“Amontoar brasas
sobre a sua cabeça” aponta para o fato de que tratar o inimigo com gentileza e
humanidade faria com que sua consciência se abrasasse, sensibilizando-o e
constrangendo-o pelo amor. É neste mesmo sentido que Davi pede em seu famoso
Salmo 23: “Prepara-me uma mesa na presença dos meus inimigos.” Engana-se quem
pensa que Davi estivesse rendido a um espírito vingativo, almejando tripudiar
sobre seus desafetos. Pelo contrário, o homem segundo o coração de Deus
desejava partilhar seu próprio pão com aqueles que o odiavam. Ele não pretendia
tortura-los ou coisa parecida, mas constrange-los com um gesto de amor e
solidariedade.
Algo parecido com o
que se vê no livro “Os Miseráveis” de Victor Hugo.[6]
Jean Valjean, o protagonista do célebre romance, é um homem que vive uma
situação de miserabilidade que leva-o ao crime. Depois de 19 anos de prisão
(cinco por roubar um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos que estavam
passando fome, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga) acaba sendo libertado.
Marginalizado por todos que encontra por sua condição de ex-presidiário, ele
acaba tendo que dormir nas ruas, mas é recebido na casa do benevolente Bispo
Myriel. Em vez de se mostrar grato, Valjean rouba-lhe os talheres de prata durante a noite
e foge. Ao ser preso, é levado pelos policiais à presença do bispo para
acareação. Em vez de confirmar o roubo, o bispo salva-o alegando que a prata encontrada
com ele foi um presente e que ele havia se esquecido de dois castiçais de prata
por causa de sua pressa. Após esta demonstração de bondade, o bispo recomenda
que ele use a prata para tornar-se um homem honesto. Transformado, Jean Valjean
reaparece no outro extremo da França, tornando-se em um próspero empresário,
dono de uma fábrica, e um homem respeitado pela sua bondade e caridade. Eis um
exemplo de um inimigo em cuja cabeça se amontoou brasas que consumiram o velho
homem, fazendo-o renascer como uma renovada fênix.
[1]
Gênesis 49.5-7; Provérbios 12.10
[2]
Gênesis 9.6; Êxodo 6:.9; Salmos 71.4; 74.20
[3]
Atos 23.3
[4] Êxodo
12.49
[5] João
7.47-53
[6] HUGO,
Victor, Os miseráveis (Volume I: Fantine/ Livro sétimo: O Processo de
Champmathieu/ XI. Champmathieu cada vez mais admirado). Lisboa: Editorial
Minerva, 1962.
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