Por Hermes C. Fernandes
De vez em quando, alguns leem meus artigos ou ouvem meus
sermões e exclamam: Isso é utopia! Não posso discordar deles. De fato, trata-se
de uma utopia. Eu diria até, de uma utopia reinista, isto é, referente ao reino
de amor proclamado por Jesus. O que seria uma utopia, afinal? Etimologicamente,
"utopia" vem do grego e significa "não-lugar". Trata-se,
por tanto, de um lugar inexistente, ou que existe apenas em nossa imaginação.
Um lugar que não é no agora, mas que pode ser construído no futuro. Isso parece
vir de encontro à definição dada por Victor Hugo: "Não há nada como o
sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã."
Encontramos ainda duas definições: Utopia é o estado ideal
de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos. Ou ainda: Utopia é
qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis
justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com
o bem-estar da coletividade.
Apesar dessas definições, tanto para o senso comum, como
para muitos idealistas, a utopia é um alvo inalcançável. Fernando Birri diz que
"a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta
dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei."
Ora, se esta definição estiver correta, e a utopia for
inalcançável, então, de que serviria a utopia? De acordo com Eduardo Galeano, a
utopia serve "para que eu não deixe de caminhar." Em outras palavras,
não fossem as utopias, nós simplesmente estacionaríamos.
Foi a utopia que moveu Martin Luther King a lutar pelos
direitos civis dos negros norte-americanos. Foi inspirado nela que ele pregou
seu mais notório sermão "eu tenho um sonho."
Seria o reino de Deus uma utopia? De certa maneira, sim. Ele
se insinua no horizonte da história, conclamando-nos a marchar em sua direção.
Mas quanto mais avançamos, mas a utopia para distanciar-se. Entretanto, se
olharmos pelo retrovisor, veremos o quanto já avançamos como sociedade. A
escravidão como instituição ficou para trás. As mulheres estão alcançando
patamares antes impossíveis. A ciência dispensa comentários. E em tudo, vemos o
reino de Deus. Deveríamos chegar à mesma conclusão a que chegou o rei
Nabucodonosor: "O céu reina!"
O reino de Deus não é uma entidade religiosa. Aliás, nenhuma
igreja tem seu monopólio. Nenhuma teologia dispõe do copyright do evangelho do
reino. Ele está para além das fronteiras religiosas. Por isso, quando alguém
insinua que sou comprometido com alguma ideologia, costumo responder que não
sou comunista, socialista ou anarquista. Sou reinista. A utopia que me move é a
utopia reinista.
Parafraseando Luther King, sonho com o dia em que viveremos
em um mundo mais justo, onde ninguém precisará roubar para comer, nem invadir
propriedades para ter onde morar, nem apelar a certos expedientes para se
defender da violência que hoje impera em nossos grandes centros urbanos.
Sonho com uma sociedade que aprenda a repartir, não de
maneira compulsória, cumprindo uma obrigação, mas movida pela consciência de
que tudo o temos é para o bem de todos e não apenas para o nosso desfrute.
Sonho com uma sociedade que saiba conviver com os
diferentes, e que celebre a diversidade, em vez de almejar o estabelecimento de
padrões morais e comportamentais uniformes e inflexíveis, tal como faziam os
fariseus que exigiam que outros carregassem um fardo que eles não moviam um
dedo para carregar.
Sonho com uma sociedade em que ninguém seja julgado pela cor
de sua pele, seu credo, seu CEP, seu sotaque, sua nacionalidade, sua ideologia,
seu gênero, seu estado civil ou sua orientação sexual.
Sonho com uma sociedade em que os indivíduos possam ser
autênticos e não meras engrenagens de um sistema que só vise controle e
lucro.
Sonho com uma sociedade que terá deixado para trás a
corrupção como um capítulo lamentável e vergonhoso de sua história, assim como
fizemos com o nazismo.
Infelizmente, a história segue um ritmo pendular. Ora
avançamos dois passos, ora retrocedemos outros dois. Parece que não aprendemos
com os erros do passado, sentenciando-nos a nós mesmos a repeti-los.
Recapitulamos pesadelos, enquanto engavetamos sonhos.
Hora de sermos o despertador que interromperá o sono
letárgico no qual nossa sociedade está mergulhada. Mesmo que para isso tenhamos
que perturbar a todos, causar certa desordem, ferir escrúpulos e interesses. No
fim, os que hoje se sentem importunados, hão de nos agradecer por compreender
nosso papel de acordá-los, devolvendo-os à realidade e empurrando-os na direção
do horizonte utópico.
Sou reinista. E você?
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