quinta-feira, setembro 01, 2016

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O impeachment do Rei Davi e o golpe parlamentar brasileiro



Por Hermes C. Fernandes

Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o país segue dividido, mergulhado numa crise que perpassa e transcende questões econômicas e políticas. Trata-se, sobretudo, de uma crise ética. Independentemente das paixões ideológicas ou de ser favorável ou não ao que está sendo chamado mundo afora de "golpe parlamentar", ninguém deve ser ingênuo a ponto de acreditar que os 61 senadores que lançaram a pá de cal em treze anos de governo petista foram movidos pelos mais republicanos ideais. Tudo segue como dantes no quartel de Abrantes... Aos poucos, a sociedade se dará conta de que a lava-jato não passou de uma ducha na lataria de nossa jovem democracia, precocemente envelhecida, carcomida pela ferrugem da corrupção.

Espero, sinceramente, que todos tenhamos aprendido alguma lição deste lamentável episódio (lamentável sob todos os aspectos!), dentre as quais, observar melhor os candidatos a vice e as alianças feitas em nome da governabilidade. Água e óleo não se misturam! Odres velhos não resistem ao frescor de um vinho novo, nem se remenda tecido velho em roupa nova.

No texto que se segue, aponto o que considero uma importantíssima lição, tanto para quem pretende governar, quanto para quem pretende eleger seus próximos governantes. Tente reconhecer alguns dos protagonistas da atual crise política brasileira nos personagens abaixo.

As crises as quais atravessamos servem a um propósito: Revelar-nos quem é quem entre os que nos acompanham na jornada da vida. Não fossem elas, talvez ficássemos enganados por todo o tempo, cercado de gente falsa, com suas agendas secretas. Além do mais, jamais descobriríamos o valor e a lealdade de tantos outros com os quais convivemos.

Neste artigo, vamos descobrir os 7 tipos de pessoas com as quais nos deparamos num momento de crise, tendo por base um dos episódios mais complexos vividos por Davi.

Sabendo que seu filho Absalão se rebelara e conspirara contra o seu trono, Davi resolveu fugir. Aqueles foram, sem dúvida, os momentos mais tristes de seu reinado. Enquanto passava com sua comitiva, vários tipos de reação foram despertados, e que revelaram quem eram, de fato, alguns dos súditos de Davi. Muitos, vendo-o chorar, solidarizavam-se com a sua dor. O texto diz que “toda a terra chorava em alta voz, enquanto todo o povo passava” (2 Sm.15:23a).

Itai, o gaiato fiel

Uma das primeiras reações foi a de um estrangeiro chamado Itai. Vendo-o segui-lo, Davi lhe disse: “Por que irias tu também conosco? Volta, e fica-te com o rei Absalão. Tu és estrangeiro e exilado; torna a teu lugar. Ontem vieste, e te levaria eu hoje conosco a vaguear, quando eu mesmo não sei para onde vou? Volta, e leva contigo a teus irmãos. A misericórdia e a fidelidade sejam contigo” (vv.19-20).

Davi não estava preocupado em reunir um contingente numeroso para combater a rebelião do seu filho. Pelo contrário, sua preocupação era com o bem-estar dos seus súditos. Itai acabara de chegar àquelas terras. Era como se Davi estivesse dizendo: “Sai disso, Itai. Você pegou um bonde andando, entrou de gaiato. Não precisa tomar partido ao meu lado. Mal nos conhecemos. Pense no bem da sua família, e posicione-se ao lado do novo rei.”

Não creio que Davi estivesse fazendo média. Sua preocupação era sincera. O que ele não esperava era que em tão pouco tempo de convívio, já havia conquistado a confiança e a lealdade de Itai. Veja a resposta que recebeu dele: “Tão certo como vive o Senhor, e como vive o rei meu senhor, no lugar em que estiver o rei meu senhor, seja para morte seja para vida, aí certamente estará também o teu servidor” (v.21).

Quem disse que fidelidade depende do tempo de convívio? Às vezes, é de onde a gente menos espera que Deus levanta as pessoas que nos são mais leais. E de certa maneira, isso ajuda a compensar a infidelidade daqueles com quem mais contávamos.

Zadoque e o zelo pelo que está além de nós

Zadoque, que era o Sumo sacerdote também estava entre os que seguiam a Davi em sua fuga. Com ele foram também todos os levitas. O santuário ficou desguarnecido. Até aí, tudo bem. Davi não se incomodava em tê-los em sua companhia. Mas algo o incomodou a ponto de pedir que Zadoque retornasse a Jerusalém.
“Então disse o rei a Zadoque: Torna a levar a arca de Deus à cidade. Se eu achar graça aos olhos do Senhor, ele me fará voltar para lá, e me deixará ver a arca e a sua habitação. Mas se ele disser: Não tenho prazer em ti, então estou pronto, faça de mim como parecer bem aos seus olhos” (vv.25-26).
Davi se lembrou do dia em que a Arca da Aliança foi introduzida na cidade, e seu coração se partiu. - Não é justo levá-la dali. E toda aquela dança? E a alegria da presença do Senhor representada pela Arca? Por que privar Jerusalém de sua glória? Levem-na de volta! Jerusalém é o seu lugar. Quem sabe um dia Deus me restitua o trono e lá a reencontre?

Somente quem tem uma consciência iluminada pelo Espírito pensaria assim: Rejeitaram a mim, mas não a Deus. Então, que fiquem com a Arca do Senhor! Eu não tenho o monopólio da graça de Deus. A mensagem é mais importante do que eu. A fidelidade ao Senhor está acima da lealdade a mim.

Aitofel, o instigador

O texto prossegue:
“Mas Davi seguiu pela encosta das Oliveiras, subindo e chorando; tinha a cabeça coberta, e caminhava com os pés descalços. Todo o povo que ia com ele tinha a cabeça coberta, e subia chorando sem cessar. Então fizeram saber a Davi, dizendo: Aitofel está entre os que conspiram com Absalão. Pelo que disse Davi: Ó Senhor, torna o conselho de Aitofel em loucura!” (vv.30-31).
Absalão era apenas uma massa de manobra nas mãos de Aitofel. Foi ele quem o incentivou a rebelar-se contra seu próprio pai.

Há pessoas que se introduzem no ministério, nas igrejas, na política ou em outros ambientes como verdadeiras representantes do inferno, que com palavras bajuladoras cativam a confiança dos néscios, e depois, os fazem insurgir contra sua liderança. Aitofel era um jogador de xadrez, estrategista, que escolhia bem as palavras. Absalão era só mais uma peça em seu tabuleiro. Toda crise tem seu Aitofel, o que trabalha por trás dos bastidores, manipulando as coisas a seu favor.

Husai, confiança à toda prova

A caravana de Davi prosseguia...
“Chegando Davi ao cume, onde se costumava adorar a Deus, Husai, o arquita, veio encontrar-se com ele, com o manto rasgado e terra sobre a cabeça. Disse-lhe Davi: Se fores comigo, ser-me-ás pesado. Porém se voltares para a cidade, e disseres a Absalão: Eu serei, ó rei, teu servo, como fui antes servo de teu pai assim agora serei teu servo, dissipar-me-ás então o conselho de Aitofel” (v.34).
Que voto de confiança Davi depositou em Husai! – Você será os meus olhos e ouvidos em Jerusalém! E mais: Você será minha boca para dissipar os maus conselhos que Aitofel tem dado ao meu filho Absalão. E se Husai resolvesse trocar de lado? Era um risco que Davi teria que correr, para tentar salvar seu filho daquela rebelião estúpida. Que bom que há sempre pessoas com as quais podemos contar em qualquer situação, cuja lealdade está acima das contingências.

O texto diz: “Assim Husai, AMIGO DE DAVI, veio para a cidade, e Absalão entrou em Jerusalém”(37). De fato, não fosse a atuação de Husai ao desbaratar um conselho de Aitofel, aquela conspiração teria tomado outros rumos.

Há que se tomar cuidado com os oportunistas de plantão. Há pessoas que sabem como tirar proveito de uma crise. Este era o caso de Ziba, que apareceu na hora certa, no lugar certo, mas a com a motivação errada. Ziba era servo de Saul. Quando Davi, por amor de Jônatas, resolveu que acolheria em seu palácio a Mefibosete, o neto deficiente de Saul, colocou-o aos cuidados de Ziba. Naquele momento, Ziba aceitou passivamente (confira em 2 Sm.9:1-11). Mas agora chegara a oportunidade de Ziba tirar algum proveito da situação, e revertê-la em seu favor. Ele se cansara de administrar o que pertencia a seu senhor. Era hora de assumir o controle e ser dono do próprio nariz. Chega de submissão! Na mente de Ziba, chegara a hora de deixar de ser cauda, para ser cabeça.
“Tendo Davi passado um pouco além do cume, ali estava Ziba, o moço de Mefibosete, esperando para encontrar-se com ele, com um par de jumentos albardados, e sobre eles duzentos pães, cem cachos de passas, e cem de frutas de verão e um odre de vinho. Perguntou o rei a Ziba: Que pretendes com isto? Respondeu Ziba: Os jumentos são para a casa do rei. Para se montarem neles, e o pão e as frutas de verão para os moços comerem, e o vinho para os cansados no deserto beberem. Então perguntou o rei: Onde está o filho de teu senhor? Respondeu-lhe Ziba: Ficou em Jerusalém, porque pensa: Hoje a casa de Israel me restituirá o reino do meu pai. Então disse o rei a Ziba: Tudo o que pertencia a Mefibosete é teu. Disse Ziba: Inclino-me humildemente, e ache mercê aos teus olhos, ó rei meu senhor” (16:1-4).
Ora, aquilo não passava de uma calúnia. Mefibosete era um moço aleijado, filho de Jônatas, e portanto, herdeiro natural do trono deixado por Saul. Mas ele jamais almejou ocupá-lo. Ele sequer se sentia digno de comer à mesa do rei ao lado dos seus filhos! Ziba conseguiu o que queria. Numa manobra extraiu dos lábios de Davi o que queria ouvir. Agora tudo o que pertencia a Mefibosete passou a ser dele. É claro que Davi se precipitou. Mas ele não tinha tempo de ouvir a outra parte. Sua cabeça estava a mil. E a seu ver, não era justo que Mefibosete o abandonasse justamente naquela hora. Porém, a história não termina aqui. Mais adiante veremos a conclusão.

Um dia de fúria

A caravana prosseguiu em sua jornada, deixando para trás a cidade amada de Jerusalém.
“Tendo o rei Davi chegado a Baurim, dali saiu um homem da linhagem da casa de Saul, cujo nome era Simei, filho de Gera. E, saindo, ia amaldiçoando. Atirava pedras contra Davi e todos os seus servos (...) Amaldiçoando-o, dizia Simei: Sai, sai, homem de sangue, homem de Belial! O Senhor te deu agora a paga de todo o sangue da casa de Saul, em cujo lugar tens reinado. O Senhor entregou o reino na mão de Absalão, teu filho. Tu estás na desgraça, porque és homem de sangue” (vv.5-8).
Se há gente que se aproveita pra tirar vantagem, também há os que aproveitam pra colocar pra fora toda a sua raiva e descontentamento. Surpreendente foi a reação de Davi neste episódio. Um dos seus resolveu comprar a briga e pediu a Davi permissão para arrancar a cabeça de Simei. Veja a resposta que recebeu:
“Então disse Davi a Abisai, e a todos os seus servos: Meu filho, que saiu das minhas entranhas, procura tirar-me a vida. Quanto mais ainda esse benjamita? Deixai-o, que amaldiçoe, pois o Senhor lhe ordenou. Porventura o Senhor olhará para a minha aflição, e me pagará com bem a maldição deste dia” (vv.11-12).
Aquele dia era para Davi o que Paulo chamou de “o dia mal”. Há ‘maldições’ que duram apenas um dia, e que são permitidas por Deus, mas que em longo prazo resultam em bênçãos maiores, acima de qualquer comparação. E aquele foi um dia longo, muito longo. O texto sugere que Simei passou todo o tempo acompanhando a caravana de Davi, amaldiçoando-o e apedrejando-o. Bastava um sinal por parte do rei, e sua cabeça voaria longe. Mas o rei preferiu sofrer calado.

O Caminho de volta

Depois que Absalão foi derrotado, Davi fez o caminho inverso, e retornando a Jerusalém, reassumiu o trono. Enquanto caminhava em direção a Jerusalém, o povo saiu-lhe novamente ao encontro. Só que agora a situação era bem diferente. Em vez de tristeza, havia alegria no ar, ainda que o coração de Davi estivesse em profundo luto pela morte de seu filho amado. Era chegada a hora do acerto de contas. Aquele mesmo Simei que acompanhou a caravana de Davi, apedrejando-o e amaldiçoando-o, agora saiu novamente ao seu encontro.
“Apressou-se Simei, filho de Gera, benjamita, que era de Baurim, e desceu com os homens de Judá a encontrar-se com o rei Davi. Com ele mil homens de Benjamim, como também Ziba, servo da casa de Saul, seus quinze filhos e seus vinte servos com ele. Desceram apressadamente ao Jordão onde estava o rei, e o atravessaram para fazer passar a casa do rei, e para fazer o que aprouvesse a ele” (2 Sm.19:16-18a).
Por que será que estavam com tanta pressa? Por que se misturaram aos homens de Judá? Certamente, tanto Simei quanto Ziba estavam com o coração na mão. Seus erros teriam que ser consertados, antes que fosse tarde demais. Davi voltara ao poder!

Simei tomou a frente de todos, prostrou-se diante do rei, e lhe disse: “Não me imputes, senhor, a minha culpa, e não te lembres do que tão perversamente fez teu servo, no dia em que o rei meu senhor saiu de Jerusalém. Não o conserves, ó rei, no coração. Pois eu, teu servo, deveras confesso que pequei, mas hoje SOU O PRIMEIRO, de toda a casa de José, a descer ao encontro do rei meu senhor” (vv.19-20).

Isso que eu chamo de diplomacia! A mais diplomática hipocrisia. Mesmo tendo razão para vingar-se, Davi preferiu poupar a vida de Simei. Porém, lá na frente, em seu leito de morte, ao aconselhar a seu sucessor Salomão, Davi recomendou: “E lembra-te, contigo está Simei, filho de Gera, filho de Benjamim, de Baurim, que me maldisse com maldição atroz, no dia em que eu ia a Maanaim. Quando ele saiu a encontrar-se comigo junto ao Jordão, eu pelo Senhor lhe jurei, dizendo que não mataria à espada. Mas agora não o tenha por inocente. És homem sábio, e bem saberás o que lhe há de fazer” (1 Reis 2:8-9a). Embora tivesse sofrido calado todas as calúnias e maldições proferidas pelos lábios cruéis de Simei, Davi quis poupar seu filho Salomão. – Cuidado com Simei! Ele não merece sua confiança! Eu o poupei, mas ele não te poupará, e se tiver oportunidade, tentará destruir o seu reino.

O que fez Salomão? Mandou chamá-lo e ordenou: “Edifica-te uma casa em Jerusalém, e habita aí, e daí não saias, nem para uma nem para outra parte. No dia em que saíres e passares o Vale do Cedrom, saibas que certamente serás morte; o teu sangue será sobre a tua cabeça. Simei disse ao rei: Boa é essa palavra. Como tenho dito o rei meu Senhor, assim fará o teu servo. E Simei habitou em Jerusalém muitos dias” (1 Reis 2:36-38). Simei era como uma maçã podre, que poderia colocar todo um cesto a perder. Era importante que Salomão o mantivesse sempre à vista, e não permitisse que sua influência nefasta se estendesse para além dos muros de Jerusalém.

Há pessoas que imaginam ter escapado do juízo de Deus, por terem sido poupados num determinado episódio. É claro que Deus perdoa, mas isso não significa que Ele nos isente de colher os frutos de nossa rebelião. Tudo o que homem semear, isso também ceifará. Não crer nisso é o mesmo que zombar de Deus.

Simei escapou da morte no dia em que Davi retomou o trono. Mas teve sua liberdade restringida aos limites de Jerusalém. Três anos se passaram, e um dia Simei deixou os limites da cidade em busca de dois de seus servos que haviam fugido para Gate. Quando Salomão soube isso, mandou chamá-lo e lhe disse:
“Não te conjurei pelo Senhor e não te protestei, dizendo: No dia em que saíres para uma outra parte, sabe de certo que serás morto? E me disseste: Boa é essa palavra que ouvi. Por que, pois, não guardaste o juramento do Senhor, nem a ordem que te dei? Disse mais o rei a Simei: Bem sabes toda a maldade que o teu coração reconhece que fizeste a Davi, meu pai. Agora o Senhor fará recair a tua maldade sobre a tua cabeça” (vv.42-43).
Quantos ministérios são frutos de divisões, de mentiras, de calúnias? Por conta disso, sua expansão está comprometida, até que reconheçam seu erro e se arrependam. Deus jamais endossaria algo começado tendo mentiras e rebelião como base. Ele até dá corda, como fez com Simei, mas um dia, a prestação de contas virá. E desse dia, ninguém será poupado.


Teremos que prestar contas de tudo o que dissemos, de cada pedra que atiramos, de cada atitude que tomamos, de cada injustiça que cometemos.

Voltemos ao texto que narra o retorno de Davi a Jerusalém. De repente, quem sai ao seu encontro? Mefibosete, neto de Saul. Aquele que Ziba acusara de estar conspirando contra Davi para ocupar seu trono. O texto diz que sua aparência era de alguém em grande abatimento: “Não tinha cuidado dos pés, nem feito a barba, nem lavado as vestes desde o dia em que o rei saíra até o dia em que voltou em paz. Chegando ele a Jerusalém a encontrar-se com o rei, este lhe perguntou: Por que não foste comigo, Mefibosete?” (2 Sm.19:24-25). Percebe-se que o rei ainda estava triste pela ausência de Mefibosete durante o tempo de maior crise do seu reino. Será que ele realmente havia conspirado contra Davi? Será que Ziba havia dito a verdade? Estaria ele esperando que o trono de Saul lhe fosse devolvido? “Respondeu ele: Ó rei meu senhor, o meu servo me enganou. O teu servo dizia: Albardarei um jumento, e montarei nele, e irei com o rei; pois o teu servo é coxo. Demais disto ele falsamente acusou o teu servo diante do rei meu senhor. Porém o rei meu senhor é como um anjo de Deus; faze, pois, o que bem te parecer. Toda a casa de meu pai não era senão de homens dignos de morte diante do rei meu senhor, mas puseste a teu servo entre os que comem à tua mesa. Portanto, que direito tenho de clamar ao rei?” (vv.26-28).

Eis aqui alguém que de fato entendeu o significado da palavra “Graça”. Embora Mefibosete pudesse representar uma ameaça ao trono de Davi, dada a sua condição de descendente direto de Saul, Davi o acolheu em seu palácio. E isso por conta da aliança que Davi fizera com o pai de Mefibosete, Jônatas. Foi por amor a ele, que Davi resolveu correr todos os riscos, trazendo Mefibosete para debaixo do seu teto. Ele agora perdera tudo. Por causa de uma calúnia, Davi transferira para Ziba todos os seus bens. Mas mesmo assim, Mefibosete não se vê no direito de reclamar. Para ele, já era um privilégio sentar-se entre os príncipes, mesmo sendo neto do maior inimigo de Davi. Bastava-lhe a satisfação de reencontrar o rei em seu retorno a Jerusalém. Com a cabeça mais fria, sem estar debaixo da mesma pressão que estava naquele dia, Davi responde: “Por que falas ainda de teus negócios? Já decidi: Tu e Ziba repartireis as terras” (v.29). Foi esta a maneira que Davi arrumou para tentar consertar as coisas. Metade para um, metade pro outro. Estando bom para ambas as partes... De repente, Mefibosete o interrompe e diz: “Que ele fique com tudo, uma vez que o rei meu senhor já voltou em paz a sua casa” (v.30).

Ainda existem homens como Mefibosete entre nós. São poucos. Na verdade, são raríssimos. Mas são frutos de uma consciência tomada pela Graça. Homens que não fazem questão de nada, cujo coração está inteiramente no Rei, e não nas benesses que possam receber.

Barzilai, o prazer de servir por servir 

Embora já tenhamos falado de sete homens que se revelaram durante o tempo de crise no reino de Davi, gostaria de fazer um acréscimo, um oitavo tipo representado por Barzilai. O texto diz:
“Também Barzilai, o gileadita, desceu de Rogelim, e passou com o rei o Jordão, para acompanhá-lo ao outro lado do rio. Ora, Barzilai era muito velho, da idade de oitenta anos. Ele tinha sustentado o rei, quando este estava em Maanaim, pois era homem muito rico. Disse o rei a Barzilai: Passa tu comigo e eu te sustentarei em Jerusalém. Porém Barzilai disse ao rei: Quantos serão os dias dos anos da minha vida, para que suba com o rei a Jerusalém? Da idade de oitenta anos sou eu hoje. Poderia eu discernir entre o bom e o mau? Poderia o teu servo ter gosto no que come e no que bebe? Poderia eu ainda ouvir a voz dos cantores e das cantoras? Por que seria o teu servo ainda pesado ao rei meu senhor? Com o rei irá teu servo ainda um pouco mais além do Jordão. Por que o rei me daria tal recompensa? Deixa voltar o teu servo, para que eu morra na minha cidade junto à sepultura de meu pai e de minha mãe. Mas aqui está o teu servo Quimã. Passe ele com o rei meu senhor, e faze-lhe o que bem parecer aos teus olhos” (2 Sm.19:32-37). 
Mesmo avançado em idade, Barzilai poderia ter-se aproveitado da situação para desfrutar a reta final de sua vida em grande estilo, transitando pelos corredores do poder, comendo à mesa com o rei. Mas em vez disso, preferiu ceder seu lugar a outro. Sua postura nos remete à recomendação de Paulo: "Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros" (Rm.12:10).

Barzilai representa aqueles que servem pelo prazer de servir, sem esperar nada em troca. Aqueles que, como Jesus ensinou, não deixam que a mão esquerda saiba o que fez a direita. Tudo o que fazem, fazem-no por amor, e amor totalmente despretensioso, sem interesses ocultos. Davi ficou profundamente sensibilizado com a atitude de Barzilai. De maneira que respondeu: “Quimã passará comigo, e eu lhe farei como bem parecer aos teus olhos. E tudo o que me pedires te farei. Havendo todo o povo passado o Jordão, e passando também o rei, beijou o rei a Barzilai, e o abençoou, e Barzilai voltou para o seu lugar. Dali passou o rei a Gilgal, e Quimã passou com ele” (vv.38-40a). Davi jamais se esqueceria do bem que aquele ancião lhe fizera no momento mais crítico de sua vida (2 Sm.17:27-29). Uma vez que ele se recusava a ser recompensado, transferindo esta honra a outro, Davi prontamente o atendeu. E não apenas acolheu a Quimã, mas tratou de estender o benefício a todos os filhos de Barzilai. Em seu leito de morte, enquanto se despedia de Salomão, Davi recomendou: “Porém com os filhos de Barzilai, o gileadita, usarás de benevolência e estarão entre os que comem à tua mesa, porque assim se houveram comigo, quando eu fugia por causa de teu irmão Absalão” (1 Reis 2:7). Mesmo que Berzilai não fizesse questão de nada, Davi soube preservar sua gratidão. Berzilai era um homem voltado para o futuro. Não propriamente o seu futuro, uma vez que estava velho e prestes a partir, mas o futuro de sua descendência. Recusar-se a receber aquela honra foi fator decisivo para que sua descendência fosse preservada no futuro.

Não devemos ser imediatistas, pensando apenas em nos aproveitarmos da situação atual sem considerar quem vai pagar esta conta mais tarde: nossos filhos e netos. Os heróis de hoje poderão ser os vilões de amanhã e vice-versa. Portanto, nada melhor do que nos manter fiéis à nossa consciência, recusando-nos a sacrificar o futuro no altar da conveniência. 

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