Por Hermes C. Fernandes
Novos tempos. Novas demandas. Questões jamais tratadas anteriormente surgem diante do olhar atônito de uma geração. Bons tempos aqueles em que achávamos ter todas as respostas, quando nem sequer desconfiávamos haver tantas outras perguntas prestes a desbancar nossa presunção. Ao conjunto de respostas prontas chamávamos “moral”. Se uma situação nos fugisse ao controle, bastava recorrer ao manual, fosse ele religioso, ou baseado nas tradições ou mesmo no acúmulo de conhecimentos adquiridos ao longo de gerações. Por sorte, nós, cristãos, tínhamos sempre às mãos uma Bíblia a tiracolo. Alguns superdotados, nem sequer se davam o trabalho de abri-la; para qualquer questão, tinham livro, capítulo e versículo na ponta da língua, sendo capazes de dispará-los feito uma rajada de metralhadora sempre que necessário. Quiçá nem tenhamos percebido que se cumpria assim a profecia de que a palavra do Senhor se nos tornara "preceito sobre preceito, regra sobre regra, um pouco aqui, um pouco ali", para que, caindo, fôssemos quebrantados, enlaçados e presos (Isaías 28:13). E foi justamente o que nos aconteceu. O que deveria nos restaurar, nos quebrantou. O que deveria nos libertar, nos enlaçou. Não que a Palavra nos tenha pregado uma peça, ou tenha alterado a sua própria natureza. Foi a nossa presunção que alterou o efeito que ela deveria fazer em nós. A luz que deveria ser mirada nos pés, a fim de guiar nossos passos, miramos nos olhos e ela nos cegou.
De repente, percebemo-nos estrangulados por tantas regras, algumas sem qualquer utilidade para o momento. Sentindo-nos claustrofóbicos, anelamos desesperadamente por ar puro, ou ao menos, por um lugar menos estreito para se viver. Daquilo que usamos como manual de sobrevivência, tomamos os troncos com os quais construímos nossa casa da árvore à qual chamamos de moral. Lá de cima, afastados do chão, sentimo-nos seguros, fora do alcance das feras e demais ameaças que circulam livremente na selva. A cada excursão nossa pelo mundo exterior, trazíamos novas quinquilharias, até que nossa casinha da árvore não comportasse mais. Enquanto pudemos, aproveitamos os espessos troncos da árvore para estender ao máximo nossa casinha. Crescemos para cima, para os lados. Fizemos andares e puxadinhos. A casinha passou a ter vários cômodos a que chamamos de bons costumes. Mas chegamos ao ponto limite. A casinha começou a pesar. A árvore, por mais frondosa que pareça, não oferece estrutura para suportar o peso de nossa religiosidade.
O fato inequívoco é que os tempos mudaram. O mundo cresceu e não cabe mais nos estreitos cômodos de nossa mentalidade. Urge repensarmos a vida, a existência, as relações, a espiritualidade e a própria ciência, não a partir da régua da moral, mas a partir do compasso da ética.
A palavra ética tem sua origem no vocábulo grego “ethos” que significa morada. Para alguns, ética e moral soam como sinônimos. Apesar de algum parentesco, elas são distintas. A moral se fundamenta na obediência a normas, costumes, leis, mandamentos impostos por uma classe sobre outras, fazendo-se prevalecer através de recompensas e sanções. O que o indivíduo faz pelos outros, geralmente é pensando em si mesmo, em ser aceito no grupo, em ser recompensado ou evitar ser punido. Já a ética toma o caminho inverso. O que o indivíduo faz a si mesmo e ao seu semelhante é pensando no bem comum. Caso tenha que abrir mão de algo, por exemplo, mesmo que lhe seja lícito, terá por objetivo o bem de todos, não apenas o seu. A ética se fundamenta na consciência iluminada pelo amor. Usando de conceitos estritamente cristãos, creio firmemente que a diferença entre moral e ética seja análoga à diferença entre viver sob a Lei e viver sob a Graça.
Há uma passagem no Antigo Testamento que poderá nos auxiliar na compreensão da necessidade que temos de construir um novo “ethos”, uma casa comum capaz de abrigar a todos. Neste caso, a graça é o amplo terreno que nos tem sido oferecido por Deus como ambiente propício ao convívio de todos os seres. Recorramos, portanto, ao texto em questão.
“Disseram os filhos dos profetas a Eliseu: O lugar em que nos encontramos contigo é estreito demais para nós. Vamos até o Jordão, e tomemos de lá, cada um de nós, uma viga, e construamos ali um lugar, para habitarmos.” 2 Reis 6:1-2a
Como comportar tanta gente num lugar tão pequeno? Este é o
dilema que todo pastor gostaria de ter. Mas precisamos ler além da letra.
Aqueles homens tinham o privilégio de usufruírem da companhia de um dos maiores
profetas de todos os tempos. Porém, isso não lhes bastava. Semelhantemente,
temos a garantia da presença de Jesus conosco até a consumação dos séculos,
porém, nossa alma almeja lugares arejados. Nem mesmo Deus se acomoda por muito
tempo em espaços pequenos demais. Por isso mesmo, a condição para que Ele venha
fixar residência em nós é que nos arrependamos. A palavra grega “metanoia” traduzida como arrependimento
tem bem mais a ver com ampliação da consciência do que propriamente com sentir
pesar por haver pecado. Poderíamos dizer que o Deus revelado em Jesus é
claustrofóbico, pois detesta estar confinado em ambientes que se neguem a se expandir.
Enquanto o moralismo se alimenta da paranoia, a ética nos propõe uma metanoia. A paranoia afunila a mente, tornando-a refém do medo infundado, do preconceito idiotizante, e de tudo o que apequena o ser. Já metanoia provoca uma revolução da maneira como lidamos com as demandas da vida, conquanto nos amplia significativamente a visão.
Cada um dos filhos dos profetas se dispôs a sair em buscar
de material para construir um lugar mais amplo. Eliseu não se opôs. Pelo
contrário, disse: Ide! Porém, um deles rogou: “Serve-te de ires com os teus servos. E ele
respondeu: Eu irei. E foi com eles” (2 Reis 6:2b-4a).
Que cristão em sã
consciência aceitaria entrar numa empreitada como esta sem a presença de seu
mestre? Estamos todos engajados na
construção de um novo ethos, em que
não caibam apenas os que professam nossa fé, mas também todos os homens, de
todas as raças, culturas e nações.
Não basta trocar os
móveis de lugar como no Feng Shui,
para facilitar o fluxo de boas energias ou mesmo o trânsito entre os moradores
da casa. É isso que a moral se propõe a fazer. Precisamos de algo novo, mais amplo, espaçoso, arejado. Onde encontrar material para construir este
novo ethos? A resposta está lá fora,
nas margens do Jordão. É lá fora, onde a vida acontece, onde surgem os dilemas
que nos inquietam, que encontraremos o material necessário para construção
deste novo ethos.
Lidamos hoje com
situações que gerações anteriores jamais sonharam ter que enfrentar. Portanto,
não há respostas prontas. Não adianta abrir a Bíblia aleatoriamente, pinçando versículos de olhos fechados. Como cristão, creio
que os ensinamentos de Jesus contenham respostas para as mais variadas
situações, porém, algumas delas demandam reflexão, contextualização. Ele mesmo
disse que tinha muito que nos falar, mas que não estávamos prontos. Todavia, o
Espírito que nos seria enviado, haveria de nos conduzir a toda verdade (João 16:12-13). É
o Espirito que nos faz lembrar todas as palavras ditas por Jesus, e nos mostra
como aplicá-las nos diversos campos da vida. Não meramente como regras, mas como princípios. Não basta nos ater à letra. Devemos recorrer ao Espírito por trás da letra. Sem jamais perder de vista que "a letra mata, mas o Espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6).
O texto diz que “tendo eles chegado ao Jordão, cortaram
madeira. Enquanto um deles estava derrubando um tronco, o ferro do machado caiu
na água. Clamou ele: Ai! Meu senhor! Era emprestado”( 2 Reis 6:4b-5).
Cada qual tem sua contribuição a dar dentro do escopo de sua atuação, e de acordo com os recursos de que disponibiliza. Ninguém vai de mão abanando. Porém, vale salientar que um dia teremos que prestar contas
àquele que nos confiou tais talentos e aptidões. Nosso “machado” é emprestado.
A melhor maneira de preservá-lo não é mantendo-o guardado num almoxarifado. Usar nossas ferramentas é expor-se ao risco de perdê-las ou quebrá-las. Não há lugar mais
seguro para um navio do que no porto. Porém, ancorado, ele não cumpre a
razão de sua existência. Se quiser alcançar outros portos, terá que enfrentar a
braveza dos mares, arriscando-se ao naufrágio ou a deriva.
Aquele homem estava
aflito. Por um descuido, o ferro do machado de soltou e caiu no rio. Repare em
algo: não foi o machado que caiu, mas apenas o ferro. O cabo se manteve firme
em sua mão. Portanto, não se precipite em chamá-lo de descuidado.
Sugiro que tomemos o machado
como uma analogia. O cabo representa os dons, ou se preferir, os talentos
naturais. Já o ferro do machado representa aptidões que adquirimos ao longo da
vida. Técnicas aprendidas e que precisam ser constantemente afiadas. Se cabo e ferro estiverem bem ligados, o
risco de se desprenderem é mínimo, independentemente da força empregada nos golpes. Isso é o que acontece quando desenvolvemos
aptidões que tenham a ver com nossos talentos naturais. É como se, numa simbiose,
tornassem-se numa única peça.
Na construção do
novo ethos, cada qual precisa
descobrir a sua vocação, pois será ela que designará seu próprio campo de atuação. E o que é vocação? Aquilo para o qual você foi feito
sob medida. Deus é tão sábio que com a vocação nos dá o bônus do prazer. Se
quiser saber qual a sua vocação, observe que atividades lhe são prazerosas.
Quando
desempenhamos um papel que não corresponde à nossa vocação, entre o cabo e o
ferro de nosso machado não há uma ligação suficientemente forte que resista ao tempo. Eventualmente,
o ferro se soltará do cabo e despencará no rio. E quando isso acontece,
restaria alguma esperança? Verifiquemos o que diz o texto:
“Perguntou o homem de Deus: Onde
caiu? Mostrando-lhe ele o lugar, Eliseu cortou um pau, lançou-o ali, e fez
flutuar o ferro.” 2 Reis 6:6
Que bom que Eliseu
estava na área para poder socorrer àquele operário aflito. Que bom que Cristo
nos prometeu companhia. Portanto, se acontecer de nossa ferramenta se soltar e
cair, temos a quem recorrer.
“Onde caiu?” foi a
pergunta do profeta. Quão importante é que saibamos onde perdemos nossa ferramenta
de trabalho. Não digo a ferramenta em si, mas aquilo que ela representa para
nós nesta analogia. Onde deixamos escapar os sonhos que nos moviam? Onde
perdemos a esperança de um mundo mais justo? Onde enterramos nossos talentos? Em que águas turvas nosso machado afundou?
Eliseu corta um
pedaço de pau, lança-o no local apontado pelo operário e faz com que o ferro
flutue. Entramos aqui no campo do sobrenatural. Não me atrevo a querer explicar
o inexplicável. Para
quem crê, basta o dado e ponto. Para quem não crê, que aproveite ao menos as
lições aqui encerradas. Mas de uma coisa estou certo, o Cristo em cujo reino
sirvo é poderoso o suficiente para resgatar o que se perdeu, mesmo que no fundo
de um oceano. Todavia, há coisas que Ele não faz, mesmo podendo. Refiro-me
àquilo que nos compete fazer. Tão logo o ferro emergiu, o profeta disse ao
moço: “Levanta-o. Então o homem estendeu
a mão e o tomou” (2 Reis 6:7).
Majestosamente, soberania divina e
responsabilidade humana se articulam sem qualquer atrito, como em tantas outras
vezes ao longo das Escrituras.
Aquilo que Ele resgata fica ao alcance das mãos. Não esperemos que Ele faça o restante. Estendamos a mão, tomemos de volta o ferro, amolemos sua lâmina, encaixemos novamente no cabo e... voltemos ao trabalho. Há muito a se fazer. Um novo mundo a ser construído, habitat da justiça e da liberdade.
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