terça-feira, abril 12, 2016

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Idolatria de Estado ou de Capital?




Por Hermes C. Fernandes

O Harging Bull é o maior símbolo de poder da bolsa de valores de Wall Street e é uma das atrações gratuitas mais visitadas pelo turistas em Nova York. A escultura de bronze idealizada por Arturo di Modica tem se tornado no símbolo do capitalismo americano. Muitos acreditam que esfregar a mão em seu chifre, focinho ou em seus testículos, atrai sorte, prosperidade e dinheiro. Turistas esperam horas em filhas gigantescas para tirar fotos agachados apalpando os testículos do touro. Crendices às parte, o fato é que, para quem conhece um pouco das Escrituras, é impossível não associar o símbolo do capitalismo com o bezerro de ouro confeccionado pelos hebreus enquanto esperavam por Moisés que se demorava no monte para receber das mãos de Deus as tábuas da Lei. Seria o capitalismo uma espécie de ídolo moderno?

O momento político em que estamos vivendo tem o mérito de trazer de volta questões ideológicas para o centro das atenções, fomentando discussões acaloradas em torno de quais seriam as atribuições do Estado e os limites de sua atuação. Distinções antes consideradas superadas voltaram à cena. Termos que já não inspiravam qualquer ameaça são agora considerados abomináveis por alguns setores mais reacionários da sociedade. "Esquerdopatas!", grita um tele-pastor conhecido por suas posições anacrônicas. "Petralhas!", "comunas!", brada o pastor blogueiro. Como se não bastasse o uso de expressões chulas, tentam espiritualizar o debate, tratando seus oponentes como verdadeiros hereges. 

De acordo com alguns cristãos conservadores identificados com a ala direita do espectro ideológico, os esquerdistas atribuiriam ao Estado papéis divinos. Em sua opinião, não competiria ao Estado prover educação, saúde, programas assistenciais, nem tampouco tentar regular a economia. Agindo assim, o Estado estaria usurpando o lugar de Deus. Todavia, por trás deste discurso aparentemente piedoso se esconde motivações nem sempre louváveis. Mesmo um conservador não cristão vai defender que não é justo usar seus impostos para socorrer os menos favorecidos. Já os do outro lado do espectro pensam de maneira inversa. Compete ao Estado diminuir a distância entre as classes, tirando das mais abastadas através de impostos, e provendo serviços que beneficiem a todos, sobretudo, aos mais necessitados.

Para o cristão de direita, o papel do Estado se limita ao que Paulo sucintamente apresenta em Romanos 13:

“Porque os magistrados não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas para os que fazem o mal. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; porquanto ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador em ira contra aquele que pratica o mal.” Romanos 13:3-4

Resumindo: Estabelecer a ordem, coibindo o avanço da maldade através do uso da lei e da força, julgando e punindo os criminosos. Isso justificaria forte investimento em segurança através do aparelhamento das forças armadas e das polícias. Um ambiente seguro garantiria um terreno fértil para o desenvolvimento de outras atividades e, consequentemente, a prosperidade da sociedade.

Se observarmos mais atentamente o texto, perceberemos que o papel do Estado vai além de garantir segurança aos seus cidadãos. Ele também deve ser ministro de Deus para a promoção do bem. Portanto, não basta coibir o mal, tem que promover o bem. E o que abrangeria este “bem”? Poderíamos incluir a saúde, a educação? E mais: o Estado deveria igualmente estimular a livre iniciativa que vise o bem comum? Creio que com base neste texto, a resposta é um sonoro sim. Receber louvor do Estado nada mais é do que receber estímulo, incentivo, inclusive de ordem econômica. Estimula-se o desenvolvimento de uma sociedade provendo-lhe educação, qualificando profissionalmente os seus cidadãos, investindo em pesquisas.  Estimula-se o progresso econômico através da desburocratização, e de incentivos fiscais, desonerando serviços essenciais à população, viabilizando o crédito, incentivando a produção.

Não se trata de atribuir ao Estado papéis divinos e sim de conferir-lhe o papel que as Escrituras lhe atribuem: ser ministro de Deus. 

Lutero costumava dizer que Deus age no mundo através de dois braços, o Estado e a Igreja, a Lei e a Graça. Como promotor do bem comum, compete ao Estado contribuir na distribuição de renda. Jamais foi plano de Deus que as riquezas deste mundo fossem concentradas em poucas mãos. A justiça do reino de Deus se caracteriza, sobretudo, pela distribuição equitativa dos recursos. Por isso, Paulo nos fala de um Deus que espalha, dá aos pobres, de modo que, "a sua justiça permanece para sempre” (2 Coríntios 9:9). Tanto a igreja, quanto o Estado têm a obrigação de ser agentes de Deus para espalhar, e não para concentrar. Não se trata de ser uma espécie de Robin Hood, que tira dos ricos para dar aos pobres. A propriedade privada deve ser garantida. O primeiro a comer do fruto do seu trabalho é aquele que o produziu (confira 2 Tim.2:6). Todavia, ser o primeiro não significa ser o único. Paulo nos adverte a trabalhar, “fazendo com as mãos o que é bom”, para que tenhamos “o que repartir com o que tiver necessidade” (Efésios 4:28).


A diferença entre o Estado e a igreja é que o primeiro age por força da lei, enquanto a igreja promove o bem através da conscientização. O Estado não pode me obrigar a partilhar os meus bens com quem quer que seja. O que ele pode e deve é usar os meus impostos para beneficiar a todos, sobretudo aos mais necessitados. Porém, cabe à igreja conscientizar-nos da importância da partilha. Não uma partilha imposta por lei, mas voluntária, motivada pelo amor. O Estado coage pela força. A igreja constrange pelo amor. O Estado impõe. A igreja propõe. O Estado busca prevalecer-se. A igreja, compadecer-se.

A igreja primitiva serve-nos de modelo de uma sociedade justa. Somos informados que “era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns” (Atos 4:32). Consequentemente, “não havia, pois, entre eles necessitado algum” (v.34). Tudo era repartido entre eles. Não de maneira compulsória, mas por amor.

O Estado incentiva, a igreja motiva. O Estado distribuiu através de serviços pagos pelos impostos dos seus cidadãos, a igreja distribuiu através da partilha voluntária. O bem promovido pela igreja não se limita aos seus membros, ainda que estes lhe sejam prioridade. Paulo orienta a que enquanto temos oportunidade, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos da fé” (Gl 6:10). Porém, há aqueles que, motivados por amor, invertem esta prioridade. João dá testemunho disso ao afirmar acerca daquele a quem sua terceira epístola era endereçada: “Amado, procedes fielmente em tudo o que fazes para com os irmãos, especialmente para com os estranhos, os quais diante da igreja testificaram do teu amor” (3 Jo 1:5-6). Sem importar se priorizaremos uns ou outros, o importante é que façamos o bem a todos. E fazer o bem implica repartir.

Nosso maior problema não é o Estado. Se fosse, Paulo teria dito que o amor ao Estado é a raiz de todos os males. Em vez disso, ele diz que o amor ao dinheiro é que é a raiz de todos os males. É o capital, tão defendido por eles, que promiscui o Estado. 

Nem mesmo Jesus enxergava no Estado um rival a ser combatido. Pelo contrário, Ele diz que é possível ser fiel a Deus, e ainda assim, ser leal ao Estado. Basta dar a César o que é de César, porém, sem negar a Deus o que é de Deus. Não obstante, Jesus afirma que não se pode servir a Deus e ao dinheiro. Na verdade, tanto o Estado quanto o Capital têm potencial de se tornar num ídolo. Mas deles, nenhum é tão voraz quanto o dinheiro. O amor a ele é a raiz da corrupção. Quando o Estado se torna na grande prostituta, o Capital é o seu cafetão.

Alguns alegam que o Estado não possui competência para atuar em certas áreas e que a prova disso seria o caos encontrado na saúde, na educação e em tantas outras áreas que deixam a desejar. Para estes, só haveria uma maneira de resolver o problema: privatização. Defendem, inclusive, que uma eventual privatização da Petrobrás, por exemplo, reduziria o preço do combustível. Interessante o argumento. Parece até que faz sentido. Porém, a experiência diz outra coisa. A telefonia foi privatizada e hoje pagamos mais pelo uso do celular que qualquer outro país do mundo. 

O buraco é bem mais embaixo. 

Qual a real razão de nossos hospitais e universidades públicas estarem sucateados? O que estaria por trás da educação de má qualidade? 

Tomemos como exemplo o SUS (Sistema Único de Saúde), que poderia ser considerada uma das maiores conquistas da sociedade brasileira, que já rendeu elogios até de Barack Obama, presidente dos EUA. O SUS foi criado para prestar atendimento universal e gratuito, sem distinção de classe ou categoria profissional. Obviamente, não interessa aos gestores dos grandes planos de saúde que algo como o SUS garanta atendimento de qualidade a todos. Quem pagaria uma fortuna a Amil, podendo recorrer à saúde pública, caso esta oferecesse um serviço de qualidade? Nas últimas eleições, os planos de saúde distribuíram R$ 52 milhões em doações para 131 candidaturas de 23 partidos diferentes. Eduardo Cunha, principal representante deste segmento no congresso, recebeu um "incentivo" de R$ 250 mil, repassados à sua campanha pelo Saúde Bradesco. Na hora de votar o orçamento para a saúde pública, a bancada eleita pela máfia dos planos de saúde vai trabalhar arduamente para sabotar qualquer tentativa de melhorar os serviços. O mesmo Eduardo Cunha que presidirá vergonhosamente a sessão que pretende destituir Dilma, foi relator de uma emenda que anistiava os planos de saúde em R$ 2 bilhões em multas (anistia semelhante a dada a pastores como R.R. Soares e Silas Malafaia. Leia sobre isso aqui). O deputado cujo bordão de campanha é "O povo merece respeito", assim que assumiu a presidência da Câmara, engavetou o pedido de criação da CPI dos Planos de Saúde, de autoria do deputado Ivan Valente (PSOL-SP). A desastrosa atuação de Cunha em favor dos Planos de Saúde mostra o quanto o financiamento de campanha determina os rumos das discussões das políticas públicas no país. O mesmo se dá com a educação. Colégios e Universidades privadas investiram milhões na eleição de representantes para sabotar o ensino público e assim garantir seus lucros galopantes. 

Se alguém acalanta a fantasia de que depois do impeachment da presidente, o país vai tomar um novo rumo, sinto em informar que está redondamente enganado. Se quisermos, de fato, que o país mude de rumo, precisamos urgentemente de uma reforma política que inclui o financiamento público das campanhas políticas, acabando de vez com esta orgia que mistura interesses públicos e privados. Somente assim, voltaremos a ter esperança de que o Estado cumprirá cabalmente seu papel de promover o bem comum em vez de aprofundar o abismo entre classes.

Não há regimes ou ideologias perfeitas. Creio que todos estão preparando o caminho para a grande síntese, o reino de Deus. É por ele que a humanidade tanto anseia. Nele a justiça e a liberdade, tão caros à civilização, finalmente se entrelaçarão. E o cupido que promoverá este encontro épico será o amor.


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