Por Hermes C. Fernandes
Será que ninguém se deu conta de que a maior tragédia
ambiental de nossa história constitui-se numa metáfora perfeita de nossa
condição moral e ética? Toda aquela lama tóxica fruto da ganância humana é a antítese
do rio de Deus apresentado em Ezequiel 47. Enquanto o rio de Deus produz vida
por onde passa (vv.8-9), a lama tóxica torna amargo o que antes era doce,
destruindo por completo o ecossistema, exterminando espécies de peixes, desesperando milhares de pescadores e comprometendo
o abastecimento de água de quase quatro milhões de pessoas.
Li em algum lugar que dias antes da tragédia, um pescador
teria sido preso por estar pescando durante o tempo de desova dos peixes. Crime
inafiançável, disseram. Então, o que deveríamos esperar que acontecesse a quem
matou o rio inteiro? Inexplicavelmente, os responsáveis pela tragédia continuam
soltos, enquanto a lama deságua no oceano depois de cruzar milhares de quilômetros
sem ser detida.
Um pescador não tem valor algum aos olhos das autoridades.
Prendê-lo é uma questão de ordem. Somente assim, outros seriam coibidos de
praticarem o tal crime contra a natureza. Ninguém quis saber se ele não estava
cometendo o tal delito para alimentar seus filhos. Mas uma empresa que lucra quase
três bilhões de reais em um ano tem o seu valor. Quem vai querer mexer com ela?
E os impostos que ela paga? E a receita que gera para o estado? E as propinas
pagas aos fiscais? E a sua representação política no congresso?
Como será o Natal nas cidades que dependiam do Rio Doce?
Quantas famílias perderam tudo na cidade de Mariana? Quem as ressarcirá? E
quanto às vidas que se perderam no momento do rompimento da barragem? Como
ressarci-las?
A mais tóxica das lamas é a corrupção. Ela jorra dos
gabinetes dos palácios, flui entre os corredores do poder, e por fim, contamina
deságua nas ruas, contaminando todo o tecido social.
As calhas por onde passa toda esta lama já está previamente
delimitada. Criam-se leis e depois se inventam meios para dificultar o seu cumprimento. Por exemplo: a prefeitura
concede alvará para um estabelecimento sem que este ofereça
estacionamento para os clientes. Sem alternativa, os clientes são obrigados a
deixar seus automóveis na calçada próxima. Pronto. A armadilha está armada. A
guarda municipal vai multar e rebocar o carro. A menos que se ofereça propina
ao guarda. O governo exige a vistoria anual de todos os carros emplacados no
Estado. Ao levá-lo para ser vistoriado depois de haver pagado um imposto
altíssimo (IPVA), o funcionário do DETRAN condena seus pneus mesmo estando em
ótimo estado. Ou você paga a propina exigida ou terá que voltar noutro dia com
pneus novos. Se cada funcionário cobrar
50,00 reais de propina e reprovar ao menos dez carros por dia, serão 500,00
reais diários. Se trabalhar 22 dias por mês, serão 11.000,00 reais de propina
mensais. Se houver cinquenta funcionários no posto do DETRAN, serão 550.000,00
de propina por mês e 6.600.000,00 por ano. Quem vai querer construir uma
barragem para impedir esta lama? Por que o Rio de Janeiro é o único Estado que
exige vistoria dos veículos? Quem mais ganha com isso além dos funcionários? É
lama para todo lado!
Então, por que ser honesto? Que sentido faz se esforçar para
ser um cidadão de bem? Até para tirar um
lixo extra, o gari pede um por baixo. Um serviço gratuito acaba sendo cobrado.
Uma “cervejinha aqui”, outro “agrado lá”, e a lama vai percorrendo seu caminho.
E isso começa em casa, quando prometemos aos filhos que lhes
cobriremos de presentes se passarem de ano na escola, quando os ensinamos a
comprar a simpatia da professora com uma ingênua maçã, quando os estimulamos a colarem
na prova, quando roubamos o sinal de wi-fi
do vizinho, quando pedimos que mintam dizendo ao cobrador que não estamos em casa,
etc.
Ao chegarmos na igreja, ouvimos sermões que insinuam que
Deus só nos abençoará mediante ofertas que fizemos. Ora, se o próprio Deus se
deixa comprar, o que dirá os homens, não é mesmo?
Especialistas dizem que o estrago feito pelo rompimento da
barragem da mineradora Samarco precisará de ao menos cem anos para ser
revertido. E o que dizer do estrago feito pela corrupção? De quanto tempo
precisaremos para reverter isso?
Jesus diz que aquele rio visto por Ezequiel fluiria do
interior daqueles que n’Ele cressem. Suas águas cristalinas são o antídoto para
toda esta lama tóxica da corrupção. O problema é que enquanto a lama corre
livremente sem que haja uma barragem capaz de detê-la, nós temos construído
verdadeiras represas para impedir o fluir do rio da vida que jorra do nosso
interior. Achamos mil desculpas para restringir nossa espiritualidade ao campo
da subjetividade. Enquanto cantamos louvores a Deus, maquinamos um jeito de
burlar as leis, de sonegar impostos, de nos locupletar da frouxidão das
engrenagens da máquina pública.
Soube de um caso de um pastor que orientou a um membro de
sua igreja a mentir para receber o seguro de seu caminhão que havia se
envolvido em um acidente. E o que dizer
de líderes que negociam os votos do seu rebanho? E os que usam a igreja para lavar dinheiro sujo? Está tudo errado! O mundo não
nos levará a sério enquanto formos coniventes com esta sem-vergonhice.
Pode até ser que a Samarco e a Vale do Rio Doce saiam ilesas
disso tudo. Pode ser que o governo faça vistas grossas e se limite a aplicar
uma multa irrisória. Porém, ninguém há que escape da justiça divina. Todos
teremos que prestar contas ao Juiz de toda a terra. O que foi feito debaixo dos
panos será finalmente trago à luz. O que foi colocado dentro da cueca e das
meias será exposto. Nenhuma explicação poderá convencer ao tribunal divino de
nossa inocência. Portanto, resta-nos o arrependimento e uma mudança drástica de
rumo.
Se preferir manter sua alma etiquetada, não se atreva a
falar mal do governo em nenhuma instância. Tire o argueiro de seu olho para ter
condição moral de apontar o cisco que há no olho de outrem.
Que o Senhor aja com misericórdia para conosco, dando-nos a
oportunidade de repensar nossos caminhos e mudar nossa postura. Ainda há tempo.
Só não se sabe até quando...
Leia também "O que a Bíblia diz sobre corrupção".
Graça e paz! Bispo, faz todo sentido o paralelo traçado entre a tragédia e a corrupção. Texto sensacional! O que mais me assusta é que quando a postagem é sobre sexualidade aparece um monte de gente enviando outros ao inferno mas quando o assunto pode mexer com as estruturas das próximas gerações ou ainda quem sabe transformar, pelo menos, nossa casa, ou vai... Pelo menos nosso ser... Aí nos calamos. Ninguém comenta. Deus tenha misericórdia de nós. Ôpa! Mas espera aí: seria o silêncio nos comentários um paralelo à nossa espiritualidade? Só temos dedos para apontar aos "moralmente" pecadores? Vai saber... Abraço, Fabio
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