sábado, agosto 27, 2016

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Um Deus de pés descalços e calejados



Por Hermes C. Fernandes

Eu tinha entre nove e dez anos quando me atrevi a pedir que meu pai me desse uma mesada. Em vez disso, ele me presenteou com uma caixa de engraxate. A igreja que ele pastoreava estava em obras. Ninguém queria deixar o culto com os pés empoeirados. Aquela foi minha primeira fonte de renda. Antes que julguem meu pai pela iniciativa de me fazer trabalhar tão cedo, devo dizer que nunca o questionei por aquilo. Pelo contrário. Sem querer fazer apologia ao trabalho infantil, orgulho-me por ter começado cedo. Os tempos eram outros. 

Jamais vou me esquecer do orgulho que senti ao comprar meu primeiro par de docksiders com o dinheirinho ganho com o meu suor. Sempre quis ter docksiders, mas meu pai, que havia sido sapateiro na juventude, se recusava a comprá-los por achar que não eram sapatos de verdade. Mas, agora, com o meu dinheiro, podia comprar o que quisesse. 

Se eu me importava ou me sentia humilhado por ser o filho do pastor engraxando sapatos dos fiéis? Que nada! Gostava de deixar os sapatos bem escovados, quase espelhados. Descobri o prazer de trabalhar não apenas pelo dinheiro, mas pela satisfação advinda do serviço em si e pela satisfação constatada no sorriso dos clientes. Devo confessar que cada elogio recebido deixava meu ego mais lustrado que os sapatos que engraxava. 

E o que é isso em comparado com o que o fez o Filho de Deus? Eu apenas engraxava sapatos, contentando-me em ver meu reflexo em seu brilho. Ele se pôs a lavar os pés de Seus discípulos. Aquele sim era um trabalho escravo. Eu usava escova e graxa. Ele usou uma bacia de água e uma toalha. Que reflexo se podia ver em pés limpos? 

Porém, o Jesus que tem sido pregado nos púlpitos atuais está mais para engraxate. Que diferença poderia haver entre uma atividade e outra? Ambos não são serviços que envolvem os pés? Eis a diferença básica entre qualquer ideologia ou religiosidade meramente humanas e a espiritualidade proposta por Jesus: A primeira só faz lustrar nossos sapatos, valorizando aquilo que é aparente, externalidades. A segunda, valoriza o que fica escondido, mas que é a base de sustentação sobre a qual descansa todo o resto. 
Qual a primeira coisa que fazemos quando lavamos nossos pés? Alguém já lavou os pés estando calçado? Por isso, Deus, ao comissionar Moisés a tirar Seu povo do Egito, ordenou que antes tirasse as sandálias de seus pés. Quem diria que este mesmo Deus, um dia lavaria os pés dos homens? 

Onde já se viu... um Deus que não se importa com técnicas, estratégias, marketing, background, Know-How, convenções sociais... Ele lida é com subjetividades. Um Deus real que mergulha em nossas realidades. 

O Deus revelado em Jesus não é nem engraxate, nem sapateiro. Ele não lustra, nem conserta sapatos. Ele cuida dos pés. 

Ele não sacraliza perímetros, geografias, objetos, instituições, tradições; Ele sacraliza consciências, que por sua vez tornam sagrado tudo o que percebe à sua volta. De que adianta pés imundos escondidos em sapatos lustrados? 

Meu pai costumava dizer, como bom sapateiro que era, que é possível reconhecer o nível social de alguém pelos calçados. Alguém duvida? Instintivamente, a primeira coisa para a qual olhamos ao encontrar alguém é para seus pés. Seus calçados dirão mais dela do que seus trejeitos e impostação de voz. Os romanos antigos concordariam com isso. Nos tempos áureos do império, o calçado indicava a classe social dos cidadãos. Os cônsules usavam sapato branco, os senadores sapatos marrons presos por quatro fitas pretas de couro atadas a dois nós, e o calçado tradicional das legiões era a bota de cano curto que mantinha os dedos descobertos. Já entre os egípcios antigos, mais despojados, era comum andar descalço e carregar as sandálias, usando-as apenas quando necessário. 

Alguns calçados são imponentes, com seus saltos agulhas ou exibindo brilho intenso com os de cromo alemão. Outros são despojados como as havainas ou os chinelos franciscanos. Porém, sem eles, somos todos iguais, vulneráveis, calejados, cansados. 

Então, que tal descermos do salto um pouco e caminharmos desprovidos da habitual arrogância que ostentamos? Que tal sermos mais complacentes com o nosso próximo em vez de julgá-lo pelo brilho ou desgaste de seus calçados? Somente pés calçados são capazes de chutar. Ninguém em sã consciência chutaria qualquer coisa, nem mesmo uma bola, com os pés desprotegidos, não é mesmo? Quem anda descalço corre o risco de se machucar, mas não sai por aí machucando os outros. 

Só exibe pés descalços quem não tem motivos de esconder seus calos ou seus esporões. Quem assume plenamente sua condição humana. Pelo menos, não precisa dizer que está com uma pedra no sapato. A gente até pisa em pedrinhas, mas não lhes oferece abrigos em nossos calçados. Eis uma das vantagens de se andar descalço no chão da existência. Certamente haverá calos. Todavia, serão melhor distribuídos pelos pés, em vez de se concentrarem somente onde o sapato aperta. 

Qualquer um que ouse se aproximar do Criador, ouvirá d’Ele a mesma recomendação: Tire as sandálias de teus pés. O lugar sagrado de que Ele fala não é o perímetro ao redor da sarça, mas o perímetro relacional. Um Deus descalço almeja relacionar-se com seres igualmente descalços. E isso não se limita ao nosso relacionamento com Deus. Toda relação é um campo sagrado. Seja entre pais e filhos, maridos e mulheres, irmãos, amigos, e até entre desconhecidos e desafetos. 

O sapato até protege, mas aperta. Traz conforto e desconforto ao mesmo tempo. Ilude-nos com a sensação de estarmos seguros, mas nos priva da sensação de alívio que só sentimos quando os removemos. 

E cá entre nós... O que é um buraco na sola do sapato para pés descalços? Nada. Em compensação, que outra sensação se iguala a de pisar sobre a relva com os pés desnudos? 

Quanto da vida se aproveitaria se nos arriscássemos a aposentar nossos sapatos? Imagine se nos livrássemos das sandálias do preconceito, da prepotência, da ganância e de tudo mais que nos isola do que a vida tem de melhor. 

Talvez assim, o mundo se abrisse à mensagem que nos propusemos propagar. Não é à toa que Paulo, o apóstolo faz coro com o profeta Isaías ao exclamar: “Quão formosos os pés dos que anunciam as boas novas” (Romanos 10:15)! Não são formosos por serem perfeitos, mas por estarem nus, sem a pretensão de impor uma verdade. São formosos porque refletem os pés de cada ser humano, independente de sua condição social, credo ou etnia. Formosos porque pertencem a quem segue pelo mundo afora anunciando que Deus não está de mal com os homens.

Segue abaixo uma das mais lindas canções de Sandy.


3 comentários:

  1. Belíssimo texto, um dos melhores e mais profundos sobre o tema.
    Deus abençoe

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  2. Profeta do nosso século e isto que você é pastor Emerson, por isto que eis pouco ouvido digo em relação aos falsos profetas, mas o verdadeiro profeta só tem compromisso com a fonte, assim é contigo.

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