“Considero-me estrangeiro em qualquer país, alheio
a qualquer raça.
Pois a terra é minha pátria e a humanidade toda é
meu povo.”
― Khalil Gibran
A imagem do corpo de uma criança de no máximo
dois anos de idade, estirada na areia de uma praia em Bodrum na Turquia, chocou
o mundo inteiro, e tornou-se símbolo do drama vivido por refugiados que tentam
chegar a qualquer custo à Europa. O menino que vestia bermuda azul, camiseta
vermelha e sapatos pretos encharcados, era provavelmente um dos cerca de doze
refugiados sírios que morreram afogados após o naufrágio de seus botes próximo à
península de Bodrum, balneário turístico pontilhado de resorts de luxo. Os
refugiados provavelmente tentavam chegar à ilha de Kos na Grécia. Além dele,
havia ao menos uma mulher e outras cinco
crianças que tiveram o mesmo fim. No mesmo dia, cerca de dois mil e quinhentos
refugiados a bordo de sessenta botes e barcos precários lograram seu objetivo.
A Europa vive hoje uma das maiores ondas migratórias da história
recente. Milhares de pessoas saem do norte da África, expondo suas vidas numa
perigosa travessia do Mar Mediterrâneo em direção ao velho continente. Em
apenas uma semana, ao menos quatro embarcações lotadas de imigrantes ilegais
afundaram. Desde 1º de janeiro de 2015, a Organização Internacional de Migração
(OIM) estima que cerca de duas mil pessoas morreram no trajeto. Em 2014 foram
três mil e duzentos mortos. Nos últimos anos, a Europa recebeu a maioria dos
refugiados do mundo, que deixam suas pátrias para escapar de conflitos como a
guerra civil na Síria e na Líbia ou pelas dificuldades econômicas. De acordo
com o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), cerca de 219 mil pessoas
cruzaram o mar em busca de um vida melhor na Europa no ano passado. Na metade
deste ano, o número já ultrapassa a casa de 300 mil.
A travessia do Mediterrâneo é empreendida por traficantes de pessoas em
botes ou em embarcações superlotadas, sem qualquer requisito de segurança. A
viagem chega a custar mais de R$ 10 mil por pessoa. Uma única embarcação pode
render até US$ 1 milhão.
A imigração tem sido um tema polêmico na Europa, sobretudo devido ao
avanço de partidos de extrema direita com seu discurso nacionalista, defendendo
leis anti-imigração e usando a crise econômica como justificativa à xenofobia. Defender
os direitos dos imigrantes pobres está cada vez mais difícil em um ambiente de
perspectiva econômica sombria, com um número crescente de europeus
desempregados, temendo a concorrência com os trabalhadores estrangeiros que
costumam oferecer mão-de-obra bem mais barata.
Se a imigração ilegal na Europa se dá pelo mar, nos Estados Unidos
acontece geralmente por terra através da extensa faixa fronteiriça com o
México. Milhares de pessoas, incluindo crianças, oriundas de países como
Guatemala, Honduras, El Salvador e Brasil são guiadas por traficantes de
pessoas conhecidos como “coiotes” por regiões inóspitas, arriscando a vida pelo
sonho americano. Não bastassem os perigos oferecidos pelo ambiente desértico,
os imigrantes se expõem a assaltos e sequestros frequentes. Não é raro as
autoridades de fronteira serem acionada para resgatar alguém.
Na contramão do que tem acontecido na Europa, o número de pessoas que
tentam atravessar a fronteira dos Estados Unidos com o México diminuiu cerca de
55% entre os anos fiscais 2014 e 2015, de acordo com o Departamento de
Segurança Nacional (DHS). Talvez isso se dê devido à crise econômica que o país
atravessou desde 2008. Pude perceber uma inversão do fluxo quando ainda morava
na Flórida e tinha que vir ao Brasil com certa frequência. Antes, os voos saíam
lotados do Brasil para os EUA e voltavam com muitos assentos vagos. De um tempo
para cá, observa-se o inverso. Os voos vão para os EUA parcialmente cheios e
voltam repletos. Tem mais gente voltando do que indo. Antes, boa parte dos que
iram tinha a intenção de ficar por lá. Hoje, vão para gastar suas economias.
Não é à toa que o governo americano estuda suspender a necessidade de visto de
turismo para brasileiros. Turistas brasileiros ocupam a terceira posição na
lista dos que mais gastam nos EUA, ficando atrás apenas dos britânicos e
japoneses, de acordo com o Departamento de Comércio Americano. Cálculos indicam
que cerca de 1,4 milhão de brasileiros visitaram os EUA em 2014 e que este
número deverá dobrar em 2016.
Só quem já teve a experiência de morar fora do país sabe mensurar a dor
de imigrantes ilegais, seja pelo risco de ser deportado a qualquer instante,
pela exploração sofrida (às vezes por parte dos próprios patrícios) ou por uma
das mais cruéis faces do preconceito: a xenofobia. Mesmo um imigrante legal não
fica imune a estas injustiças. Ao menor deslize, pode perder seu status migratório, ser preso e
posteriormente enviado de volta ao seu país de origem. Milhares de brasileiros
espalhados pelo mundo afora sabem do que estou falando.
Uma coisa é visitar um país estrangeiro com o objetivo de gastar. Outra
coisa totalmente diferente é imigrar. Pude perceber isso com muita clareza nas
duas vezes que morei nos EUA. Como visitante, era recebido com tapete vermelho
e honras. Como imigrante, era visto como quem vinha para ocupar o lugar de um
nativo. E isso levando em conta o fato de não ter ficado um único dia de
maneira ilegal naquele país. Se quem está legal sofre, imagina quem está
ilegal.
Não precisa morar fora para lidar com esta questão. Aqui mesmo no
Brasil, deparamo-nos com um número crescente de imigrantes oriundos da África,
do Caribe e da América Latina. Muitos deles vivem em condições subumanas, sendo
submetidos a trabalhos forçados.
As razões que contribuem para o aumento do fluxo migratório entre a
África e a Europa são diferentes das que estão por trás da multiplicação de
imigrantes que temos visto no Brasil em anos recentes. Em vez de guerras, são
as tragédias naturais como a que destruiu o Haiti em 2010. A única coisa em
comum é a crise econômica.
Depois do terremoto que matou 230 mil pessoas e deixou 1,5 milhão de
desabrigados, cerca de 56 mil haitianos já imigraram para o Brasil segundo o
Ministério da Justiça. A maioria entra no país pelo Acre, seguindo de ônibus
para os estados do Sul e do Sudeste. Muitos deles têm que se contentar com
subempregos. Alguns se queixam que para muitos brasileiros, os haitianos são
vistos como escravos.
Na
madrugada do dia 2 de agosto de 2015, seis haitianos sofreram um ataque na
região central de São Paulo. O agressor que estava em um carro desferiu tiros
de chumbinho contra os imigrantes. Três
deles ficaram com projéteis alojados no corpo e tiveram que ser operados no
Hospital Municipal do Tatuapé, na zona leste, para remoção da munição.
A suspeita é de que os crimes teriam
sido motivados por xenofobia. Este tipo de discriminação tem sido fomentado
pelo crescente discurso conservador com características nacionalistas que nos
remete aos tempos áureos do nazismo
na Alemanha. Foi em nome de um nacionalismo doentio que Hitler teria promovido o
mais monstruoso programa de eugenia da história, o genocídio conhecido como
Holocausto em que milhões de judeus, negros, ciganos e outras minorias foram
dizimados.
O problema da
imigração numa perspectiva bíblica
Gostaria de propor um exame da questão da imigração sob duas
perspectivas, uma bíblica e outra política.
Durante o tempo em que morei com minha família nos Estados Unidos,
encontrei muitos brasileiros cristãos naturalizados americanos, ou já em posse
de seu Green Card, que apoiavam a iniciativa do governo de
perseguir os ilegais. Segundo eles, os imigrantes indocumentados estariam
cometendo um tipo de pecado, por desobedecerem às leis do Estado. Ora, apesar
de este tipo de postura estar embasado no texto bíblico, carece de um exame
mais profundo da questão. Há vários precedentes bíblicos de pessoas retas que
em algum momento de suas vidas foram imigrantes. A principal delas é o próprio
Jesus, que fugindo da perseguição de Herodes, foi levado pelos seus pais para o
Egito, onde viveu os primeiros anos de sua infância. Um Deus que conhece na
pele o que é viver em terra alheia, sendo vítima de todo tipo de preconceito
cultural e racial, pode perfeitamente identificar-se com aqueles que vivem a
mesma situação. Será que ele viveu legalmente no Egito? Bem, se viveu
escondido, como diz a Escritura, logo, viveu na clandestinidade.
E o que dizer de Moisés? Pelo decreto de Faraó, todos os recém-nascidos
dentre os hebreus deveriam morrer. Mas as parteiras o desobedeceram
deliberadamente. Por algum tempo, Moisés, além de filho de imigrantes, viveu na
ilegalidade, até ser descoberto e adotado pela filha do monarca egípcio.
Poderíamos apontar outros precedentes bíblicos, mas em vez disso, que
tal buscar a instrução dada por Deus quanto ao trato que deve ser dispensado ao
imigrante?
Logo durante a organização civil do povo hebreu, Deus ordena:
“O estrangeiro não
afligirás, nem o oprimirás, pois estrangeiros fostes na terra do Egito.”[1]
O Supremo Legislador chama Seu povo à consciência!
- Lembrem-se de que vocês também foram imigrantes. Não tratem o
estrangeiro da maneira como vocês foram tratados no Egito!
Além do mandamento claro, Deus ainda adverte:
“Se de alguma maneira os afligirdes, e
eles clamarem a mim, eu certamente ouvirei o seu clamor. A minha ira se
acenderá.”[2]
Ora, tanto o Brasil, quanto os Estados Unidos são países construídos por
imigrantes. Os mesmos americanos que vociferam contra os ilegais são filhos e
netos daqueles que deixaram a Europa, a Ásia e a África em busca de
oportunidades na América. O próprio presidente Barack Obama é filho de
imigrante, o que gerou enormes expectativas por parte da comunidade de
imigrantes de que a tão sonhada reforma migratória finalmente saísse.
Muitos acham que a decadência moral e espiritual da América se deva à
proibição de se fazer orações nas escolas, como antigamente, e a remoção de
símbolos cristãos dos edifícios públicos. Pode até ser que isso tenha
colaborado (tenho minhas dúvidas). Porém, não encontramos advertências bíblicas
de que a ira de Deus se acenderia caso as crianças não orassem mais nas
escolas, ou tivessem que aprender outra teoria que não fosse o criacionismo. Em
vez disso, a advertência de Deus diz respeito ao tratamento dado aos
estrangeiros. Pelo jeito, tem muita gente coando mosquito e engolindo camelos.
Outros alegam que leis migratórias mais duras coibiriam o aumento de
criminalidade, diretamente ligado à imigração ilegal. Afinal, dizem eles, uma
significativa parcela de crimes é praticada por estrangeiros. Ora, este
raciocínio, além de preconceituoso, é raso e falacioso. Por que jovens
imigrantes se envolvem com o crime? Não será pelo fato de não poderem concluir
seus estudos? Ou ainda por não terem acesso ao mercado de trabalho formal?
Quiçá estejamos invertendo a ordem, enxergando causas onde há efeitos, e
efeitos onde há causas.
Quantos jovens
imigrantes são vítimas de bullying nas escolas americana?
Pergunte aos meus filhos. Eles te dirão o que testemunharam. Se isso não é
afligir o imigrante, o que é, então? Com quem estas crianças aprendem a
desprezar colegas de outras etnias ou nacionalidades? Muitos ouvem seus pais
acusarem os imigrantes por estarem desempregados, e acabam descarregando suas
frustrações nos colegas da escola.
Não basta simplesmente não afligir o imigrante. A orientação
bíblica vai além:
“Como o natural entre
vós será o estrangeiro que peregrina convosco. Amá-lo-eis como
a vós mesmos, pois fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso
Deus.”[3]
O imigrante precisa ser aceito, amado, acolhido. E mais: Deve ser
tratado como se fosse nativo. Em momento algum Deus ordena que se dê
privilégios aos imigrantes, e sim, que seja tratado sem discriminação. Caso
contrário, o juízo de Deus vem.
Deve-se amar o estrangeiro pelo simples fato de Deus mesmo amá-lo.[4]
O trato que Deus ordenou que Seu povo dispensasse ao estrangeiro era de
tal ordem, que é usado como referência para o trato que devemos dispensar a
nossos irmãos, quando estes atravessarem alguma dificuldade econômica:
“Quando teu irmão empobrecer e
as suas forças decaírem, sustentá-lo-ás como a um estrangeiro ou peregrino,
para que viva contigo.”[5]
Quem diria... Em vez de o estrangeiro ser tratado como irmão, o irmão
que deveria ser tratado como estrangeiro. Porém, hoje, tratar um irmão como se
fosse um estrangeiro, seria considerado um total descaso, dado o desprezo com
que tratamos àqueles que consideramos diferentes de nós.
Portanto, não se pode tomar o estrangeiro como bode expiatório da crise
econômica. É comum justificar a perseguição aos imigrantes alegando que estes
estejam tomando as vagas de emprego que poderiam ser ocupadas pelos nativos.
Será que o americano, por exemplo, estaria disposto a assumir o tipo de serviço
exercido pela mão-de-obra estrangeira? Será que o europeu típico se
‘rebaixaria’ a fazer o que um imigrante africano faz?
Um censo recente apontou que a população latina dos EUA alcançou a casa
dos 50 milhões. A divulgação desse dado desencadeou um debate em torno do
capital político representado por este enorme contingente. Os latinos podem ter
sido a “chave” das eleições de 2012. Já há mais latinos do que negros no
EUA. Se todos os imigrantes latinos fossem legalizados e com isso, obtivessem o
direito ao voto, poderiam decidir qualquer eleição. A perseguição aos
imigrantes, sobretudo, de origem latina, tem o sórdido objetivo de diminuir sua
influência política. Algo semelhante ao que Faraó intentava, ao ordenar a morte
dos infantes hebreus.
Do ponto de vista econômico, uma reforma migratória mais dura
equivaleria a dar um tiro no pé. Só em 2009, os brasileiros injetaram mais de 4
bilhões de dólares na economia americana. No ano seguinte, teriam sido mais de
10 bilhões. Não são só os pastores brasileiros que atuam naquele país que estão
preocupados. O comércio, a indústria hoteleira, e até os parques têm razões de
sobra para colocarem as barbas de molho. Imagine, por exemplo, se os
brasileiros, que hoje são responsáveis pelo segundo maior número de visitantes
de Orlando, resolvessem boicotar a cidade? Não se esqueçam de que a Disney não
é exclusividade da Flórida. Também há parques na Europa e na Ásia.
Urge que se levante alguém com o cacife profético de Martin Luther King,
para conclamar a população latina a unir-se em busca de seus direitos civis.
Brasileiros e hispanos estão no mesmo barco. Somos todos latinos, com nossas
convergências culturais, e não podemos desperdiçar a oportunidade histórica de
lutarmos pelas próximas gerações. Aquele país ainda será governado por um
presidente de origem latina. Quem viver, verá.
Por outro lado, o
Brasil também tem recebido uma enxurrada de imigrantes. Semelhante à terra do
Tio Sam, nosso país também foi construído por imigrantes oriundos de várias
partes do mundo. Por que daríamos boas vindas aos que vêm da Europa, e não
acolheríamos com o mesmo calor os que vêm de um país dilacerado como Haiti?
a gente esta sempre se esquecendo... T R I S T E.
ResponderExcluirParece que todos , mas todos , individual , coletivo , nacões etc. estamos sendo testados no AMOR !!!
ResponderExcluirMeu irmão que explanação!!! Infelizmente nossa geração está muita ocupado em torno da própria existência. Triste!!!
ResponderExcluirEspetacular texto Hermes. Como disse Frei Beto: O mundo foi hegemonizado por um sistema no qual a livre circulação de moedas não encontra reciprocidade na livre circulação de pessoas. Ao capital, todas as fronteiras se abrem. Às pessoas, todas se fecham, sobretudo se são negras ou muçulmanas. A discriminação revela nossa verdadeira face.
ResponderExcluirMauro Silva
Tolerância também não resolverá, como declara J. Derrida. Nossa ação não pode ser na medida em que o outro ofereça algo. O acolhimento é incondicional. Receber o refugiado ou imigrante é uma questão de humanidade.
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