Por Hermes C. Fernandes
Recentemente, a Rede Record ligada à Igreja Universal foi
condenada pela justiça a ceder quatro horas de sua grade à exibição do direito
de resposta de entidades ligadas à umbanda e ao candomblé devido às ofensas
proferidas contra as religiões afro-brasileiras em sua programação. A decisão inédita
da justiça trouxe a questão da intolerância religiosa para o centro das
atenções.
O juiz responsável pela sentença citou
algumas passagens da Constituição Federal, afirmando que o Estado deve garantir
a todos “o pleno exercício dos direitos culturais, protegendo as manifestações
das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras” e “em caso de ofensa, é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo”.
O episódio suscitou debates calorosos nas redes sociais. Mesmo
para alguns que não nutrem qualquer simpatia pelo trabalho da IURD, seria
impossível pregar o evangelho sem confrontar outras expressões religiosas,
ainda que isso não signifique sair por aí destruindo imagens, invadindo centros
espíritas e agredindo física ou verbalmente quem quer que seja. Para quem pensa
assim, o discurso evangélico em si já implicaria numa espécie de confronto.
Afinal, se o nosso Deus é o verdadeiro, os demais só poderiam ser falsos. Seria
esta a única abordagem possível?
Pode-se anunciar o evangelho sem atacar a
religiosidade alheia?
Creio, piamente, que sim.
O problema é que estamos usando como abordagem evangelística a
mesma usada por Israel em suas investidas militares. Com isso, mesmo que
inconscientemente, reduzimos o nosso Deus a uma divindade tribal que deve ter
sua primazia garantida pela destruição de qualquer outra entidade rival.
Diferentemente das nações daquela época, vivemos sob a égide de um estado
laico, em que o credo professado por cada cidadão deve ser respeitado.
Em vez de nos espelharmos em Jesus, temos tomado o profeta Elias como
referência, incorrendo no mesmo erro dos discípulos ao sugerirem que se orasse
para que Deus enviasse fogo do céu e consumisse os que se interpunham ao avanço
da boa nova. A resposta dada por Jesus deveria ecoar continuamente a cada nova
geração de cristãos: “Vós não sabeis de que
espírito sois. Porque o Filho do
homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lc.9:55-56).
Se tivéssemos que buscar referências no
Antigo Testamento, ninguém seria mais indicado do que Daniel e seus amigos
Sadraque, Mesaque e Abede-nego. Apesar de não se dobraram à idolatria vigente na
Babilônia, também não atacaram a religiosidade alheia. Portanto, não
se pode ignorar a possibilidade de que convivamos amistosamente sem com isso
violar nossa consciência.
Se vivesse em nossos dias, Daniel certamente seria acusado por
muitos cristãos de ser ecumênico. Ele não apenas coexistia pacificamente com
indivíduos que cultuavam a outros deuses, como foi promovido pelo rei como mestre
dos magos (Dn.5:11). Todavia, em momento algum, comeu dos manjares oferecidos a
tais ídolos, nem se prostrou ante a eles, mas manteve-se fiel à sua fé e à sua
consciência.
Apesar de jamais tentar converter o rei da Babilônia ou a sua corte,
Daniel teve o prazer de ouvi-lo declarar: “Certamente
o vosso Deus é Deus dos deuses, e o Senhor dos reis e revelador de mistérios,
pois pudeste revelar este mistério” (Daniel 2:47).
A expressão “Deus dos deuses” parece indicar a possibilidade de
uma espiritualidade plural e diversificada. Admitir que o Deus a quem Daniel servia
estava acima de qualquer outra divindade cultuada naquela sociedade era, sem
dúvida, um grande salto. O salmista parece ter expressado o mesmo ideal ao declarar: “Eu te louvarei, de todo o meu coração; na presença dos deuses a ti cantarei louvores” (Salmos 138:1). Ora, se eliminarmos qualquer culto e espiritualidade que divirja da nossa, como poderemos oferecer nossos louvores a Cristo na presença dos deuses?
Para muitos cristãos, o ideal seria viver numa sociedade
uniformizada, onde a fé numa única divindade fosse imposta por lei. Imagine o
que seria viver numa espécie de Talibã evangélico. Durante séculos foi assim,
desde que Constantino anunciou sua conversão ao cristianismo, tornando-o
religião oficial do Império Romano. Nações inteiras foram coagidas à conversão.
E foi assim que a revolução de amor proposta por Jesus se transformou em
religião estatal.
Qualquer abordagem que não se paute no respeito deveria ser
descartada. Antes de atacar qualquer expressão religiosa, deveríamos nos
lembrar de que alguns dos que deram boas vindas ao recém-nascido Jesus não eram
judeus devotos do Deus de Abraão, mas magos, expoentes de uma espiritualidade
que poderia ser considerada, no mínimo, exótica. Ademais, depois de sermos duramente perseguidos por séculos, deveríamos ser complacentes com os que sofrem perseguição por causa de sua opção religiosa. De acordo com Jesus, não seríamos reconhecidos como Seus discípulos devido ao nosso radicalismo, mas por amarmos uns aos outros (Jo.13:35).
Todavia, a questão nevrálgica parece perdurar: como anunciar a
verdade do evangelho sem confrontar o que consideramos engano, ou, na melhor
das hipóteses, superstição?
Primeiro, precisamos mudar alguns paradigmas. Cristo não
comissionou Seus discípulos a converter o mundo à sua fé. Tal tarefa é
atribuição exclusiva do Espírito Santo (Jo.16:8). Nosso papel como cristãos é
tão-somente o de dar testemunho, sendo uma espécie de amostra grátis do que o
evangelho é capaz de produzir no ser humano. Um "evangelho" que produza gente intolerante não me parece muito promissor, concorda?
De fato, Jesus ordenou a Seus seguidores que saíssem pelo mundo
fazendo discípulos (Mt.28:19). Ele disse
“discípulos”, não “prosélitos”. Há uma linha tênue entre discipular e fazer
proselitismo. Quem discípula tem o
objetivo de partilhar o que recebeu de seu mestre. Quem faz proselitismo tem
como alvo duplicar a si mesmo, fazendo com que o outro abrace suas ideias, seus
valores, seus preconceitos e pressupostos, e até seus trejeitos. O discipulado
respeita a alteridade. O proselitismo, não. O discipulado costuma ser discreto, sutil. O proselitismo é, por natureza, panfletário e ostensivo. Repare no que Jesus diz acerca dos
seguidores de uma das seitas mais sectárias de Seu tempo:
“Ai de vós, escribas e fariseus,
hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e,
depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós.” Mateus 23:15
A proposta de Jesus estava na contramão de tudo isso. Não precisamos percorrer o mundo para nos
duplicarmos. Basta que comuniquemos a mensagem do reino de Deus de maneira
discreta através de nossa vida, sem imposição, sem querer exercer controle, sem
a presunção de sermos donos da verdade. Como disse São Francisco de Assis: “Pregue o evangelho em todo o tempo, e, se
necessário, use as palavras.”
Obviamente que almejamos ver as pessoas convertidas a Cristo. Mas
isso não se dará mediante o uso de estratégias mirabolantes (para não dizer,
mal intencionadas). Paulo chama-nos a atenção para a abordagem “evangelística” usada
em Tessalônica:
“Porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que
tivemos para convosco, e como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir o
Deus vivo e verdadeiro (...) Assim nós,
sendo-vos tão afeiçoados, de boa vontade quiséramos comunicar-vos, não somente
o evangelho de Deus, mas ainda as nossas próprias almas; porquanto nos éreis
muito queridos..” 1
Tessalonicenses 1:9; 2:8
Se alguém nos é querido, certamente desejaremos a sua
conversão ao evangelho, tendo em vista o bem que a boa nova produziu em nosso
ser. Como amar a alguém sem desejar que seja igualmente alcançado por aquilo
que tão bem nos fez? Porém, nossa “entrada” (abordagem) deve ser cheia de afeição,
não de acusação. Antes do discurso, devemos comunicar nossa própria alma. Antes
que ele se converta a Cristo, nós nos convertemos a ele, buscando compreender
seus anseios, sua cosmovisão, suas limitações e sua fé.
E, se porventura, a conversão almejada jamais ocorrer, não
deixaremos de amá-lo. Lembrando de que amar implica necessariamente respeitar.
Particularmente, creio numa eventual conversão de todas as
nações. Pelo menos, é isso que lemos nos Salmos 22:27 e 86:9, e em Apocalipse
15:4. Todavia, não almejo que o cristianismo se torne numa religião imposta
pelo estado ou por qualquer outro meio de coerção. Para ser franco, creio que o
cristianismo como conhecemos esteja fadado a desaparecer e que a mensagem de Jesus
sobreviverá ao seu ocaso. Engana-se quem julga que o cristianismo é a religião
iniciada por Jesus. Em vez disso, ele foi criado para promover a coesão de um império
em franca decadência. Jesus jamais criou qualquer “ismo”. A igreja, por sua
vez, nada mais é do que o embrião de uma nova humanidade, composta de
indivíduos que se converteram a Deus, convertendo-se uns aos outros. Neste sentido,
a igreja de Cristo é eterna. Mas a religião cristã, não. Dogmas serão
desacreditados. Ritos cairão em desuso. Estratégias evangelísticas caducarão.
Mas o poder subversivo da mensagem de Jesus nos acompanhará por todas as eras
até que os povos convertam “suas espadas
em arado, e suas lanças em foices”, de modo que jamais haja nação que se
levante contra outra nação (Is.2:4). Os pais se converterão aos filhos, e os
filhos aos pais, de sorte que o abismo entre gerações terá sido aterrado para
sempre (Lc.1:17).
Uma interessante colocação dos fatos, parabéns.
ResponderExcluirQue o amor de Jesus mos faça amar e não impor nossa crença
ResponderExcluirComovedor. Obrigado, Pastor (e saúde, especialmente a sua menina)
ResponderExcluirHummm! Interessante! Mas, um tanto amilenista demais.
ResponderExcluirMuito importante esta postagem sobre a tolerância. Muitos deveriam lê-la para que evitassem virar meros perseguidores.
ResponderExcluirNossa dá para ver só pela imagem que a pessoa que escreveu este texto é um intolerante. kkkkk muita hipocrisia deste povo.
ResponderExcluirkkkkk, dá para ver só pela imagem, que a pessoa que escreveu este texto é a própria intolerância. Hipocrisia é disso que eu chamo esse texto.
ResponderExcluirNossa dá para ver só pela imagem que a pessoa que escreveu este texto é um intolerante. kkkkk muita hipocrisia deste povo.
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