Por Hermes C. Fernandes
Um dos maiores desafios à expansão da economia brasileira são os gargalos estruturais. De que adianta incrementar a produção se esta não tem
por onde escoar? As estradas brasileiras seguem esburacadas, provocando o
atraso na entrega de mercadorias. As estradas de ferro não são suficientes para
a dimensão continental do país. Os portos são uma vergonha nacional.
Mercadorias estragam, enquanto os navios esperam em longas filas para atracarem
e serem devidamente carregados.
Se
as rodovias e ferrovias são responsáveis pela distribuição da produção em solo
nacional, os portos são os principais responsáveis pela distribuição de nossas
riquezas por todo o mundo.
Já
era assim nos tempos bíblicos. Sob o cetro de Salomão, Israel viveu o período
mais próspero de sua balança comercial. Lemos que a cada três anos, os navios
do rei vinham de Társis, carregados de ouro, prata, marfim e animais exóticos. “Assim excedeu o rei Salomão a todos os
reis da terra, em riqueza e sabedoria” (2 Crônicas 9:21-22). De Ofir,
traziam o mais precioso dos metais, o ouro; e do Egito, traziam cavalos puro
sangue (2 Crônicas 8:17-18 e 9:28).
Toda
esta mercadoria era descarregada no porto de Elote, e comercializada nas ruas
de Jerusalém. Além
de importar produtos de outras nações, Israel também exportava para os heteus e
sírios (1 Reis 10:28-29).
Com
a morte de Salomão, Israel foi perdendo aos poucos a sua influência comercial
no mundo, deixando de ser uma nação cosmopolita, mas tornar-se perigosamente
provinciana. Os reis que o sucederam estiveram tão ocupados em restabelecer a
ordem social em suas terras, que foram negligentes com a manutenção das relações
comerciais internacionais. Com isso, o porto de Elote ficou entregue às
baratas, ocasionando no seu sucateamento.
Uma
cidade sem porto estaria condenada ao isolamento comercial. Houve reis
comprometidos com o legado espiritual de Davi e Salomão, mas que não deram a
devida atenção à questão. Josafá, certamente, foi um deles. Sua preocupação era
com a crise entre o reino do norte e o reino do sul. Outros reis como Joás e Amazias
também estiveram ocupados demais com questões internas. Até que Deus levantou a
Uzias. Com apenas dezesseis anos, a primeira medida de seu reinado foi
restaurar Elote, e restituir o porto a Judá (2 Crônicas 26:1-2). Isso aconteceu
muito antes do reinado de Ezequias, responsável por restaurar o culto a Deus, e
do reinado de Josias que reparou o templo e reeditou as festas, começando pela
Páscoa.
Considerando
que a Jerusalém dos tempos bíblicos seja apenas uma sombra ou figura da
Jerusalém definitiva que é a igreja de Cristo, penso haver aqui algumas lições
preciosas para nós.
Estamos
tão distraídos com questões internas, que perdemos de vista o fato de que fomos
enviados por Deus a este mundo. Isolar-nos poderá nos custar muito caro. Urge
que se levante em nossos dias uma geração de cristãos como Uzias, disposta a
reconstruir nossos portos. Sem que Elote nos seja devolvida, seremos uma Cuba,
isolada do resto do mundo por causa de um embargo econômico. Todavia, no nosso
caso, este embargo não partiu de fora, mas de nós mesmos. É como se sabotássemos
a nós mesmos.
Tal
atitude só seria razoável se fôssemos autossuficientes. Será que o somos? Creio
que não. E quero apresentar neste artigo minhas razões para isso.
Em
Provérbios, livro creditado a Salomão, lemos acerca da mulher virtuosa, cujo
valor excede ao de rubis. Entre seus atributos, diz-se que “o coração do seu marido está nela confiado”, pois “ela só lhe faz bem, e não mal”. Ela “busca lã e linho, e trabalha de boa vontade
com suas mãos. Como o navio mercante, ela traz de longe o seu pão”
(Pv.31:10-14).
Fazendo
uma leitura alegórica do texto, pode-se dizer que a tal “mulher virtuosa” seja
uma figura da igreja, e o valor que excede ao de rubis nada mais é do que o
preço pago por Cristo em Sua cruz. Paulo diz que a igreja foi comprada pelo
sangue do próprio Deus (At.20:28). Haveria valor maior que esse?
Seu
marido confia nela assim como Deus tem depositado Sua confiança em nós, o Seu
povo. Há algo que precisa ser buscado lá fora. A lã é produzida em nosso
próprio território. Afinal, somos ovelhas do Seu aprisco. Porém, o linho deve
ser trazido de fora. Mesmo o pão que poderia ser produzido em nossa própria
padaria, deve vir de longe, e de tão longe que necessitaria que navios
mercantes o trouxesse. Penso haver aqui um interessante paralelo com o que Jesus disse acerca do bom pastor: "A este o porteiro abre, e as ovelhas ouvem a sua voz, e chama pelo nome às suas ovelhas, e as traz para fora. E quando tira para fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz (...) Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens" (Jo.10:3-4,9). Note isso: o alimento para as ovelhas não está no aprisco, mas nas pastagens lá fora, para além das cercas do redil.
Achar-se
autossuficiente é presunçoso e beira à petulância. No parecer de Salomão, “aquele que vive isolado busca seu próprio
desejo; insurge-se contra a verdadeira sabedoria” (Pv.18:1).
Recuso-me a crer que seja
plano de Deus que a igreja se isole do resto do mundo. Por isso, nossos portos
precisam ser reabertos, tanto para exportar quanto para importar.
O salmista afirma que “os que
descem ao mar em navios, os que fazem comércio nas grandes águas, esses veem as obras do Senhor, e as suas maravilhas nas
profundezas” (Salmos
107:24).
Lembre-se de que, na visão de Ezequiel, quanto mais longe do templo estivessem
as águas do rio que dele jorrava, mais profundas se tornavam (Ez.47). As mais
significantes experiências que temos com Deus não ocorrem no templo, mas no
chão da vida, nas relações, nas “grandes
águas”.
Todavia, a maioria prefere o conforto do gueto. Recusa-se
a aventurar-se além da linha do horizonte. Contenta-se com o raso e
superficial.
Alguns dirão: - Não precisamos de nada deste mundo!
Temos o Senhor! Temos a Sua glória! O mundo é que precisa de nós!
Apesar
de soar espiritual, tal postura não passa de arrogância travestida de piedade.
Leia
atentamente o que diz o Senhor pelos lábios de Isaías acerca do Seu povo:
“Levanta-te, resplandece, porque vem a tua
luz, e a glória do SENHOR vai nascendo sobre ti; porque eis que as trevas cobriram a
terra, e a escuridão os povos; mas sobre ti o Senhor virá surgindo, e a sua
glória se verá sobre ti. E as nações
caminharão à tua luz, e os reis ao resplendor que te nasceu.” Isaías 60:1-3
Se pararmos aqui, talvez concluamos
que, de fato, temos razão para acreditar que não precisamos de nada além do que
já temos recebido diretamente do Senhor. Afinal, enquanto a glória do Senhor
nasce sobre nós, o mundo é coberto de trevas. As nações é que devem andar à
nossa luz. Em outras palavras, temos o que oferecer, mas nada temos para
receber. Porém, o texto prossegue:
“Levanta em
redor os teus olhos, e vê; todos estes já se ajuntaram, e vêm a ti; teus filhos
virão de longe, e tuas filhas serão criadas ao teu lado. Então o verás, e serás iluminado, e o teu coração
estremecerá e se alargará; porque a abundância do mar se tornará a ti, e as riquezas
dos gentios virão a ti.” Isaías 60:4-5
Apesar
de toda a glória recebida do Senhor, devemos levantar nossos olhos à realidade
à nossa volta, e preparar-nos para receber as riquezas das nações que nos virão
em navios pelo mar. É justamente pelo fato de termos recebido a glória do
Senhor é que atrairemos a glória das nações. Cada um dos filhos que de longe
vierem para integrar-se à sociedade dos santos trará consigo suas riquezas
(vv.8-9). Os navios que antes eram usados por Salomão para trazer de Társis
suas riquezas, agora trariam para a cidade de Deus os tesouros das nações.
Em
que consistiriam tais tesouros? Muito mais do que de riquezas materiais, os
tesouros das nações são compostos de sua produção cultural. Cada povo tem sua
própria contribuição a dar na construção da civilização do reino de Deus. Nada
deve ser desprezado: sua música, seus costumes, suas tradições, seu idioma,
etc. O reino de Cristo é multiétnico e multicultural.
Compete
à igreja está aberta para acolher tais expressões. Por isso, o profeta conclui:
“E as tuas portas estarão abertas de contínuo,
nem de dia nem de noite se fecharão; para que tragam a ti as riquezas das
nações, e, conduzidos com elas, os seus reis.” Isaías
60:11
Esta profecia é tão importante
que foi replicada em Apocalipse. No capítulo em que retrata a Nova Jerusalém,
figura da igreja de Cristo, embrião da nova civilização, João diz que “as nações andarão à sua luz; e os reis da
terra trarão para ela a sua glória. As suas portas não se fecharão de dia, e
noite ali não haverá; e a ela trarão a glória e a honra das nações. E não
entrará nela coisa alguma impura” (Ap.
21:24-27a).
Repare em algo: como todo
porto que se preze, nenhuma mercadoria é descarregada sem antes ser
inspecionada pelas autoridades alfandegárias. Antes que algo seja introduzido
na cidade, deve ser examinado. O que for bom, será retido, o que não passar na
inspeção, deverá ser eliminado. Isso combina perfeitamente com a instrução dada
por Paulo aos Tessalonicenses: “Examinai tudo. Retende o que é bom” (1 Ts.5:21). Não se pode agir arbitrariamente,
dispensando uma carga sem antes examiná-la item a item. Tampouco se deve
comprar pacotes fechados. Contêiner por contêiner, mala por mala, caixa por
caixa, devem ser inspecionados.
A
quem é atribuído o dever de inspecionar as mercadorias descarregadas no porto
da cidade de Deus? Em que consiste a alfândega do reino? Seriam as autoridades
eclesiásticas? Nossos líderes espirituais? Seriam eles os censores que dirão o
que devemos ou não consumir? Creio que não.
A alfândega da cidade de Deus
é a nossa consciência. Caberá a ela selecionar o que deve ou não ser
introduzido em nossa vida.
O que torna algo sujo ou imundo é a relação que
estabelecemos com ele. A impureza é uma categoria subjetiva. Por isso Jesus
afirmou: “Nada
há fora do homem, que, nele entrando, possa contaminá-lo; pelo contrário as
coisas que saem dele, são as que o contaminam” (Mc.7:15).
Esta
verdade encontra eco nas palavras incisivas de Paulo: “Eu sei e estou persuadido no Senhor Jesus que nenhuma coisa é em si
impura; a não ser para aquele que a tem como tal, para esse é ela impura”
(Rm.14:14). E mais: “Tudo é puro para os que são puros, mas para os
corrompidos e incrédulos não há nada puro; pelo contrário tanto a sua mente
como a sua consciência são contaminadas” (Tt.1:15).
Portanto, qualquer coisa que
nos chegue às mãos ou aos ouvidos, ou à boca, só será impura se nossa consciência
estiver contaminada. Caso contrário, tudo será puro. Sem esta “boa consciência”,
o navio sequer chegará a atracar no porto. Naufragará antes disso. Daí a
advertência do apóstolo quanto a manter “a
fé e a boa consciência que alguns rejeitaram e, por isso, naufragaram na fé” (1
Tm.1:19).
Uma consciência contaminada é
a que estabelece uma relação de cobiça e posse das coisas. Uma consciência
sadia é aquela que reconhece tanto a fonte quanto os canais pelos quais as
coisas lhe chegaram às mãos e, por isso, é permanentemente grata, sem apegar-se
a nada. Ela desfruta, mas não se apossa. Por isso, não apresenta qualquer
dificuldade em partilhar o que tem recebido.
Cada consciência deve julgar
por si mesmo. Se algo tem potencial de cativá-la e, assim, adoecê-la, deve ser
rejeitado. Como disse Paulo, “todas as coisas me são lícitas, mas nem todas me
convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por
nenhuma delas” (1 Co.6:12).
À luz do que expus aqui,
sinto-me à vontade para apreciar uma boa música secular, ou qualquer outra
manifestação cultural, desfrutar de qualquer prazer lícito sem sentir-me
culpado. Uma consciência pesada é forte candidata ao naufrágio. Será a fé que
trará a estabilidade à nossa nau, impedindo que submerjamos em nossas
presunções e dúvidas. “A fé que tu tens”, arremata Paulo, “guarda-a para ti mesmo diante de Deus.
Bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. Mas aquele que duvida, é condenado se comer, pois o
que faz não é proveniente da fé; e tudo o que não provém da fé, é pecado
(Rm.14:22-23). Portanto, não queira
atribuir objetividade ao que é subjetivo. Antes de julgar ao outro por suas
preferências musicais ou algo parecido, julgue-se a si mesmo e verifique se não
tem deixado entrar em sua vida aquilo que tem usurpado o lugar do Senhor,
exercendo domínio sobre você.
Que nossos portos e portas
estejam abertos continuamente e que jamais deleguemos a outros o dever de
examinar de tudo antes de permitir sua entrada em nossa vida. Afinal, “por que há
de ser julgada a minha liberdade pela consciência de outrem?”
(1 Co.10:29).
Que os gargalos que dificultam
o acesso das riquezas das nações sejam desobstruídos. Que percamos de vez a
mania de coar mosquitos e engolir camelos. E que, uma vez reabertos os nossos portos,
nossa ‘balança comercial’ alcance o devido equilíbrio em que ‘exportemos’ mais
do que ‘importemos’. Em outras palavras, que estejamos abertos tanto para dar
quanto para receber, mas que busquemos um superávit, em que o mundo receba de
nós muito mais do que dele recebemos, já que, segundo Jesus, melhor coisa é dar
do que receber.
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