Por Hermes C. Fernandes
Enquanto a dimensão Ágape do amor focaliza o Bem, a dimensão Eros focaliza a Beleza. O Ágape se ocupa com a ética, enquanto que o Eros se ocupa com a estética.
A espiritualidade cristã sempre foi assediada pelo dualismo. Nele, o material é o oposto do espiritual. O corpo é o oposto da alma. O bom é oposto ao belo. A beleza é sempre vista com certa desconfiança, sendo considerada como algo que seduz, levando fatalmente ao pecado. No dualismo, encontramos de um lado o bem, o ético, e do outro lado, o belo, o estético. Este tipo de espiritualidade insiste em que o bem deve ser buscado às custas do belo.
Roberto Carlos expressou essa tendência dualista em uma composição que diz: “tudo o que eu gosto é imoral, é ilegal, engorda”. Esse tipo de postura gera uma ruptura em nosso ser. Passamos a associar a espiritualidade sadia à tudo que é feio, sem graça, esquisito, e enfadonho.
Passamos a enfatizar Ágape às custas de Eros. Abraçar a feiúra, a insipidez passou a ser o sacrifício necessário para que conquistemos o bem supremo. Onélio Cardozo, célebre escritor cubano, acertou em cheio, quando afirmou: “O ser humano tem duas grandes fomes: a de pão e a de beleza; a primeira, é saciável, a segunda, infindável”.
Portanto, não faz sentido abrir mão do belo, como se isso fosse algo simplesmente supérfluo. A beleza é uma necessidade essencial do ser humano.
Em alguns círculos evangélicos, andar com roupas velhas, antiquadas, puídas, é visto como um sinal de virtude. Já quem procura andar um pouco mais produzido, dá sinais de que está espiritualmente frio, cedendo à vaidade, ao mundanismo. No catolicismo não é muito diferente. Há ordens em que os monges são obrigados a andar de forma mais modesta possível, como se isso fosse espiritualmente relevante.
Para corrigirmos esse dualismo doentio, há que se promover o casamento dessas duas dimensões do amor. Agape e Eros devem caminhar de mãos dadas. Ética e estética, o bem e o belo, não são excludentes entre si, mas expressam em conjunto, o amor, em suas múltiplas dimensões.
O Eros, aliado ao Ágape, manifesta-se como impulso na direção de tudo o que é belo, bom, alegre e verdadeiro.[1] Se o Eros atribui beleza e sentido à vida, o Ágape atribui valor. O Eros faz com que o sacrifício exigido pelo Agape, expresse a beleza do amor. Até uma cena horripilante como a crucifixão de Cristo, passa a ser vista como a mais bela expressão do Amor.
Sem as lentes do Eros, teríamos uma visão daltônica da vida. É o Eros que confere cores ao mundo, fazendo com que nos sintamos extasiados diante do espetáculo da vida.
Na verdade, todos buscamos sentido nas coisas que nos rodeiam. O ser humano busca arrumar as coisas de maneira tal que elas apresentem beleza, ordem, simetria, harmonia. Seja nas artes plásticas, na música, na política, na carreira profissional, na decoração da casa, na relação homem-mulher, queremos que tudo se encaixe perfeitamente, e consiga exprimir sentido e beleza.
Não nos acostumamos ao caos, à desordem, à assimetria. Por isso, diferentemente dos animais irracionais, interagimos com o ambiente, e o remodelamos ao nosso gosto. Queremos que o mundo seja, ao mesmo tempo, bom ao nosso ser, e belo aos nossos olhos. É o casamento de Agape e Eros que nos faz enxergar a vida com censo crítico.
Seria como se pelo Agape percebêssemos o bem que a ingestão de um alimento vai fazer ao nosso corpo. E pelo Eros, apreciássemos o sabor do prato que ingerimos. Quando abraçamos a ambos, comemos pelo bem que nos proporciona, e pelo prazer que nos confere. Sem Eros, até o bem mais precioso seria destituído de beleza e sentido. O mundo seria tão tenebroso, que se tornaria insuportável.
O Eros nos faz enxergar beleza naquilo que é bom. Foi inspirado nele que o salmista apaixonadamente declarou: “Glória e majestade estão perante a sua face; força e formosura no seu santuário [...] Adorai ao Senhor na beleza da sua santidade”.[2] Quando falamos da santidade divina, estamos nos referindo a uma realidade que deveria nos aterrorizar. O fato é que Ele é santo, enquanto nós somos pecadores. Isaías, quando se viu diante da santidade divina, sentiu-se tão aterrorizado que exclamou: “Ai de mim!” Mas quando Agape e Eros se integram, temos uma visão mais clara da majestade divina, e o que deveria nos aterrorizar, acaba nos atraindo por Sua beleza. Sentimo-nos atraídos, amados, perdoados e acolhidos na beleza da santidade do Rei dos Reis. O próprio Isaías profetizou que nos dias da Nova Aliança, quando Eros e Agape se integrassem novamente, veríamos “o Rei na sua formosura”. [3] Como disse John Owen, o grande puritano do século XVII: “Aqui vemos como Cristo é belo, glorioso, e desejável, porque Ele é quem mostra que Deus é amor”.[4]
A encarnação do Verbo Divino veio libertar-nos do dualismo. O Deus invisível revelou-Se na figura d’Aquele Galileu, e finalmente “vimos a sua glória, a glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade [...] Ninguém nunca viu a Deus, mas o Deus unigênito, que está ao lado do Pai, é quem o revelou”.[5] O cosmos foi tomado pela Beleza Divina. A Bondade Eterna revelou Sua Eterna Beleza. Por meio dela, fomos libertos da feiúra do pecado. Gosto do que diz Marcial: “Não há libertação verdadeira que não liberte da feiúra da fome e da dor injusta”.[6] A verdadeira feiúra não está na aparência de alguém, cuja fisionomia não se enquadre nos padrões atuais, e sim, na dor, na injustiça, na fome e no pecado.
Cada época tem seus padrões de beleza. Durante o Renascentismo, a mulher bela era a gordinha, rechonchuda. Naquela época, a gordura era sinal de fartura. A pele deveria ser alva, pois só os servos ficavam expostos ao sol. Por isso, pele bronzeada sinalava servidão. Os tempos são outros. O que antes era feiúra, hoje é beleza.
A verdadeira beleza não é cosmética, mas cósmica. Os cosméticos são obras das mãos humanas, enquanto o cosmos é obra das mãos de Deus. Pedro diz em sua epístola que a verdadeira beleza não é a produzida por cosméticos, e sim “a beleza interior, no incorruptível traje de um espírito manso e tranqüilo, que é precioso diante de Deus”.[7] Não há nada de errado em fazer uso de cosméticos. Tanto a mulher quanto o homem devem buscar cuidar de sua pele, de seus cabelos, e de sua aparência física, não só com cosméticos, mas também com exercícios físicos. O que se deve evitar é a extravagância e o mau gosto. Particularmente, não vejo vantagens em trocar a beleza natural, pela artificial. Os cosméticos devem tão-somente realçar o que já é natural na pessoa. O que não devemos é simplesmente conformar-nos aos padrões impostos pelo mundo, deixando-nos escravizar por eles.
Ninguém precisa ser magérrimo para ser belo. Nem tampouco exibir um corpo escultural. A verdadeira beleza é interior, e acaba se revelando exteriormente, no sorriso, nas expressões faciais e corporais. Salomão estava certo em dizer que “o coração alegre aformoseia o rosto”.[8] É, sobretudo, no olhar, que conseguimos enxergar a beleza interior de alguém. Quanta beleza há num olhar meigo, dócil, ingênuo. De fato, os olhos são as janelas da alma.
A beleza genuína não pode ser comprada ou vendida. Tudo o que podemos fazer com relação a ela, é contemplá-la e acolhê-la. Não podemos nos apropriar dela. Ela está fora do alcance de nossa posse. Ela é gratuidade pura. A melhor coisa a fazer é se deixar maravilhar.
Pode-se comprar um CD, e nele ouvir as belas canções. Mas jamais se poderá comprar a inspiração de quem as compôs. Quando colhemos uma flor, atraídos por sua beleza, arrancamos-na da terra onde estava plantada, e a vemos murchar. Esse é o resultado de querer apropriar-se do belo.
Lembro de ter assistido na TV a uma mulher que afirmou ter gastado cerca de cem mil reais para ficar parecida com uma dançarina famosa. Depois de relatar com detalhes às modificações a que submetera seu corpo e seu rosto, aquela mulher ouviu da dançaria em quem se espelhara, que em vez de preocupar-se em parecer-se com ela fisicamente, ela deveria buscar cuidar de sua beleza interior.
É no afã de adquirir um corpo perfeito, ajustado aos padrões internacionais de beleza, que milhares de jovens e adolescentes estão sendo vítimas de anorexia e bulimia. Não vale a pena sacrificar a saúde em prol da estética.
Nossa sociedade consumista está banalizando a beleza em função do lucro. Substituiu-se a beleza natural pela artificial, o cosmos pelos cosméticos. E em nome dessa beleza artificial, as pessoas estão se mutilando. O maior ícone desse tipo de comportamento em nosso tempo é o cantor norte-americano Michael Jackson. Insatisfeito com sua aparência, ele já se submeteu a várias cirurgias plásticas corretivas, que modificaram completamente a anatomia de seu rosto. Até a cor de sua pele foi alterada.
Não serão as indústrias cosmética e têxtil que farão com que o homem e a mulher modernos alcancem a estética perfeita.
Quando integramos as dimensões Agape e Eros do amor, encontramos a harmonia entre o belo e o bom. O que é ético, passa a ser também estético. De acordo com Von Balthasar, teólogo suíço, com “base nos conceitos transcendentais, existe primeiro o conceito de ‘bondade’, depois se chega à ‘beleza’ e por fim se encontra a expressão desta, que é a ‘verdade’”.[9] Através da revelação de Deus exposta no Evangelho, passamos a maravilhar-nos estupefatos diante da beleza de Cristo. O que é bom passa a ser apreciado em sua beleza. Sem esta revelação concedida pelo Espírito Santo, olhamos para Cristo, e não vemos qualquer beleza. Nas palavras de Isaías, em Seu sofrimento vicário, Cristo “não tinha parecer nem formosura; e, olhando nos para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais indigno entre os homens, homem de dores, e experimentado no sofrimento. Como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum”.[10] Sem a revelação da Graça, a Cruz não expressa qualquer bem ou beleza. Ainda hoje, as pessoas ficam horrorizadas diante de uma encenação da crucifixão de Cristo. Não foi em vão que o filme “A paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson, e que retratou de forma crua o martírio de Jesus, foi taxado pelos críticos como um filme extremamente violento e sensacionalista.
Isso se dá pelo fato de que “o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”.[11]
No homem sem Deus, o Eros está desvinculado do Agape. E o resultado disso é que ele aprecia o que é mal, e sente-se atraído pelo que é errado. A ele cabe a advertência bíblica: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal, que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade, que põem o amargo por doce, e o doce por amargo”.[12]
Mas quando nos convertemos a Deus, por intermédio de Cristo, o Eros e o Agape se integram novamente, e passamos a desejar o que realmente é digno de ser desejado.
Conhecendo a verdade, somos libertos da superficialidade, da escravidão da vaidade, e somos conduzidos à genuína beleza, que reside na bondade do Criador.
Uma vez tendo provado da bondade de Cristo, sentir-nos-emos atraídos a Ele. [13] Passaremos, então, a ocupar nossa mente com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama”, em que haja “alguma virtude” e “algum louvor”.[14] Ocupar nossa mente com tais coisas não será um exercício hercúleo, torturante, mas sim, algo extremamente prazeroso. Nosso coração estará batendo no compasso do coração de nosso Pai Celestial.
[1] A trindade grega das virtudes estéticas são o bom, o verdadeiro e o belo.[2] Salmo 96:6,9[3] Isaías 33:17[4] Owen, John, A Glória de Cristo, PES, P.20[5] João 1:14b,18[6] Maçaneiro, Marcial, Mística e erótica, p.18[7] 1 Pedro 3:4[8] Provérbios 15:13[9] Extraído do livro Os Grandes Teólogos do Século XX, de Battista Mondin, p.549[10] Isaías 53:2-3[11] 2 Coríntios 4:4[12] Isaías 5:20[13] 1 Pedro 2:3-4[14] Filipenses 4:8
Extraído do Livro "Amor Radical" , de Hermes C. Fernandes
Pastor Hermes eh sempre agradadável estar em seu blog Parabéns.
ResponderExcluirPreletora Mariza Fran
www.PreletoraMariza.com
A paz pastor Hermes, cmo consigo o seu livro? Onde posso comprá-lo?
ResponderExcluirDeus o abençoe!
A frase mais bela que já ouvi de um Ser humano foi quando, no meio de um dialogo conflituoso, o ancião da nossa Congregação falou com o coração nos olhos:
ResponderExcluir"eu vivo para a irmandade".
PAIXÃO, Edson.
é nisso que eu creio
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