Jesus foi o único ser autenticamente humano. Para que fosse devidamente aprovado, teve que passar por um severo teste de qualidade em que enfrentou tudo o que desumaniza o ser.
O escritor sagrado afirma que Ele, "como nós, em tudo foi tentado" (Hb.4:15). Porém, resistiu firmemente, tornando-se "homem aprovado por Deus" (At.2:22). Fora Ele, todos foram reprovados e invariavelmente nos mesmos quesitos. Somos, por assim dizer, esboços humanos. Cristo é o único devidamente acabado. Como ser humano por excelência, Ele é tudo o que fomos vocacionados a ser. E agora mesmo, o Espírito Santo, o sumo arte-finalista, está reforçando em nós os traços da imagem e semelhança de Deus, enquanto apaga as rasuras feitas pelo pecado. Estamos destinados a ser como Ele é, verdadeira e plenamente humano.
O episódio conhecido como "A tentação no deserto" nos permite uma leitura arquetípica. Nele, Cristo é provado nas mesmas esferas em que todos os homens o são, a saber, nas áreas do prazer, poder, posse, prestígio e pressa.
Tão logo deixou a cena batismal, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado. Repare: Ele não foi levado para se consagrar, para jejuar, ou coisa parecida, mas para ser tentado. O jejum de quarenta dias não visava torná-lo mais forte para resistir, e sim mais fraco para que a tentação fosse legítima. Se não tivesse fome, não se sentiria realmente tentado com a sugestão de transformar pedras em pães.
Enquanto o primeiro homem foi tentado num cenário paradisíaco, tendo acesso a todas as árvores e frutos (exceto o que lhe fora vetado por Deus), o segundo Adão, Jesus, foi tentado num cenário inóspito, privado de qualquer conforto. O primeiro caiu, o segundo, manteve-se de pé. Portanto, não depende do cenário, se num deserto ou num jardim. Não depende se estamos de barriga cheia ou vazia.
Quem o conduz ao deserto é ninguém menos que o próprio Espírito de Deus, aquele que manifestou-se sobre Ele em forma corpórea de uma pomba.
Na primeira investida do diabo, fora-lhe dito: "Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães." O que haveria de imoral ou mesmo antiético em usar Seu poder para transformar pedras em pães? Absolutamente nada. Seria precipitado acreditar que toda tentação vai de encontro a um princípio moral ou ético. O que concede à sugestão o status de tentação é a sua procedência. Por isso, Jesus responde: "Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus." O problema não eram as pedras ou os pães mas a boca de onde procedia tal palavra. Se não vem da boca de Deus, corre sérios riscos de vir da boca do diabo. E se este for o caso, só nos cabe rechaçar, por mais razoável que pareça ser.
A primeira tentação opera na área sensorial, onde habita nossas necessidades físicas e emocionais. Cada uma delas quando saciada promove prazer. Sentimos prazer no sono, na ingestão de alimento, no sexo. O prazer é um bônus concedido pelo Criador, porém, jamais deveria ser visto como o supremo objetivo da vida. Comemos porque precisamos sobreviver. Dormimos porque temos que recarregar as baterias e assim, estar prontos para trabalhar. Fazemos sexo para expressar nosso carinho e afeição pela pessoa amada (não apenas para a reprodução). O hedonista é aquele que busca o prazer pelo prazer, independente dos efeitos colaterais ou do sofrimento que poderá causar a outros.
Na busca frenética por satisfação, muitos se dispõem a transformar pedras em pães. Buscam prazer em canais que não foram criados para isso. Um exemplo é a pornografia. Tentar extrair dela um prazer só encontrado na relação a dois é doentio na medida em que coisifica o ser humano. Outros buscam em relações extraconjugais o que deveria ser encontrado em seu próprio casamento. Sexo requer interação, troca de fluídos (tanto corporais, quanto emocionais), cumplicidade, carinho e... compromisso. O que não nos humaniza, nos coisifica. Jesus repudiou a sugestão de Satanás em usar Seu poder para transformar um mineral em fonte de nutrientes como carboidratos, proteínas e vitaminas. Comer faz bem, mas glutonaria não. Dormir é bom, mas preguiça não. Sexo é bênção, mas promiscuidade é maldição. Na área do prazer o que distingue o remédio do veneno é a dosagem. Se fizermos do prazer o objetivo central de nossas vidas ele se tornará vício e nos consumirá como uma droga. Toda palavra que procede da boca do diabo nos instiga à compulsão. A Palavra procedente da boca de Deus nos estimula o equilíbrio.
Aprovado nesta área, o diabo o levou a outro cenário para ter Seu poder colocado à prova.
"Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo,e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra."Se Jesus fosse dado à performance, certamente teria cedido ao apelo do diabo. Mas Ele jamais Se preocupou em provar nada a quem quer que fosse. Jamais deixou-se seduzir pelo poder. O que tornava esta tentação mais desafiadora não era a altura do pináculo mas a promessa de que haveria anjos trabalhando em Seu favor para impedir que Ele se esborrachasse no chão. Esta é a tentação do poder. Sentimo-nos confortáveis de saber que tem gente trabalhando para nós, sob nossas ordens diretas. Por que o cenário escolhido foi o pináculo do templo? Porque de lá Ele teria plateia. Os próprios sacerdotes testemunhariam assombrados Sua demonstração de poder. Sem plateia não há aplauso. Aquilo não era tentação para o deserto, onde ninguém assistiria. Estava em jogo tanto o Seu poder quanto o Seu prestígio. Repare que as duas primeiras tentações começam com a frase "Se tu és o filho de Deus...". Em outras palavras: - Mostra pra todo mundo que você é o cara!
Tanto o poder como a busca desesperada por prestígio e reconhecimento desumanizam o ser. Almejamos o poder para nos sentir importantes e não para usá-lo em favor do bem comum. A notoriedade deixa de ser consequência natural de quando se busca a excelência naquilo que se faz para tornar-se no alvo dos alvos. Poder e prestígio se unem e conspiram contra nossa humanidade.
Observe que o diabo usou descaradamente um trecho das Escrituras para compor sua indecorosa proposta. Ninguém conhece tão bem a Bíblia quanto ele. Sua estratégia é justificada pelo fato de Jesus ter afirmado que só aceitaria palavras cujo procedimento fosse a boca de Deus. Porém, Jesus não deixou barato: "Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus."
Um conhecimento medíocre das Escrituras pode causar danos tão grandes quanto a ignorância. Antes de abonar qualquer ensino ou doutrina baseados nas Escrituras, confiramos o que "também está escrito". Texto sem contexto é pretexto... Se fôssemos mais atentos, muitas heresias não se criavam...
Nesta resposta, Jesus deixa claro que acatar a sugestão do maligno era o mesmo que tentar a Deus. Não temos o direito de pinçar uma promessa e cobrar de Deus o seu cumprimento. Assim como nós, Deus não tem nada que provar a ninguém.
Em sua última cartada, o diabo o transportou "a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares."
Alguns acham que Satanás estava blefando. Penso que não. Até aquele momento ele ainda era o príncipe deste mundo. Prometer o que não pode entregar não é uma tentação legítima. Nesta tentação encontramos dois elementos desumanizadores: a posse e a pressa.
Para instigar-lhe a cobiça, o diabo levou-o a um lugar de onde tivesse uma vista panorâmica (360o) de todos os reinos do mundo. Bastava que Jesus caísse prostrado aos seus pés e pronto... o mundo inteiro lhe seria entregue de mão beijada. Tentador, não?
Quantos vendem a alma ao diabo para ter o que desejam! O problema da posse é que ela geralmente é uma estrada de mão-dupla. Tudo o que possuímos também nos possui. Somos consumidos por aquilo que elegemos como nosso sonho de consumo. Sucumbidos ante ao apelo publicitário, nunca estamos satisfeitos com o que temos. Sempre queremos mais, mais e mais; ainda que para alcançarmos as coisas, tenhamos que usar as pessoas. As coisas, em vez de as pessoas, tornaram-se objetos do nosso amor e devoção. Ceder ao apelo consumista é prostrar-se diante de Satanás. É etiquetar a alma e vende-la por qualquer bagatela, ignorando o altíssimo preço pago por Cristo pela sua redenção.
Prazer, poder, prestígio, posse e... pressa!
Jesus tinha um cronograma que incluía sofrer perseguições, acusações falsas, traições, e por fim, uma morte vexatória na cruz. Tudo isso para que o mundo com todos os seus reinos fosse resgatado e devolvido a quem de direito (Ap.11:15). Satanás propõe-lhe um atalho. Ora, quem toma atalho é porque tem pressa. Em vez de cruz, genuflexão. Em vez de sacrifício, submissão cega ao príncipe deste mundo.
Na era da pressa cultua-se a velocidade. Tudo é pra ontem. Ninguém tem paciência de esperar o tempo de maturação. Antes, o apressado comia cru, hoje, o apressado come macarrão instantâneo ou comida congelada levada ao micro-ondas. Em vez de paciência, cultivamos a ansiedade como se fosse virtude.
Uma vez proferida a resposta que deu um 'chega-pra-lá' no diabo, "eis que chegaram os anjos e o serviam" (Mt.4:11). De onde concluímos que é melhor esperar e ser servido por anjos do que meter os pés pelas mãos e passar o resto da vida tendo do que se arrepender.
Aprendemos com este episódio que há cinco forças que conspiram contra a nossa humanidade e buscam nos coisificar. Cada uma delas nos revela um inimigo para o qual não podemos dar trégua:
* A carne (instigando-nos a priorizar o prazer a qualquer custo)
* O diabo (oferecendo-nos poder ou buscando fazer com que o usemos em benefício próprio)
* O mundo (atiçando nossa cobiça, oferecendo-nos posse)
* O ego (em sua ânsia por prestígio, glória, reconhecimento)
* O tempo (incitando-nos à ansiedade)
Como prevalecer sobre eles? Há dois caminhos diante de nós. O primeiro deles é o do legalismo que, com todas as suas proibições e ordenanças só faz colocar o vírus do pecado em quarentena. O segundo é a graça manifestada na cruz, a única capaz de neutralizá-lo e eliminá-lo. Uma vez crucificados com Cristo, deixamos de viver para nós mesmos e passamos a viver exclusivamente em função do propósito para o qual fomos criados e resgatados. Portanto, já não vivemos em função do prazer, do poder, do prestígio, da posse ou da pressa, mas em função do propósito. É um "p" que vale por todos os outros "p's".
Somente depois de experimentarmos o poder da cruz, estaremos habilitados a combater o desejo de poder com serviço, a ânsia por posse com partilha, a paixão por prazer com renúncia, a busca por prestígio com humildade e a pressa com perseverança.
Enquanto uns buscam bens para desfrutar, outros, poder para se beneficiar, outros, experiências para contar e outros, aplausos e reconhecimento para se vangloriar, receberemos do Senhor bens para repartir, poder para servir, experiências para ensinar e ainda por cima, transferiremos toda glória que recebermos para Aquele a quem reconhecemos como nossa única fonte.
Tudo o que nos é oferecido tem prazo de validade. O poder perece quando nossa habilidade é superada, e somos substituídos por alguém mais competente. A posse termina quando o bem adquirido se desgasta e vira lixo. O prazer é momentâneo, termina quando a necessidade é suprida. O prestígio de hoje é o anonimato de amanhã. Quem hoje nos aplaude, amanhã no vaia ou nos esquece. A única coisa que dura para sempre é o amor. Ele é que confere propósito à nossa existência.
Tudo é vaidade! Tudo é saudade. As pessoas entram em nossa vida como quem já acena se despedindo. As coisas que pareciam tão duráveis desaparecem como miragem. O carro zero de hoje é a lata velha de amanhã. A roupa de grife vira pano de chão. O poder um dia se aposenta. A beleza atraente se esvai e sobra a exaustão e o tédio. Os aplausos se silenciam... Só sobra o amor.
E é este amor que nos constrange, "julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co. 5:14-15).
E é este amor que nos constrange, "julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co. 5:14-15).
O antídoto contra o veneno do "viver-para-si" (que é o coração de toda tentação e que desumaniza o ser) pode ser encontrado no finalzinho da doxologia de Paulo:
"Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém." Romanos 11:36
Ora, se todas as coisas são d'Ele, logo, não há sentido em fazer da busca da posse o objetivo da existência. Tudo o que há já tem um dono: Jesus. Se todas as coisas subsistem "por Ele", logo todo o poder está concentrado em Suas mãos. Seria bobagem usurpá-lo. Se tudo existe "para Ele", logo é a Sua satisfação que deve ser alcançada, não a nossa. Porém, quando priorizamos o prazer divino, Ele nos faz participantes do mesmo. O que capacitou Jesus a vencer todas as tentações foi a palavra que ouvira da boca do Pai assim que foi batizado: "Este é o meu Filho amado em quem tenho prazer". Nossa busca frenética por satisfação pessoal é substituída pela busca daquilo que agrade a Deus. Diante de tudo isso, concluímos que a glória deva ser exclusiva do Senhor. Diferente da glória deste mundo que murcha com o tempo, a glória celestial é eterna. Daí não haver mais necessidade de sermos consumidos pela pressa. Vivemos para a eternidade. Como dizia Renato Russo, "temos todo o tempo do mundo", ou melhor, "temos toda a eternidade". Pressa pra quê?
Fico queimando aqui meus neurônios à respeito daquela parte onde o diabo mostra a Jesus todo o reino da terra encima de um monte. Como seria possível isso? Holograma? Alguma tecnologia na época? Porque daquele monte em Jerusalém não daria para ver outro país ou local distante de lá, enfim todo o mundo ? Muita coisa oculta nesse trecho ... e que se estende para os dias de hoje. Glória , poder , fama , etc... tecnologia avançada e tantas outras coisas que podemos observar!
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