sábado, julho 03, 2010

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Os discursos ausentes

Para Harold Bloom, a personalidade é uma invenção de Shakespeare; para Derrida, o indivíduo é uma ilusão criada pela intersecção do corpo com o discurso das estruturas de poder. Em alguma medida todos que estudam o assunto concordam que foram necessários milênios de evolução cultural para que o conceito de indivíduo saísse pela primeira vez do oceano indiferenciado da cultura da coletividade. Os gregos lhe deram pernas e o Renascimento moveu-se de paixão por ele, mas foi o capitalismo de livre-mercado – o mundo em que vivemos – que colocou finalmente o indivíduo acima de todos os outros deuses.

Esse lento despertar do indivíduo de seu sono no seio coletivo está refletido no próprio fio narrativo da Bíblia. No Pentateuco e, em grande medida, nas crônicas históricas, a coletividade prevalece de forma muito evidente sobre o indivíduo. Os mandamentos e as promessas, as injunções e as ameaças, dizem respeito ao povo como um todo e requerem coletiva obediência1. Mesmo notáveis como Moisés, Abraão e Davi são celebrados menos pelos seus traços de personalidade do que pelo seu papel na sustentação e fixação do caráter da comunidade. Num certo sentido só existe o coletivo: os méritos de Israel são medidos pelo desempenho do grupo, e todos são castigados pelo erro de uns poucos.

Então, em algum momento da história e talvez sob a influência transversal dos gregos, os profetas abandonam a ênfase tradicional na responsabilidade coletiva e começam a enfatizar a responsabilidade individual. A justiça divina passa a ser compreendida de uma nova maneira, e nela os filhos deixam de ser punidos pelas transgressões dos pais. Deus deixa de visitar as gerações e a massa indistinta dos “filhos de Israel” e passa a procurar homem a homem um coração contrito em que possa reclinar a cabeça.

O ensino de Jesus surge num momento em que o conceito de responsabilidade individual já está bastante desenvolvido no tecido cultural de Israel. O Filho do Homem, por um lado, reforça ao extremo essa tendência, denunciando os abusos da religiosidade coletiva-institucional e requerendo de cada um o posicionamento e o engajamento que o distinga da ilusão da massa. Por outro lado, Jesus reverte por completo o alvo e o fim da individualidade, deixando claro que o indivíduo só encontra realização, significado e verdadeira satisfação no serviço voluntário e não-condicionado do próximo. O conceito de metanoia, como apresentado por Jesus e pelo seu precursor, diz respeito a esse duplo despertar do humano para sua individualidade e para seu destino glorioso no seio do Outro. Porque para Jesus só existe o indivíduo, mas a qualidade da relação do indivíduo com Deus e consigo mesmo tem uma única medida, a da qualidade da sua relação com o outro. “Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, a mim o fizestes”.

Dos discursos ausentes de Atos e do Novo Testamento, o mais revelador – tanto da mentalidade da comunidade original quanto da nossa – talvez seja o apelo ao indivíduo que caracteriza toda a evangelização contemporânea, e encontra sua manifestação mais comum na fórmula “Jesus te ama”.

Os colonizadores bíblicos do reino encontraram muitas maneiras de propor a boa nova, mas parece que nenhuma delas passa por enfatizar o amor individual e incondicional de Jesus (ou de Deus) pelo ouvinte. A Bíblia está muito mais inclinada a dizer que Jesus é Deus, e que Deus é amor, do que a fornecer ao seu leitor o conforto (que oferecemos a qualquer um) de que Jesus o ama. Isso porque articular a boa nova como “Jesus te ama” requer como pré-condição uma sociedade inteiramente obcecada com a ideia do indivíduo: a nossa sociedade.

Há um oceano de diferença entre dizer, como a o Novo Testamento, “Deus é amor”, e dizer, como dizemos, “Jesus ama você”; entre dizer como a Bíblia “andem em amor, como Cristo também os amou”, e dizer como dizemos “Jesus te ama”. A articulação bíblica, de que Deus é amor, requer uma resposta ativa de amor ao outro, e sugere um trajeto que resgate o ouvinte do abismo sem fundo do individualismo. A conclusão necessária de ouvir “Deus é amor” é um incômodo devo amar. Nossa própria articulação, “Jesus te ama”, requer uma resposta meramente passiva e ignora por completo a questão da minha relação com o outro. A conclusão necessária de ouvir “Jesus te ama” é um confortável sou amado. Para a Bíblia, o amor é um desafio que me resgata de mim mesmo; para o evangelismo contemporâneo, é um conforto que me faz afundar ainda mais dentro de mim.

Porque o Novo Testamento, que não cessa de atestar o amor de Deus, não se rebaixa como nós a usar esse amor como fonte de conforto e acomodação. Ao contrário, o amor divino requer a mais urgente e intransigente das respostas, a imitação:

Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.

Amados, se Deus assim nos amou, nós também devemos amar-nos uns aos outros.

Dizer “Jesus te ama” é sugerir que o sentido do movimento do reino é para dentro do indivíduo; a Bíblia, em contrapartida, insiste que o movimento do reino é no sentido oposto, do indivíduo para fora. Essa, do indivíduo para fora, é na verdade a única definição concebível de amor. Aqui está o padre francês François Varillon, lembrando que amar (isto é, ser salvo; isto é, ser como Deus) requer um movimento, uma transferência de centro, de nós mesmos para o outro:

Descentro-me para que meu próprio centro não mais me pertença; de agora em diante seja você o meu núcleo. [...] Amar é renunciar a viver em si, por si e para si. Eis o mistério da Trindade: se o amor é acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus. Ninguém se dá a si mesmo, nem a si mesmo acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é movimento para o Filho. O Filho é Filho para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles.

Dizer “Jesus te ama” é dirigir-se circularmente ao indivíduo, e para salvar o indivíduo é preciso resgatá-lo de si mesmo. Na narrativa de Atos a boa nova é que a obra de Jesus libertou seus ouvintes não para descansarem no privilégio inescapável de serem amados – mas para capacitá-los a fazer a coisa certa. E, se pecar é omitir-se, fazer a coisa certa é colocar o amor em prática. É por isso que, para os autores do Novo Testamento, amar (e nisso imitar a divindade) é privilégio e responsabilidade tão grande que diante dele ser amado representa a mais acessória das faculdades.

Nossa tendência é acreditar na pregação que afirma que viver o amor requer a negação do eu e equivale à completa renúncia da individualidade. A verdade é muito mais desafiadora e interessante, porque o amor é a única afirmação possível do eu. Jesus tornou-se grande no que amou; encontrou a mais completa e contagiante humanidade no ato de atribuir valor aos mais desprezíveis dos seus interlocutores. O inferno é o conforto da paralisia do ego, e a inteireza do eu está no trajeto para os outros.

Um comentário:

  1. Barbosa10:35 AM

    Irmão HERMES,Graça e Paz daquele que Vive para todo sempre,JESUS CRISTO DE NAZARÉ.
    Irmão HERMES,gostaria de falar sobre o AMOR se o Irmão me permitir ok?
    No livro de Apócalipse 2.4 diz: Tenho, porém,contra ti que deixaste o teu primeiro amor.
    Isto se refere ao primeiro e profundo amor e dedicação que os efésios tinham por JJESUS e sua Palavra ver no livro de João 14.15,21, e 21.15,10.
    1- Esta advertência nos ensina que conhecer a doutrina correta,obedecer a alguns dos mandamentos e ir aos cultos na igreja não bastam. A igreja deve ter,acima de tudo,amor sincero a JESUS CRISTO e a sua Palavra como todo ver nos livros de Mateus 5.17; 2 Corintios 11.3 Deuteronômio 10.12.
    2- O amor sincero a JESUS CRISTO resulta em devoção sincera a Ele,em pureza de Vida em amor à VERDADE QUE É JESUS E SUA PALAVRA ver nos livros de 2 Corintios 11.3; Mateus 22.37,39; João 21.15.
    JESUS CRISTO rejeitará toda congregação ou igreja,o povo que não se arrepender de seus pecados e de sua falta de AMOR a seu próximo a seu Irmão,principalmente a obediência ao SENHOR JESUS CRISTO,Ele removerá todos do seu REINO.
    No livro de I João 4.16 diz: E nós conhecemos e cremos no AMOR que DEUS nos tem. DEUS é AMOR e quem está em AMOR está em DEUS,e DEUS nele.
    Embora o AMOR seja um aspecto do fruto do ESPÍRITO e uma evidência do novo nascimento,é também algo que temos a responsabilidade de desenvolver. Por essa razão,João nos exorta a AMAR uns aos outors,a termos solicitude por eles e procurar o bem-estar deles. João não está falando apenas em sentimento de boa-vontade,mas em disposição decisiva e prática,de ajudar as pessoas nas suas necessidades ver nos livros de Gálatas 5.22,23;
    e 2.29; 3.9,10; 5.1; 3.16-18 e Lucas 6.31.
    João nos admoesta a demostrar AMOR,por três razões.
    1- O AMOR é a própria natureza de DEUS,e Ele o demostrou ao dar seu próprio FILHO por nós,compartilhamos da sua natureza porque nascemos dEle ver no livo de I João 4.7-7,9,10.
    2- Porque DEUS nos AMOU,nós,que temos experimentado o seu AMOR,PERDÃO e AJUDA,temos a obrigação de ajudar o próximo,mesmo com grande custo pessoal.
    3- Se AMARMOS uns outros,DEUS continua a habitar em nós,e o seu AMOR é em nós aperfeiçoado ver no livro de I João 4.12.
    DEUS deixou dois mandamentos: AMAI O TEU DEUS DE TODO O TEU CORAÇÃO E DE TODO O TEU ENTENDIMENTO,E AMAR O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO.

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