Até para piorar, tenho que me aperfeiçoar. A decadência exige preparo e esforço. Uma sucessão de corridas cardíacas.
Eu me concentro na tristeza. Entro numa regressão hipnótica, exploro o que há de mais confuso para esquecer as perguntas. Puxo as piores lembranças, repriso cenas remotas de escárnio, inclusive invento algumas na ausência de motivo. Soluço para borbulhar minha garganta e miro em um ponto fixo da infância. Não vale a pena pagar o ingresso. O desespero se repete e apenas empobrece sua interpretação.
Chorar é uma das atitudes mais ensaiadas da vida. Choro mesmo termina em esfoliação com os botões da manga, não vamos procurar lenço de papel ou a porção mais macia da roupa. No choro mesmo, a mulher não se lembrará de que está desmanchando a pintura e escorrendo o batom, o homem não irá olhar aos lados para não ser apanhado balbuciando em russo. Choro mesmo desidrata, não se importa com o que os outros vão pensar.
O desencanto representa uma decisão, não uma fatalidade, e não estou falando de situações de luto e perda. Refiro-me a tristezas ordinárias, miúdas, à toa, que poderíamos sair com facilidade, mas decidimos retardar o estado para criar importância. O coitado acredita que chamar atenção é melhor do que dar atenção.
Ao invés de acolher gentilezas e mudar de assunto, produzimos o efeito contrário e mergulhamos na mendicância de si. Na arrogância de mendigo. O mendigo não aceita qualquer coisa, ele cobra sua pobreza.
Os olhos são chapéus recebendo moedas. Optamos pela posição mais desconfortável, própria de suicida a ser encontrado pelos vizinhos. Nunca cogitaremos um travesseiro ou uma almofada de apoio para as costas. Deitaremos em percevejos para acentuar o martírio e contrair a ferrugem das obsessões.
Há a noção de que a tristeza é gratuita, irreversível. Não avaliamos o quanto trabalhamos para que ela cresça e se multiplique em filhos.
Colocamos a música mais plangente no aparelho, telefonamos para o amigo mais catatônico, retiramos o extrato da conta, marcamos uma reunião com o chefe para ouvir as críticas de nosso serviço. Tristeza é premeditada. Há muita mobilidade para conseguir a imobilidade. Não se forma uma melancolia sem uma imensa vontade de se destruir e forjar provas.
Nossa tristeza é bastarda, mente que não tem pai e mãe e tampouco deseja ser adotada. O modo mais contundente de abandoná-la é não pensar. Mas pensamos, nos acusamos, nos processamos.
Cresce a piedade do que nem se ouviu. Destinamos toda a nossa generosidade para nos deserdar.
A humildade que surge da tristeza é falsa. Humildade não significa se rebaixar, e sim reconhecer nossa pequeneza. A pequeneza de aceitar que a alegria pode não ser nossa e ainda assim nos pertencer.
Texto de Fabrício Carpinejar [via Pavablog]
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