Por Hermes C. Fernandes
Ubuntu é uma filosofia de origem africana que expressa a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade. Trata-se de um conceito amplo sobre a essência do ser humano e a maneira como deve se comportar em sociedade. Este conceito foi uma importante ferramenta na luta contra o regime Apartheid na África do Sul. Nelson Mandela inspirou-se nele para conduzir a política de reconciliação nacional, que uniu várias etnias em torno de um projeto que visava transformar aquele país num exemplo de superação de conflitos étnicos. De acordo com o manifesto do movimento criado por Mandela em 1944, “o africano quer o universo como um todo orgânico que tende à harmonia e no qual as partes individuais existem somente como aspectos da unidade universal.”
De acordo com o arcebispo anglicano Desmond Tutu, autor de uma teologia ubuntu “a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade.” Em seu livro "No Future Without Forgiveness" (em português: "Sem perdão não há futuro"), Tutu explica: “Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em uma autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são torturadas ou oprimidas.” Tudo isso, porque, “uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas.”
O ser humano solitário é uma contradição. Diferente da lógica cartesiana que tem conduzido o Ocidente por séculos, em vez de “penso, logo existo”, a filosofia africana Ubuntu diz: “Existo porque pertenço.” Ubuntu, portanto, implica compaixão, comunhão e abertura de espírito ao outro, opondo-se ao narcisismo e ao individualismo tão predominante nas sociedades ocidentais.
A educadora sul-africana Dalene Swanson, professora da University of British Columbia, em Vancouver, Canadá, fala o seguinte a respeito do ubuntu:
“Diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, o ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma concepção do ser humano. Este é todo o sentido do ubuntu e do humanismo africano. A pessoa só é humana por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros: (…) o valor de sua humanidade está diretamente relacionado à forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignidade dos outros; a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com sua irmã e seu irmão.”
Há uma história que circula na internet atribuída a filosofa e jornalista Lia Diskin, que teria sido contada durante o Festival Mundial da Paz ocorrido em Florianópolis em 2006, e que exemplifica eloquentemente o sentido da filosofia Ubuntu:
“Um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Como tinha muito tempo ainda até o embarque, ele então propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva. Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí, ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", imediatamente, todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e os comerem felizes. O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo...”
Como é difícil para alguém acostumado ao espírito competitivo que rege as culturas consideradas mais avançadas do mundo, pelo menos do ponto de vista econômico, entender este tipo de comportamento baseado na cooperação, em que ninguém precisa perder para que outro ganhe. Segundo o espírito de Ubuntu, as pessoas não devem buscar levar vantagem pessoal em detrimento do bem-estar do grupo. A felicidade de um não pode custar a infelicidade dos demais. Para que uma pessoa seja plenamente feliz será preciso que todas do grupo se sintam igualmente felizes. E não é isso que dizem as Escrituras? O apóstolo João afirma que nossa alegria só será completa num ambiente de comunhão, onde a alegria de um completa a alegria do outro (1 João 1:3-4 ).
Ninguém é feliz sozinho. Por isso, Paulo não se incomodou em suplicar: “Completem a minha alegria, tendo o mesmo sentimento, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude” (Filipenses 2:2).
Estamos conectados uns com os outros e essa relação estende-se aos que vieram antes de nós e aos que ainda hão de nascer. Fomos convidados por Jesus a tomar assento à mesa do reino de Deus, ao lado de Abraão, Isaque e Jacó e de toda a sua descendência espiritual. Formamos todos uma única família, a família humana, reconciliados com Deus e uns com os outros por meio de Seu Filho Jesus Cristo. Vemos, então, que o legado que recebemos dos povos africanos vai muito além da música, da comida, das crenças, do folclore. Fomos agraciados com conceitos desta envergadura, capazes de demolir estruturas injustas como a do Apartheid.
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