Por Hermes C. Fernandes
O termo
"mito" tem sido exaustiva e equivocadamente usado de forma pejorativa
para se referir às crenças comuns de diversas sociedades, sendo consideradas desprovidas
de fundamento objetivo ou científico, e rejeitadas como estórias de um universo
fantasioso. Entretanto, até acontecimentos históricos podem ser transformados
em mitos ao adquirirem uma carga simbólica no imaginário de um povo em
particular. Portanto, não tem a ver com o fato e a sua veracidade, mas com o
significado atribuído ao mesmo. Um
conjunto de mitos articulados entre si se constituem em uma mitologia, como os
relatos das civilizações antigas (por exemplo, a mitologia grega, a mitologia
romana e a mitologia nórdica).
Um mito é
uma narrativa tradicional de caráter explicativo e simbólico, relacionado a uma
cultura ou religião, que enseja explicar os principais acontecimentos da vida
como o nascimento e a morte, os fenômenos naturais, as origens do universo e do
homem, etc. O mito é, por assim dizer, uma tentativa de explicar e dar sentido
à realidade.
Para
entendermos o mito, temos que compreender o mundo hostil habitado pelo homem
primitivo, repleto de fenômenos inexplicáveis que lhe causavam, ao mesmo tempo,
pavor e encantamento. Para afastar a insegurança, ele desenvolveu uma linguagem
interpretativa que tornasse tais fenômenos compreensíveis. Através do mito, o
mundo era explicado de forma poética e alegórica, atribuindo a origem de seus
fenômenos a seres sobrenaturais como deuses, semideuses e heróis. Podemos
definir o mito como uma narrativa simbólica e sagrada que provê ao homem
condições de existir no mundo, atribuindo-lhe sentido e significado, e
modelando comportamentos, contribuindo, então, para a manutenção e perpetuação
de sua cultura.
Cada
cultura tem seus próprios mitos, alguns dos quais são expressões particulares
de arquétipos comuns a toda humanidade. Por exemplo, os mitos sobre a criação
do mundo repetem temas como o ovo cósmico[1],
ou o deus morto e esquartejado de cujas partes é criado tudo o que existe.[2]
A narrativa
mítica é inversa à filosófica que busca por meio de discussões, reflexões e
argumentos compreender e explicar a realidade a partir da razão e da lógica. O mito,
em contra partida, procura interpretá-la através de lendas e de estórias
sagradas, não tendo quaisquer argumentos que suportem racionalmente a sua
interpretação. Apesar de não se orientarem por um raciocínio lógico,
essas narrativas simbólicas são uma forma metafórica de transmitir
conhecimentos fundamentais à sobrevivência humana. A mitologia baseia-se na
crença na existência de uma esfera invisível, sobrenatural, inacessível aos
sentidos, que sustenta o que é visível. Os mitos nos propõem uma dimensão de
mistério do Universo. Não se trata de delírio, muito menos de uma simples
mentira. Como vimos, desde os tempos mais remotos, os seres humanos se preocupam
em buscar explicações que confiram sentido à existência, ao mesmo tempo em que
inspirem, encorajem atos heroicos e despertem os mais nobres sentimentos. De
certa maneira, pode-se dizer que o mito ainda faça parte da nossa vida
cotidiana como umas das formas do existir humano. Alguns são fornecidos pela
própria história, forjados a partir de personagens como Tirandentes, Martin
Luther King, Pelé, Ghandi e Mandela.
Fatos
verídicos são floreados para se tornarem mais atrativos, como por exemplo, o Grito
do Ipiranga. O reconhecido quadro do pintor Pedro Américo que retrata o momento
em que D. Pedro I bradou “Independência ou morte!” passa uma atmosfera épica e
heróica, com Dom Pedro montado em seu imponente cavalo, levantando uma espada,
rodeado pelos dragões da independência. Sabe-se, porém, através de pesquisas
históricas que ele estava montado em uma mula, animal muito utilizado na época
para grandes viagens. O grito de independência não ocorreu nas margens do rio
Ipiranga, e sim em uma colina localizada próximo ao riacho Ipiranga. E para
completar, D. Pedro estava com uma terrível dor de barriga, devido a algo que
teria comido no dia anterior. Quem se sentiria inspirado diante de um quadro
que retratasse fielmente o momento em que a independência do Brasil foi
proclamada? Vale dizer que nem todo mito recorre a este tipo de expediente. A grandeza de alguns mitos reside justamente
em sua simplicidade. Os evangelistas poderiam ter descrito Jesus entrando em
Jerusalém em um cavalo majestoso, digno de um rei, mas, em vez disso,
descreveram-no montado em um jumentinho. Entretanto, em Apocalipse, Ele aparece
montado em um imponente cavalo branco, exibindo uma coroa e uma espada que sai
de Sua boca.[3]
A diferença é que os Evangelhos nos apresentam o Jesus histórico,
despretensioso, despojado, enquanto que o livro de Apocalipse recorre à
narrativa mítica para apresenta-lo em toda a Sua glória e majestade.
Um
exemplo bíblico claro de como mitos de carne e osso são criados está registrado
no primeiro livro de Samuel. De um dia para o outro, um menino ruivo, pastor de
ovelhas, foi içado ao posto de herói nacional, bastando que para isso houvesse
enfrentado e derrotado o brutamontes filisteu. O texto diz que “quando Davi
voltava de ferir os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram
ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com adufes, com alegria, e com
instrumentos de música. E as mulheres dançando e cantando se respondiam umas às
outras, dizendo: Saul feriu os seus milhares, porém, Davi os seus dez milhares.
Então Saul se indignou muito, e aquela palavra pareceu mal aos seus olhos, e
disse: Dez milhares deram a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe
falta, senão só o reino?”[4] De
repente, Davi passou a inspirar canções e a suscitar a inveja e o ciúme do rei
de Israel. Ter matado “dez milhares” era apenas uma maneira poética de realçar
a importância de Davi naquele momento histórico. O canto das mulheres hebreias
ecoou entre os filisteus, e graças a isso, Davi foi temido pelos adversários de
Israel.[5]
Algumas
vezes, pesa-se tanto nas tintas que a imagem que emerge não condiz em nada com
o que é real. No filme “Coração Valente” estrelado por Mel Gibson, há uma cena
em que William Wallace se apresenta montado em seu cavalo a um exército
improvisado convocado pelos nobres para lutar pela independência da Escócia. Ao
apresentar-se, um dos soldados diz algo mais ou menos assim: Não é possível que você seja William
Wallace. Ele é um homem de dois metros e não um baixinho como você! Apesar
disso, Wallace comandou exitosamente aquele exército e foi considerado o
inimigo número um da coroa inglesa.
Outros
mitos nos vêm da música, dos esportes, da política, bem como da ficção através
de filmes, quadrinhos e obras literárias. Os modernos super-heróis são um
exemplo disso.
O
Mito Imperial
O
Apocalipse adota uma narrativa mítica para denunciar e combater um império que
repousava igualmente sobre uma narrativa mítica. Toda estrutura de poder é
legitimada por uma ideologia, e isso não exclui nossa própria cultura. Mesmo
hoje, a ideologia, seja ela qual for, se expressa tipicamente em termos
míticos. Lembrando que não usamos o termo “mito” com uma conotação enganosa ou
falsa, nem limitamos o seu uso a um modo tribal e primitivo de comunicação.
“Mito”, como se pode deduzir a partir do que dissemos até aqui, aponta para uma
comunicação simbólica em um contexto cultural e político. As ideologias
políticas e econômicas mais poderosas da atualidade, o capitalismo e o
comunismo, não alcançariam qualquer êxito sem suas dimensões míticas. Um
exemplo disso é a crença de que a “mão invisível” do mercado seja capaz de
produzir uma sociedade livre e próspera. O que seria isso, senão um mito? E a
crença na ditadura do proletariado, não seria igualmente um mito produzido pela
ideologia comunista? Veja, não se trata de ser ou não verdade, mas do
reconhecimento de que muito do que consideramos um discurso racional e
imbatível em nossa cultura opera em um nível simbólico.
Tal qual
o mundo atual, o império romano era legitimado por um conjunto de mitos que se
constituía parte intrínseca de sua construção. Até mesmo a fundação de Roma era
narrada em termos míticos. Reza a lenda que Roma teria sido fundada no ano 753
a. C. pelos filhos gêmeos do deus Marte e da mortal Rea Sílvia. Ao nascer, os
dois irmãos foram abandonados junto ao rio Tibre e salvos por uma loba, que os
amamentou e os protegeu. Por fim, um pastor os recolheu e lhes deu os nomes de
Rômulo e Remo.
A chamada
“Pax Romana” também se constituía em um
mito que visava trazer ordem, estabilidade e expansão ao império. Era considerada
um sinal de benevolência do império e seus imperadores, conferindo paz a todo o
mundo habitado. Possivelmente Jesus a tinha em mente quando disse que a paz que
oferecia não era como a paz que o mundo dava.[6]
Aquela “paz” era fruto da rendição dos povos ao domínio de Roma. Era, portanto,
uma paz construída sobre o poderio bélico e a conquista militar. Logo, não era,
de fato, paz, mas trégua. Assim como a relativa paz mundial durante a chamada
“Guerra Fria” era assegurada pelos milhares de mísseis nucleares apontados na
direção de muitos países.
Esse e
outros mitos formavam uma espécie de abóbada sagrada que cobria Roma. O
Apocalipse tanto anuncia a boa nova do reino de Deus, como denuncia o que tais
mitos ensejavam esconder. Pode-se dizer, então, que ele é a revelação tanto dos
propósitos divinos quanto dos intentos funestos dos poderosos.
Para cada
mito imperial, o livro de Apocalipse apresenta um contramito. O mito da Pax Romana é confrontado com as bestas
sanguinárias e homicidas. Em vez de benigno, o império é apresentado como
perverso e genocida, que assassinava rotineiramente todos os que se opunham a
ele.[7] O
mito da Vitória (Victoria em latim) era a base do império. Sem este mito, a Pax
Romana não se sustentava. A Vitória de Roma consistia na subjugação dos que
vivam nas províncias das fronteiras. Este mito conferia legitimidade ao
imperador. Júlio César, por exemplo, era chamado pelo título de Victoria Caesaris. Augusto era Victoria Caesaris Augusti Imperatoris e
Vespasiano era Victoria Imperatoris
Caesaris Vespasiani Augusti. Segundo o mito, os imperadores alcançaram êxitos militares na ocupação da Gália, do Egito e da Judeia porque Victoria os abençoou. Assim como o Apocalipse
redefine “paz”, também redefine “vitória.” Em sua concepção, a vitória não
pertence aos que matam para conquistar, mas aos que morrem por sua fidelidade
aos ideais de justiça e amor. A verdadeira vitória não se conquista na ponta de
uma espada, no poderio bélico do império, mas no sacrifício do Cordeiro. A
disposição de Jesus e de Seus seguidores em serem executados em vez de matar se
constitui na base da genuína vitória. Cada fiel das sete igrejas para as quais
o livro é endereçado é conclamado a ser o vencedor.[8] A
vitória está na entrega, não na imposição. Na renúncia, não na ganância. Na
fidelidade, não na acomodação. No amor ao próximo, não no amor próprio. Por
mais que o império os perseguisse, “eles, porém, o venceram pelo sangue do
Cordeiro e pela palavra de seu testemunho, por não amarem a própria vida até a
morte.”[9]
Embora não seja encontrada em Apocalipse, uma expressão do latim é fiel
ao seu espírito: Christus Victor!
Outro
importante mito que servia de cola para a manutenção da ordem social romana era
a Fides (em grego, Pistis). Geralmente traduzida por “fé”,
no mundo antigo era sinônimo de lealdade recíproca e representava o valor das
relações sociais duradouras. O imperador
personificava a fidelidade no cumprimento de obrigações e tratados, visando,
sobretudo, o bem-estar do povo. Obviamente, havia por parte dele a expectativa
de que tal fidelidade fosse recíproca e se traduzisse em lealdade do povo para
com o império. Esta lealdade tinha que ser exclusiva. Os povos derrotados e rendidos
ofereciam sua fides a Roma em total
submissão ao seu imperador. Dividir esta lealdade com outros se constituía em
imperdoável insolência, e geralmente era considerada uma declaração de guerra.
O livro de Apocalipse nos introduz um novo padrão de fides que se sobrepõe ao de César. Jesus, a testemunha fiel[10],
o cavaleiro fiel e verdadeiro. Diferentemente de César, Seu reino não está
edificado sobre mentiras, mas sobre a Verdade. E Seus seguidores são
conclamados a fazerem da fides sua
motivação de viver e sua disposição de morrer. Enquanto Roma exigia de seus
cidadãos e povos conquistados uma lealdade capaz de leva-los a matar pelo
império, Cristo requer de Seus seguidores uma fidelidade que os leve a morrer
pelos valores do Seu reino.
A Eternidade (latim aeterna, grego aion) também
se constituía em um importante mito no edifício ideológico de Roma. Não se
trata, porém, da concepção cristã de eternidade transcendental. Tanto a cidade de Roma, quanto o seu império,
seus imperadores e até seu povo se arrogavam o título de “eternos.” Em suas
moedas, a deusa Aeternitas era
retratada segurando o sol e a lua, ambos símbolos de eternidade. Tudo parecia
ter sido feito para durar, e durar para sempre. Roma se julgava o império
definitivo. Cícero afirmou que Roma era a concretização da ordem cósmica na
terra. [11]
Imaginar que o império pudesse chegar ao fim era considerado um ato de traição.
E é justamente isso que o Apocalipse faz. O único império que durará para
sempre é o de Jesus Cristo. Enquanto Roma teve início e eventualmente teria
fim, Cristo é Aquele que era, que é e que há de vir e cujo reino durará pelos séculos dos séculos. Esta expressão é encontrada várias vezes ao
longo do livro, em referência a Deus, a Jesus Cristo, e ao reino entregue aos
que Lhes são fiéis. [12]
[1] Um
exemplo bíblico disso é encontrado no poema da criação, onde lemos que o
Espírito do Senhor pairava sobre a face das águas. O verbo hebraico traduzido
em nossas Bíblias como “pairar” (מְרַחֶפֶת - MËRACHEFET) significa literalmente
“chocar.” Portanto, encontramos aí o que pode ser a origem do mito do ovo
cósmico.
[2] Compare
este mito com o que diz Apocalipse sobre Cristo, o Cordeiro que foi morto desde
antes da fundação do mundo (Apocalipse 13:8).
[3]
Apocalipse 6:2; 19:11-16
[4] 1 Samuel
18:6-8
[5] 1 Samuel
29:3-6
[6] João
14:27
[7]
Apocalipse 13:15
[8]
Apocalipse 2:7,11,17,26; 3:5, 12, 21
[9]
Apocalipse 12:11
[10]
Apocalipse 1:5; 3:14; 19:11
[11] MELLOR,
Ronald, The Goddess Roma, In: ANRW II, 17,2. Berlim & Nova York, 1981,
Walter de Gruyter, p.950.
[12]
Apocalipse 7:12; 11:15; 22:5.
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