domingo, maio 19, 2019

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O CHÃO E A ENCERADEIRA


Por Hermes C. Fernandes 


Certa feita, houve uma assembleia que reuniu os instrumentos responsáveis pela limpeza e manutenção do brilho do chão.

A primeira a falar foi a enceradeira.

- Convoquei esta reunião em caráter emergencial para expor uma injustiça de que tenho sido vítima. Não é justo que eu trabalhe tanto, enquanto o chão é quem brilha.

A vassoura interrompeu a colega e disse:

- A senhora enceradeira deve reconhecer que não é a única a trabalhar aqui. Muito antes da senhora lustrar aquele chão ingrato, eu tive que varre-lo. Tem ideia de quanta poeira eu removi? Já imaginou se a senhora tivesse que encerar um chão todo sujo? Portanto, ninguém aqui tem mais direito de reclamar do que eu. Você encera o chão que eu varri e ainda quer receber os créditos pelo brilho do chão?

O rodo, então, pediu a palavra:

- Senhoras, com todo respeito pelo vosso árduo trabalho, devo salientar que também tenho minha parcela de crédito pelo brilho desse chão. Quem sou eu para diminuir o trabalho da colega vassoura, muito menos da colega enceradeira. Mas minha parte também é essencial. Mas não ouso querer ficar com os créditos só para mim. Faço questão de dividi-los com meus colegas balde e pano de chão. Sem eles, meu trabalho nem sequer seria necessário. Somos uma equipe. Se trabalhamos juntos, devemos ser reconhecidos juntos.

- Louvável sua colocação, colega rodo. Mas quem dá o toque final sou eu. Se aquele chão tem algum brilho, é graças a mim - retrucou a enceradeira.

Lá no canto do almoxarifado estava uma lata de cera que resolveu se pronunciar depois da balbúrdia de seus colegas.

- Sei que todos aqui têm sua parcela de razão. Mas saibam que não tenho a menor intenção de engrossar o coro das reivindicações feitas pelos meus colegas nesta assembleia. Apesar de entender que também tenho um importante trabalho na manutenção do brilho do chão, devo reconhecer que ninguém aqui trabalhe mais do que ele próprio. Quando terminamos nosso trabalho, cada um de nós é guardado no almoxarifado para ser usado numa próxima o ocasião. Enquanto isso, ele, o chão, que nem sequer abriu a boca para reclamar, segue sendo pisado o tempo inteiro. Se ele estiver sujo ou opaco, quem recebe a crítica é ele. Ninguém critica a vassoura, o rodo ou a enceradeira. Por ser revestido de granito, ele tem brilho próprio, e nosso trabalho é tão somente realça-lo. E é justamente devido ao seu brilho que ele reflete a imagem daqueles que o pisam. Quem o pisa pode ver sua imagem perfeitamente refletida na superfície dele. Além de seu brilho peculiar, ele também é resistente. Ele nem ao menos cedeu um centímetro sequer até o dia de hoje. Quantos de nós aqui resistiria um décimo do que ele suporta dia após dia? O que seria mais desgastante, limpar, encerar, lustrar ou ser pisado? Muitos dos pés que caminham sobre ele vêm sujos de lama, dejetos, e todo tipo de sujeira. Alguma vez o vimos reclamar? Se nós resolvêssemos fazer uma greve ou simplesmente nos negássemos a limpa-lo novamente, ele certamente permaneceria em seu lugar, fazendo o que sempre fez. Mesmo que permanecesse sujo, seguiria oferecendo a todos a firmeza de sempre.

Depois de ouvir atentamente a cera, todos bateram em retirada sentindo-se envergonhados pelo simples motivo de terem dado ouvidos às reivindicações da enceradeira e atendido à sua convocação.

Às vezes a enceradeira está mais preocupada em receber os créditos pelo brilho do chão do que propriamente o chão está interessado em ter seu brilho reconhecido.

A glória de um chão que brilha é refletir a imagem daqueles que o pisam.

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