Por Hermes C. Fernandes
No início de nossa jornada
existencial, tudo é novo. Cada experiência é inédita. E a maioria delas nos
pega de surpresa, sem aviso prévio, sem qualquer planejamento. As agradáveis deixam sempre um gostinho de
“quero mais”. As desagradáveis, porém, nos deixam um gosto amargo que parece
apegar-se ao paladar. Entretanto, na medida em que amadurecemos, tornamo-nos
mais precavidos, já que certas experiências tendem a se repetir ainda que com
algumas variações. O que antes seria considerado inédito não passa de mera
reprise. Aos poucos, o estresse vai cedendo ao tédio. Tudo vai ficando tão
previsível.
O lado bom disso é que
alcançamos a sabedoria, desenvolvendo o traquejo para lidar com as situações
que antes nos tiravam o sono. O lado ruim é que a vida parece desbotar,
perdendo seu colorido original.
Davi havia enfrentado a maior
crise do seu reino. Enfrentara uma rebelião protagonizada por ninguém menos que
seu próprio filho. Com a morte de Absalão e o desbaratamento da rebelião, tudo
indicava que era chegada a hora de Davi respirar tranquilo. Mas não foi isso
que se sucedeu.
Alguém quis se aproveitar de
todo o desgaste sofrido por Davi para promover um novo levante contra o seu
trono.
O relato bíblico diz que “achou-se ali por acaso um homem de Belial,
cujo nome era Seba, filho de Bicri, homem de Benjamim, o qual tocou a trombeta
e disse: Não temos parte em Davi, nem herança no filho de Jessé. Cada um à sua
tenda, ó Israel.”[1] Resultado: “Todos os homens de Israel se separaram de
Davi, e seguiram a Sebá, filho de Bicri; porém os homens de Judá seguiram ao
seu rei desde o Jordão até Jerusalém.”[2]
Das doze tribos de Israel, somente aquela da qual provinha manteve-se leal a
Davi. As demais aderiram à rebelião de Sebá.
Precavido, “Davi chegou à sua casa em Jerusalém, tomou
as dez concubinas que deixara para guardarem a casa, e as pôs numa casa, sob
guarda, e as sustentava; porém não entrou a elas. Assim estiveram encerradas
até o dia da sua morte, vivendo como viúvas.”[3]
Não muito tempo antes, seu
filho Absalão possuíra suas concubinas à luz do dia com o objetivo de
insultá-lo e diminuí-lo ante os olhos de todo Israel.[4] Ora, se seu próprio filho
foi capaz de tal acinte, o que esperar de um estranho?
Era preferível abrir mão de
seu harém particular, a ver suas concubinas sendo mais uma vez expostas e
violentadas. Às vezes, somos obrigados a escolher dentre males, o menor.
Aquelas mulheres passaram a viver como viúvas até o dia de sua morte, mas foram
poupadas de destino bem mais atroz.
Tomada a devida precaução, era
hora de tentar desbaratar mais uma rebelião. Para isso, ordenou que Amasa, um
homem de sua mais inteira confiança, convocasse os homens de Judá para que
comparecessem à presença do rei em três dias. Porém este resolveu fazer cera,
talvez propositadamente, ou, no mínimo, por não perceber a gravidade da
situação. O fato é que ele “demorou-se
além do tempo que o rei lhe designara.”[5]
Mesmo sem entender a razão da
demora de seu servo, Davi resolveu tomar a iniciativa em vez de ficar esperando
a boa vontade dos homens de Judá, os únicos que se lhe mantinham leais. “Então disse Davi a Abisai: Mais mal agora
nos fará Sebá, filho de Bicri, do que Absalão; toma, pois, tu os servos de teu
senhor, e persegue-o, para que ele porventura não ache para si cidades
fortificadas, e nos escape à nossa vista.”[6]
Imediatamente, Joabe e seus
homens saíram no encalço de Sebá. Chegando à pedra grande que está junto a
Gibeão, “Amasa lhes veio ao encontro.”
Joabe sabia por experiência
que as pessoas só costumam ser leais enquanto seus interesses são atendidos.
Era plausível supor que Amasa houvesse trocado de lado. Afinal, que outra
explicação haveria para o seu atraso em convocar os homens de Judá para fechar
fileiras com Davi? Como diria Jesus séculos depois, “quem comigo não ajunta, espalha.”[7]
Aproximando-se de Amasa, Joabe
perguntou-lhe: “Vais bem, meu irmão? E
Joabe, com a mão direita, pegou da barba de Amasa, para o beijar. Amasa, porém,
não reparou na espada que está na mão de Joabe; de sorte que este o feriu com
ela no ventre, derramando-lhe por terra as entranhas. Não foi necessário
feri-lo segunda vez; e ele morreu.”[8]
Não sabemos ao certo se houve
precipitação por parte de Joabe. Porém, este não estava disposto a correr
riscos depois de todas as decepções que sofrera durante o episódio da rebelião
de Absalão.
Joabe e Abisai, seu irmão,
prosseguiram em sua perseguição a Sebá. Enquanto isso, “um homem dentre os servos de Joabe ficou junto a Amasa, e dizia: Quem
favorece a Joabe, e quem é por Davi, siga a Joabe.”[9]
Ninguém poderia ficar em cima
do muro num momento crítico como aquele. Se estava com Davi, que seguisse a
Joabe.
O texto diz que algo passou a
chamar a atenção de todos os que por ali passavam: “Amasa se revolvia no seu sangue no meio do caminho.” Em vez de
prestarem atenção no que dizia o servo de Joabe, as pessoas se distraiam com
aquele cadáver ensanguentado. De modo que “aquele
homem, vendo que todo o povo parava, removeu Amasa do caminho para o campo, e
lançou sobre ele um manto, porque viu que todo aquele que chegava ao pé dele
parava.”[10]
Há pessoas e/ou situações que
só servem para nos distrair e frear. Por isso, faz-se necessário que sejam
removidas do nosso caminho. Elas têm o infeliz dom de nos paralisar. Se não
formos rápidos em nos livrar daquela distração, perderemos o foco, e de quebra,
faremos que outros igualmente o percam.
Tão logo Amasa fora removido
do caminho, todos os homens seguiram a Joabe para perseguirem a Sebá.
Há que se ter discernimento
para perceber o que precisa ser removido de nosso caminho o quanto antes; tudo
aquilo que nos faz parar ou nos faz atrasar em nossa caminhada, nos impedindo
de perseguir os propósitos estabelecidos por Deus em nossas vidas.
Quando finalmente souberam
onde estava Sebá, cercaram a cidade, “e
todo o povo que estava com Joabe batia o muro para derrubá-lo.”[11]
Não havia como escapar da
fúria dos valentes de Davi.
“Então uma mulher sábia gritou de dentro da cidade: Ouvi!
ouvi! Dizei a Joabe: Chega-te cá, para que eu te fale. Ele, pois, se chegou
perto dela; e a mulher perguntou: Tu és Joabe? Respondeu ele: Sou. Ela lhe
disse: Ouve as palavras de tua serva. Disse ele: Estou ouvindo. Então falou
ela, dizendo: Antigamente costumava-se dizer: Que se peça conselho em Abel; e
era assim que se punha fim às questões. Eu sou uma das pacíficas e das fiéis em
Israel; e tu procuras destruir uma cidade que é mãe em Israel; por que, pois,
devorarias a herança do Senhor?”[12]
Abel era o nome daquela cidade
conhecida como “mãe em Israel”. Era para lá que as pessoas corriam em busca de
uma palavra do Senhor para encerrar qualquer demanda. Seria justo arruinar
aquela cidade inteira por causa da rebelião de um homem? Seria justo lutar
contra o lugar onde tanta gente havia encontrado ajuda por um capricho ou por
vingança? Vale aqui a recomendação de Paulo: “Não destruas por causa da tua comida aquele por quem Cristo morreu
(...) Não destruas por causa da comida a obra de Deus.”[13] Os cristãos judaizantes
transformaram uma questão particular que dizia respeito exclusivamente aos
judeus, em uma questão capaz de destruir a obra de Deus entre os gentios. Que
sentido haveria nisso? Será que valeria a pena destruir algo que tão bem faz às
pessoas somente para provar que temos razão? E quando nós mesmos um dia nos
beneficiamos disso? Não seria isso o mesmo que “cuspir no prato que comeu”?
Aquela mulher se apresentou a
Joabe como uma das pacíficas e fiéis em Israel. Quem poderia intermediar um
conflito senão alguém cujo caráter fosse pacífico e fiel? Infelizmente, este
tipo de pessoa é cada vez mais raro. A maioria prefere ver o circo pegar fogo,
pois não tem a menor consideração pela obra de Deus. São movidos por ganância
ou vingança, não por esperança.
Infelizmente, há quem em nome
da fidelidade, acaba por se tornar em um agitador, levando e trazendo, lançando
querosene numa fogueira que já poderia ter se apagado. Como bem salientou
Salomão, “por falta de lenha apaga-se o
fogo; e onde não há mexeriqueiro, cessa a contenda. Como os carvões para as
brasas e a lenha para o fogo, assim é o homem contencioso para acender rixas. As
palavras do mexeriqueiro são como doces bocados, que penetram até o fundo das
entranhas.”[14]
A estes, convém lembrar as
seis coisas que o Senhor odeia, e a sétima que sua alma abomina:
“Estas seis coisas o Senhor odeia, e a sétima a sua alma
abomina: Olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, o coração
que maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, a testemunha
falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos.”[15]
Por outro lado, há quem ache
que para promover a paz é necessário abrir mão da própria consciência,
sacrificando a coerência e a fidelidade no altar da conveniência. Ledo engano. Pode-se,
perfeitamente, ser fiel e pacificador ao mesmo tempo. A propósito, bem-aventurados são os
pacificadores, isto é, os que promovem a paz, evitando assim, o pior.
Corajosamente, aquela mulher
chama Joabe à consciência e diz que o que ele estava fazendo era devorar a herança
do Senhor. Em outras palavras, ela o compara a um gafanhoto, chamando-o de
devorador. Ele sentiu-se tão insultado que exclamou: “Longe, longe de mim que eu tal faça, que eu devore ou arruíne!”[16]
Ao menos, ele tinha
consciência, e por isso, negou-se a devorar e arruinar o lugar onde tantos
haviam sido ajudados em suas causas. Nosso amor à obra de Deus deve ser maior
que qualquer obsessão pessoal.
Mesmo recusando-se a arruinar
a cidade de Abel, Joabe expôs a ela o seu real propósito:
“A coisa não é assim; porém um só homem da região montanhosa
de Efraim, cujo nome é Sebá, filho de Bicri, levantou a mão contra o rei,
contra Davi; entregai-me só este, e retirar-me-ei da cidade. E disse a mulher a
Joabe: Eis que te será lançada a sua cabeça pelo muro. A mulher, na sua
sabedoria, foi ter com todo o povo; e cortaram a cabeça de Sebá, filho de
Bicri, e a lançaram a Joabe. Este, pois, tocou a trombeta, e eles se retiraram
da cidade, cada um para sua tenda. E Joabe voltou a Jerusalém, ao rei.”[17]
“Não é
bem assim...” O segredo de tudo é a comunicação. Por isso, nada melhor do
que saber das coisas diretamente da fonte, sem dar ouvidos aos agitadores de
plantão.
Quantas são as opiniões que emitimos e as posições que
assumimos com base em algo que “não é bem
assim...”? Quantos mal-entendidos seriam evitados se nos dignássemos a
recorrer à fonte!
Mas preferimos nos precipitar, agindo injustamente, sem
qualquer ponderação. Talvez por não entendermos o que está em jogo.
Bem-aventurada foi aquela mulher anônima, sábia, pacífica e
fiel, que evitou que a desgraça se abatesse sobre sua cidade e seus filhos. Bem-aventurado
é quem a toma por exemplo, jamais emprestando seus lábios à discórdia e ao
desamor.
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