Por Hermes C. Fernandes
Todos dormiam na arca na primeira noite de bonança após
quarenta dias de dilúvio. De repente, um ajuntamento inusitado ocorreu. Os
pássaros foram convocados para uma assembleia secreta extraordinária. A cacatua
presidia a reunião.
- Soubemos por fonte fidedigna que Noé vai soltar um de nós
nos próximos dias. Creio que seria justo escolhermos democraticamente àquele
que nos representará, sendo o primeiro a deixar a arca.
Todos os pássaros assentiram com a cabeça.
- Modéstia à parte, creio que sou o mais indicado para a
missão - disse o tucano com seu exuberante bico.
A partir daí, a confusão se instalou na confraria das aves.
- Por que você e não eu ou qualquer outro pássaro? -
perguntou a arara-azul.
- Ora, ora... meu protuberante bico me garante um destaque
que me permite ser visto à distância. Óbvio que Noé concordará que sou a melhor
opção.
- Não esqueça que seu bico, além de cumprido, também é
pesado, e que isso lhe impossibilitaria de voar por longas distâncias. Até
encontrar terra seca, você já estaria exausto demais e acabaria voltando no
meio do caminho - salientou a águia.
- Seu bico consegue ser maior que seu corpo! - ironizou a
garça.
- Olha quem diz... pelo menos não tenho pernas tão longas e
finas... - respondeu o tucano.
De repente, o pavão deu um passo à frente, apresentando-se
como alternativa. Todos começaram a murmurar:
- Lá vem você com essa cauda espalhafatosa, achando-se o
centro das atenções... Como se já não bastasse o peso do seu corpo. Com
certeza, Noé vai preferir alguém bem mais discreto.
- E que tal, eu? - propôs o pica-pau.
A gargalhada foi geral.
- Você está louco? Por pouco você não afunda a arca com
todos os bichos com essa sua mania de perfurar a madeira com seu bico
pontiagudo.
- Mas é justamente por isso que me acho o melhor candidato.
Alguém como eu é melhor fora do que dentro. Pelo menos lá fora, não serei um
risco para ninguém - argumentou o pica-pau usando e abusando de seu tom
sarcástico.
- Hum... pensando bem... não! Prefiro o bico grande do
tucano que não faz mal a ninguém ao seu discreto, mas famigerado bico. Quem nos
garante que depois que estiver do lado de fora, não vai usá-lo para afundar a
arca? Você só não o usou ainda porque está dentro e sabe que se a arca afundar,
você afunda junto. Quem não te conhece é quem te compra, seu cara de pau -
disse a cacatua.
- Creio que a melhor opção que temos é a águia - indicou o
avestruz.
- Agradeço a lembrança, mas devo abdicar-me da indicação.
Como sabem, costumo voar muito alto. E não garanto que depois de voltar às
alturas, eu me disponha a retornar à arca. Eu me conheço bem e acho que não
mereço tal voto de confiança.
- Então, por que não eu? - sugeriu a cacatua.
- Pode ir baixando esta sua crista! Não é porque a
iniciativa de convocar esta reunião foi sua que isso lhe dá o direito de
exercer primazia sobre nós. Você é barulhenta demais para uma missão tão
importante - disse o falcão.
Enquanto ainda discutiam, já tendo amanhecido, Noé se
aproximou, estendeu a mão e tomou um corvo.
- O que foi isso? Por que o corvo e não qualquer outro de
nós? - perguntaram-se uns aos outros.
- Acho que Noé se precipitou. Aquele corvo é o maior traíra.
Duvido que retorne à arca - asseverou o tucano.
Dias depois, uma nova assembleia foi convocada na calada da
noite.
- Como vocês todos já devem saber, o corvo se escafedeu. Noé
nem sequer nos consultou pra saber qual de nós estaria apto para aquela missão
- reclamou o tucano.
- Deveríamos fazer um protesto, isso sim. Tantos
qualificados aqui e ele foi escolher logo aquele “come-quieto” do corvo -
arrazoou a garça. Eu, por exemplo, posso até ter pernas longas, desproporcionais com relação ao meu corpo, mas pelo menos, caminho em águas
imundas sem sujar minhas penas alvas.
- Ouvi dizer que o corvo saiu reclamando que Noé o estarei
expulsando da arca - relatou o pica-pau.
Mais uma vez, a assembleia foi interrompida pelo som dos
passos de Noé. Sem consultar a ninguém senão à sua própria consciência, Noé
estendeu a mão em direção à pomba e levou-a consigo.
- Esse Noé não aprende mesmo. Primeiro o corvo, agora a
pomba? Que qualidades ela reúne, afinal? Suas asas não têm a envergadura das
asas da águia; seu bico não é longo como do tucano, nem habilidoso como do
pica-pau. Suas penas não são coloridas como das araras. Suas garras não são
fortes como as do falcão. O que Noé viu nela, afinal?
Um velho condor que assistia à discussão, tomou a palavra e
respondeu:
- Senhores, acredito que sei o que Noé viu em nossa
companheira pomba: Uma qualidade e um hábito. Primeiro, ela é simples como
nenhum de nós. Vocês nunca a viram se gabando do que é. E segundo, ela sempre
volta.
Os pássaros, então, resolveram fazer um bolão entre eles.
Quase todos apostaram que ela não voltaria, à semelhança do que fez o corvo.
Mas o condor e algumas outras aves de rapina apostaram que sim.
Dias depois, ouviu-se o som de umas batidas na janela da
arca. Ao abri-la, Noé deparou-se com a pequena ave trazendo no bico um ramo de
oliveira.
Moral da estória: é na simplicidade que habita a esperança.
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