Por Hermes C. Fernandes
A origem dos direitos humanos
O movimento pelos
direitos humanos teve sua origem na era moderna. Lá, pelos idos do final do
século XVIII, em plena revolução industrial, acontece a Revolução Francesa, que
teve seu programa esboçado em seu documento central chamado de “Declaração dos
Direitos do Homem.”[1]
Anos antes, em 1776, os Estados Unidos da América tinham produzido em sua
“Declaração de Independência”, uma declaração de princípios bem semelhante, que
poderia ser considerada como um embrião da Declaração dos Direitos do Homem.
A Declaração de Independência
dos Estados Unidos afirma a origem divina desses direitos quando se postula que
“todos os homens são iguais, porque Deus os dotou com os mesmos direitos.” Por
outro lado, ainda que a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa
não mencione o Deus Criador, falando apenas do “Ser Supremo” transparece nela
sua herança religiosa ao declarar que esses direitos são sagrados e
invioláveis.
Apesar de mencionar
os direitos dos cidadãos como sagrados, ao definir quem seriam considerados
cidadãos, a declaração francesa deixa a maioria da população fora do seu escopo.
Já nos Estados Unidos, nem índios, nem negros eram incluídos entre os seres
humanos “que Deus tinha criado.” Portanto, percebe-se claramente que tais
declarações ainda eram expressões de uma classe social: a burguesia. Entretanto,
devem ser consideradas um passo importante na luta e afirmação pelos direitos
de todos os seres humanos.
Somente no final da década
de quarenta, mais precisamente em 1948[2],
após duas grandes guerras mundiais em que a crueldade humana pareceu chegar ao
seu apogeu, a Comissão de Direitos Humanos da recentemente criada ONU elaborou
um documento que consagraria os direitos fundamentais do ser humano. Nessa
declaração são listados todos os direitos próprios e inalienáveis de todo ser
humano, os quais devem ser respeitados por todos os países signatários.
O principio básico
pelo qual é regida afirma que todo ser humano nasce em condições de liberdade e
igualdade de direitos e que por estar dotado de raciocínio e de consciência,
deve procurar a convivência com seus congêneres. Daqui se derivam as premissas
de liberdade de pensamento e consciência, independentemente de raça, sexo ou
religião. Atribui-se, também, o direito de uma vida livre e com segurança, e se
sublinha a unidade essencial da família humana.
O que as Escrituras
teriam a dizer acerca de tão caro tema? Seria correto afirmar que elas oferecem
a base de sustentação para qualquer reivindicação de direitos humanos? Acredito
piamente que sim.
Dentre todos os
profetas, talvez nenhum tenha se debruçado mais sobre o tema do que Amós, o
profeta caubói. Seu ministério profético aconteceu durante o reinado de Uzias
em Judá e de Jeroboão II em Israel. O reino, agora dividido entre reinos do
norte e do sul, estava sob o domínio Assírio. Diferentemente de outros profetas
de pedigree, Amós não vinha de uma
família sacerdotal. Vaqueiro e agricultor[3],
atividades nômade e sedentária respectivamente, conhecia profundamente a
realidade na qual seu povo estava mergulhado. Por isso mesmo, tornou-se num
ferrenho crítico ao poder econômico, político e religioso de seu tempo,
conclamando seus concidadãos à tomada de consciência, e a uma postura
condizente com as demandas da justiça e da misericórdia.
Críticas ao poder econômico
Sem dúvida, o período
em que Jeroboão II[4]
reinou em Israel foi um dos mais
prósperos de sua história. Graças ao comércio com outras nações vizinhas, a
riqueza do reino aumentou consideravelmente. Entretanto, isso não impediu uma
acentuada desigualdade social entre ricos e pobres. Escavações arqueológicas
realizadas na região da Samaria, então capital de Israel, evidenciavam a
existência de moradias miseráveis ao lado de um bairro residencial rico. Eram
como favelas vizinhas de condomínios luxuoso, efeito colateral de um sistema
erigido sobre a ganância.
Os moradores de
Samaria pareciam estar em paz com esta realidade. Afinal de contas, a teologia
de muitos dos profetas contemporâneos de Amós afirmava que a prosperidade
econômica era um sinal de aprovação e bênção divinas. Portanto,
independentemente dos efeitos colaterais indesejados, o importante era que
Israel estava vivendo um florescimento quase sem precedentes de suas atividades
econômicas. Porém, enquanto o rico estava cada vez mais rico, o pobre estava
cada vez mais pobre. Na contramão de seus colegas, Amós denunciou aquela
prosperidade como ilusória, haja vista que apenas uma ínfima parcela da
sociedade desfrutava dela. Mas colocar em xeque a visão teológica prevalecente
em seus dias lhe renderia a pecha de excêntrico, doido varrido, uma espécie de
maluco-beleza, o profeta Gentileza de sua época.
Sem titubear, Amós
mirou sua metralhadora profética nos comerciantes que se justificavam no
ritualismo religioso enquanto exploravam seus concidadãos.
“Ouvi isto, os que esmagais o pobre, que excluís os humilhados do
país! “Quando vai passar a festa da lua nova — dizeis —, para negociarmos a
mercadoria? Quando vai passar o sábado, para expormos o trigo, diminuir as
medidas, aumentar o peso, utilizar balanças mentirosas, comprar o fraco por
dinheiro, o indigente por um par de sandálias, para negociarmos até o farelo do
trigo.” [5]
Algo
semelhante fora denunciado por Isaías: “Pois
dia a dia me procuram; parecem desejosos de conhecer os meus caminhos, como se
fossem uma nação que faz o que é direito e que não abandonou os mandamentos do
seu Deus. Pedem-me decisões justas e parecem desejosos de que Deus se aproxime
deles. ‘Por que jejuamos’, dizem, ‘e não o viste? Por que nos humilhamos, e não
reparaste? ’ Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de
vocês, e exploram os seus empregados.”[6]
Sempre
há um jeitinho de conciliar nossas crenças e práticas religiosas com nossa
insaciável ganância e o nosso hedonismo. Somos capazes de guardar dias santos,
oferecer nossos dízimos e ofertas, jejuarmos e refrearmos nossos apetites
carnais, enquanto prosseguimos em privar nossos semelhantes de seus direitos
fundamentais.
Os
comerciantes dos dias de Amós cumpriam fielmente os preceitos religiosos da Lua
nova, prescrito uma vez ao mês, e do sábado. Durantes as celebrações religiosas
abstinham-se de fazer negócios. Entretanto, anelavam ansiosamente para
retornarem ao balcão de negócios no dia seguinte na busca desenfreada por lucro
às custas da exploração alheia.
Críticas ao poder político-religioso
A
religião costuma a ter poder inebriante sobre os que preferem viver em função
de seus interesses mais mesquinhos. Definitivamente, Deus não se deixa comprar
pelos nossos cultos mais pomposos. Pelos lábios de Amós, Ele mesmo confessou:
“Sou contra, detesto vossas festas, não sinto o menor prazer nas
vossas celebrações! Quando me fazeis subir fumaça dos holocaustos... não aceito
vossas oferendas nem olho para os sacrifícios de carne gorda. Afasta de mim a
algazarra de teus cânticos, a música de teus instrumentos nem quero ouvir.
Quero apenas ver o direito brotar como fonte, e correr a justiça qual regato
que não seca.”[7]
É
óbvio que alguém que contesta uma religiosidade frívola e denuncia nossas
tentativas de comprar Deus, certamente será convidado a se retirar. Por isso,
Amós ouviu dos lábios de Amasias: “Ó
visionário, vai embora! Some para a terra de Judá! Vai ganhar a vida fazendo lá
tuas profecias. Não me venhas mais profetizar em Betel. Isto aqui é um
santuário real, uma dependência do palácio do rei!.”[8]
O
sistema combate qualquer um que queria emperrá-lo, mas incentiva os que
insistem em lubrificar suas engrenagens. A religião pode servir a ambos os
intentos. Amasias era chefe dos sacerdotes de Betel, e como funcionário do rei,
respondia direto ao palácio real, negligenciando, assim, seu papel de servo de
Deus. Por isso, vê em Amós uma ameaça ao status
quo. Seu inusitado pedido tinha o propósito
de conservar a ordem econômica, social, política e religiosa na região.
Amós
revelou-se contrário à prática religiosa descomprometida com o direito e a
justiça, que visava garantir tão somente a tranquilidade de consciência e o bem
estar da elite de Israel.
Seguindo a tradição dos
profetas hebreus, Amós faz diversas denúncias pertinentes que transcendem a
realidade de seu tempo, tornando-o, por assim dizer, um precursor na defesa dos
direitos humanos. Dentre as denúncias, destacamos algumas abaixo:
Denúncia de Xenofobia
Israel se orgulhava
de ser o povo eleito de Deus, porém, havia se esquecido de que a promessa feita
a Abraão, seu patriarca, era de que através de sua descendência, todas as
nações da terra seriam igualmente abençoadas.[9]
Ser a nação escolhida não significa ser
detentor do monopólio do sagrado. Apesar das Escrituras afirmarem que Israel
seria propriedade exclusiva do Senhor, título repassado à igreja, Deus não é
exclusividade de povo algum.[10]
Ele é o Deus de todos os povos, o rei das nações, o Senhor dos mundos.
Amós deixa claro que
o mesmo Deus que agiu em benefício de Israel, também agiu em benefício de
outros povos, inclusive daqueles considerados seus desafetos.
“Por acaso, filhos de Israel, sois diferentes dos etíopes para
mim? Eu não tirei Israel da terra do Egito? Mas não tirei também os filisteus
de Caftor? Não fiz os sírios saírem de Quir?”[11]
Esta palavra, sem
dúvida, foi um golpe na arrogância nacionalista de Israel. Os filisteus, assim
como os sírios, também tiveram o seu próprio êxodo. Portanto, não fazia sentido
olhá-los de cima para baixo, como se fosse a nação predileta de Deus. Ainda que
Deus, “nos tempos passados”, tenha
deixado andar “todas as nações em seus
próprios caminhos”, “contudo, não
deixou de dar testemunho de si mesmo”, beneficiando-as desde o céu,
provendo-lhes de chuvas e estações frutíferas, e enchendo de mantimento e de alegria
os seus corações.[12]
Mesmo não recebendo as devidas glórias, Deus não as desamparou, entregando-as à
própria sorte. Mas garantiu a sua subsistência.
Em seu discurso no
Areópago de Atenas, Paulo testifica que “de
um só sangue”, Deus fez “toda a geração
dos homens, para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já
dantes ordenados, e os limites da sua habitação.”[13]
O que nos leva a concluir que as fronteiras que delimitam os territórios das
nações têm um prazo de validade. A atual configuração geopolítica mundial é
fruto de guerras e acordos internacionais. Não há um pedacinho de qualquer que
seja o território de uma nação que não tenha custado derramamento de sangue,
seja na história recente ou antiga.
Não importa a cor e a
tonalidade de nossa pele, o sangue que corre em nossas veias é invariavelmente
vermelho. Ainda que haja diversidade de etnias, todavia, só há uma raça humana.
Não há razões para se
crer numa superioridade étnica, como a defendida por Hitler e sua agenda
eugenista.[14]
Portanto, todos devem ser igualmente tratados com respeito e dignidade.
A atual onda
nacionalista que varre o mundo é uma ameaça ao futuro da sociedade humana. Um
retrocesso! Devo concordar com Albert Einstein ao afirmar que o nacionalismo é
uma doença infantil, o sarampo da humanidade. Assim como a chegada da
modernidade pôs fim ao regime feudal, a pós-modernidade deve pôr um fim à noção
que temos de nação. Desde que Yuri Gagarin[15]
avistou a terra como um globo azul, nossa perspectiva de mundo mudou
drasticamente. Somos uma aldeia global. Não faz mais sentido matar e morrer por
um patriotismo cego. E nada medida em que nossa visão do universo foi se
alargando, percebemos nosso minúsculo planeta como um grão de areia girando em
torno de uma estrela de quinta grandeza, perdida nas periferias da galáxia, o
que nos remete à Escritura que diz: “Na
verdade as nações são como a gota que sobra do balde; para ele são como o pó
que resta na balança; para ele as ilhas não passam de um grão de areia.”[16]
Nenhum Estado deveria
ser objeto de nossa devoção. Pelo menos, é o que entendo ao ler as Escrituras a
partir de Jesus. Ele relativizou todas as estruturas de poder. Muito mais
importante do que elas é a humanidade. Cristo não ofereceu Sua vida por Estados
ou governos, mas pela humanidade. Portanto, devemos abandonar esta visão
provinciana, atendendo ao convite do escritor de Hebreus: “Saiamos, pois, a ele (Cristo) fora do arraial, levando o seu vitupério.
Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura.” [17]
“Cidade” aqui deve ser entendida como civilização. A pátria pela qual anelamos
não tem fronteiras, nem bandeiras. Trata-se, antes, de uma realidade celestial,
não no sentido de ser algo etéreo, pós-morte, mas de ser uma sociedade erigida
ao redor do trono da graça, em que o único vínculo que nos une é o amor.[18]
Que chegue logo a
hora em que ser brasileiro, ou americano, ou
irlandês, já não será motivo de orgulho. Nascer aqui ou acolá é
inevitável, mas vangloriar-se disto é uma postura estreita e potencialmente
danosa. Paulo compreendeu isso claramente. Por isso, ainda que pudesse
gloriar-se de sua origem étnica, sendo “hebreu de hebreus”, preferiu encarar a
aparente vantagem como verdadeiro prejuízo. “O
que para mim era lucro”, conclui o apóstolo, “considerei-o perda por amor de Cristo.”[19]
A humanidade é uma
única comunidade, composta de povos de diversas etnias e línguas que formam um
enorme caldeirão cultural. Conceitos racistas e separatistas como o
nacionalismo nos privam deste entendimento.
Concordo com
comediante norte-americano Doug Stanhope ao dizer que o nacionalismo ensina a
odiar as pessoas que nunca conhecemos e ter orgulho de realizações das quais não
participamos. É, portanto, um tipo de alienação.
Prefiro fazer coro
com Pietro Gori: “Nossa Pátria é o mundo inteiro, nossa lei é a liberdade.” [20]
O que parece fazer eco às palavras de Paulo: “A Jerusalém que é de cima é livre; a qual é mãe de todos nós.”[21]Somos
filhos do futuro. Filhos da liberdade. Filhos de um mundo sem fronteiras. Não somos filhos da “Jerusalém que agora existe”, que “é escrava com seus filhos.”[22]Em
outras palavras, não pertencemos a esta configuração geopolítica atual prestes
a caducar, nem a este sistema opressor que explora e devora seus próprios
filhos. Pertencemos a outra ordem,
cuja origem é celestial e não terrena. Somos cidadãos do reino de Deus, em que
distinções sexistas, sociais e étnicas já não existem.[23]
Celebremos, pois, o fato de que “as
coisas velhas já se passaram e tudo se fez novo.”[24]
Denúncia de tortura e táticas cruéis de guerra
“Assim diz o Senhor: Não perdoarei a Damasco por seus três crimes
e, agora, por mais este: trilharam a Gileade com trilhos de ferro.”[25]
“Por seus três crimes
e, agora, por mais este...” – Trata-se de um recurso estilístico que visava
indicar que a paciência de Deus estava se esgotando. Damasco era a capital da Síria, um reino
poderoso, adversário frequente de Israel ao longo de sua história. Gileade era uma
região ao leste do Jordão, que apesar de pertencer a Israel desde a sua
conquista, era disputada pelos sírios que eventualmente a conseguiam dominar. A
expressão “trilharam com trilhos de
ferro” indica crueldade e desumanidade na guerra. Após a ceifa, o trigo era
disposto na eira, uma superfície plana e dura como a pedra ou terra batida. Um
boi puxava um trenó de madeira pela eira. O ferro engatado no fundo do trenó
separava os grãos das cascas de trigo. Era assim que os exércitos sírios
estavam fazendo aos filhos de Israel no afã de tomar Gileade.
Mesmo em tempo de
guerra, deve-se levar em conta os valores humanos, respeitando, sobretudo, a
população civil. Até o maior adversário deve ser tratado com humanidade. Daí
vem o conceito de “guerra justa”, cunhada por Agostinho, inspirada em Cícero, e
defendida por vultos como Tomás de Aquino, dentre outros. A doutrina da guerra
justa é um conjunto de regras de conduta que define em quais condições a guerra
é uma ação moralmente aceitável. Não é por ser uma guerra que pode-se apelar ao
vale tudo. Até mesmo nossos inimigos
devem ter seus direitos garantidos.
Quem luta do lado
oposto da trincheira é tão humano quanto quem luta ao nosso lado. Sem as
devidas precauções, seremos reduzidos a monstros, desprovidos de qualquer traço
de humanidade. Ainda que o outro lado já tenha se desumanizado, lançando mão de
procedimentos cruéis, devemos nos manter leais à nossa consciência, preservando
assim a nossa humanidade. Como disse Nietzsche, “aquele que luta com monstros
deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito
tempo para um abismo, o abismo olha para você.” Para o filósofo alemão, as
dificuldades da vida são como uma escola que pode nos endurecer e até nos
transformar em pessoas cruéis, todavia, no final, essa será uma opção pessoal. Como
dizia Sartre, “não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você
faz com aquilo que fizeram com você.” Cada um responde de acordo com que tem
dentro de si.
Viktor Frankl[26]
comenta em seu livro “Em busca de
sentido” que até nas circunstâncias mais adversas o ser humano tem o direito de
decidir qual será sua postura diante do mundo. Sobre sua passagem pelos campos
de concentração em Auschwitz, Viktor relatou que alguns prisioneiros se
embruteciam e colaboravam em atos de tortura, agindo contra os próprios
companheiros, ao passo que outros consolavam os doentes acamados e dividiam com
eles seu último pedaço de pão. “Mesmo que não esteja em suas mãos mudar uma
situação dolorosa, é sempre possível escolher a forma de lidar com o sofrimento”,
afirmou.[27]
Há quem prefira
esconder-se por trás da maldade do mundo para dar asas à sua própria perversão.
Entretanto, os atos alheios jamais devem justificar os nossos.
Tortura
O uso da tortura é
injustificável, levando-se em conta a dignidade humana. Se a crueldade com os
animais é terminantemente proibida na Bíblia[28],
quanto mais a crueldade contra seres humanos que são a imagem e semelhança de
Deus.[29]
Ao ser esbofeteado
por ordem do sumo sacerdote, Paulo declarou que dar um tapa em um prisioneiro
antes da condenação sob o devido processo legal seria uma violação da lei.[30]
Ora, se um simples tapa era contrário à lei, logo, impingir qualquer sofrimento
a um ser humano antes que seja devidamente julgado e condenado deve ser
considerado ilegal. E veja que não estou me referindo à violação dos direitos
humanos, mas a infringir a lei do próprio Deus.
E convém salientar que a lei não se aplica somente ao “natural da terra”,
mas também ao “estrangeiro que peregrina entre vós”, tendo em vista que há uma
“mesma lei” para ambos.[31]
Nicodemos, o mestre
fariseu, argumentou ante os seus pares que julgar um indivíduo ou uma multidão
como inimigos do Estado sem que tenham sido condenados em um tribunal é
contrário à lei.[32]
Lançar mão do expediente da tortura para extrair informações de um suspeito é
presumir que o indivíduo seja culpado sem o devido processo judicial a que ele
tem direito.
De acordo com os
princípios bíblicos que regulam os procedimentos numa guerra, um inimigo
poderia ser morto em combate, mas se o conflito terminou, os prisioneiros não
devem ser tratados de forma desumana. Um exemplo disso pode ser encontrado
em 2 Reis 6:21-23:
“Quando o rei de Israel os viu, perguntou a Eliseu: "Devo
feri-los, meu pai? Devo feri-los? "Ele respondeu: "Não! Costumas
matar prisioneiros que capturas com a tua espada e o teu arco? Manda-lhes
servir comida e bebida e deixa que voltem ao seu senhor". Então
preparou-lhes um grande banquete e, terminando eles de comer e beber, mandou-os
de volta para o seu senhor. Assim, as tropas da Síria pararam de invadir o
território de Israel.”
Tal procedimento era
adotado como regra, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento. Tanto Salomão,
quanto Paulo vaticinam:
“Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver
sede, dá-lhe água para beber. Assim fazendo, amontoarás brasas vivas sobre a
cabeça dele, e o Senhor te recompensará.” Provérbios 25:21-22
“Portanto, se o teu inimigo
tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo
isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do
mal, mas vence o mal com o bem.” Romanos 12:20,21
“Amontoar brasas
sobre a sua cabeça” aponta para o fato de que tratar o inimigo com gentileza e
humanidade faria com que sua consciência se abrasasse, sensibilizando-o e
constrangendo-o pelo amor. É neste mesmo sentido que Davi pede em seu famoso
Salmo 23: “Prepara-me uma mesa na presença dos meus inimigos.” Engana-se quem
pensa que Davi estivesse rendido a um espírito vingativo, almejando tripudiar
sobre seus desafetos. Pelo contrário, o homem segundo o coração de Deus
desejava partilhar seu próprio pão com aqueles que o odiavam. Ele não pretendia
tortura-los ou coisa parecida, mas constrange-los com um gesto de amor e
solidariedade.
Algo parecido com o
que se vê no livro “Os Miseráveis” de Victor Hugo.[33]
Jean Valjean, o protagonista do célebre romance, é um homem que vive uma
situação de miserabilidade que leva-o ao crime. Depois de 19 anos de prisão
(cinco por roubar um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos que estavam
passando fome, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga) acaba sendo libertado.
Marginalizado por todos que encontra por sua condição de ex-presidiário, ele
acaba tendo que dormir nas ruas, mas é recebido na casa do benevolente Bispo
Myriel. Em vez de se mostrar grato, Valjean rouba-lhe os talheres de prata durante a noite
e foge. Ao ser preso, é levado pelos policiais à presença do bispo para
acareação. Em vez de confirmar o roubo, o bispo salva-o alegando que a prata encontrada
com ele foi um presente e que ele havia se esquecido de dois castiçais de prata
por causa de sua pressa. Após esta demonstração de bondade, o bispo recomenda
que ele use a prata para tornar-se um homem honesto. Transformado, Jean Valjean
reaparece no outro extremo da França, tornando-se em um próspero empresário,
dono de uma fábrica, e um homem respeitado pela sua bondade e caridade. Eis um
exemplo de um inimigo em cuja cabeça se amontoou brasas que consumiram o velho
homem, fazendo-o renascer como uma renovada fênix.
Abaixo, um poema de
minha autoria dos tempos de faculdade:
O Grito dos Bravos
Onde se testou nossa
bravura?
Onde se esgotou a vã
doçura?
Onde se expôs tanta
loucura?
Capaz de destilar tão
vil agrura?
Não, não foi nos
campos de batalha
Onde o ódio se esvai,
fogo de palha
Como nos tornamos
desumanos?
Tão sagrados, tão
profanos.
Tão sensatos, tão
insanos.
D’onde vêm os gemidos
que ouço?
Ecos vindos de um
frio calabouço
Nada excede a frieza
e a feiura
De quem covarde aos
seus dedura?
Que beleza pode haver
na captura?
Na verdade extraída
sem lisura?
Requintes de
crueldade.
Acintes à liberdade.
[1]
Publicada em 27/8/1780.
[2] Em
10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU votou pelo reconhecimento e
respeito a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
[3]
Amós 1.1; 7.14
[4] 787-
747 a.C.
[6] Isaías
58.2,3
[9]
Gênesis 22.11
[10]
Êxodo 19.5 / 1 Pedro 2.9
[11] Amós
9.7
[12]
Atos 14.16,17
[13]
Atos 17.26
[14] Eugenia
é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando
"bem nascido". Galton definiu eugenia como "o estudo dos agentes
sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais
das futuras gerações seja física ou mentalmente". Fonte: Wikipédia.
[15] Yuri
Alekseievitch Gagarin foi um cosmonauta soviético e o primeiro homem a viajar
pelo espaço, em 12 de abril de 1961, a bordo da Vostok 1. É dele a célebre
frase: “A terra é azul.”
[16]
Isaías 40.15
[17]
Hebreus 13.13-14
[18]
Hebreus 11.14-16
[19]
Filipenses 3.4-7
[20] Pietro
Gori foi um advogado anarquista italiano nascido em Messina (1865 – 1911).
[21]
Gálatas 4.26
[22]
Gálatas 4.25
[23]
“Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea;
porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28).
[24] 2
Coríntios 5.17
[25] Amós
1.3
[26] Viktor
Emil Frankl (Viena, 26 de março de 1905 — Viena, 2 de setembro de 1997) foi um
médico psiquiatra austríaco, fundador da escola da logoterapia, que explora o
sentido existencial do indivíduo e a dimensão espiritual da existência.
Sobreviveu aos campos de concentração nazistas em Auschwitz.
[27] FRANKL,
Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
Petrópolis: Editora Vozes, 1991.
[28]
Gênesis 49.5-7; Provérbios 12.10
[29]
Gênesis 9.6; Êxodo 6:.9; Salmos 71.4; 74.20
[30]
Atos 23.3
[31]
Êxodo 12.49
[32]
João 7.47-53
[33] HUGO,
Victor, Os miseráveis (Volume I: Fantine/ Livro sétimo: O Processo de
Champmathieu/ XI. Champmathieu cada vez mais admirado). Lisboa: Editorial
Minerva, 1962.
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